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Italiano, � psicanalista, doutor em psicologia cl�nica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do esp�rito contempor�neo (patol�gicas e ordin�rias). Escreve �s quintas.
Os mitos e os her�is
Editoria de Arte/Folhapress | ||
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Nos meus tempos, durante o ensino m�dio obrigat�rio, aos 12 ou 13 anos, a gente lia a "Il�ada" e a "Odisseia", na tradu��o italiana de Vincenzo Monti (um bom poeta do s�culo 18).
Eu gostava de hist�rias de guerra (na literatura e no cinema) e, em tese, seria bom p�blico para o s�tio de Troia e o clamor de suas batalhas. Mas preferia a "Odisseia" � "Il�ada"; as dificuldades e as tenta��es de Ulisses nos dez anos que levou para voltar de Troia � sua �taca me evocavam, a cada dia, a volta para casa depois da escola: a gente sempre se atrasava porque achava aventuras no caminho.
Bem antes de ler "Ulisses", de James Joyce, eu e meus colegas pens�vamos reescrever a "Odisseia" como hist�ria das perip�cias de um grupo de estudantes do ensino m�dio voltando para casa depois da aula. Polifemo era um cara grand�o que tocava o acorde�o, pedia esmola e nos dava medo. Circe era uma prostituta corpulenta e felliniana, que estava sempre na esquina de Piazza Aspromonte, inevit�vel.
Mas ser� que eu e meus colegas acredit�vamos em Circe, a maga perigos�ssima que transformava os homens em animais ou no ciclope Polifemo, que devorava os companheiros de Ulisses, dois de cada vez?
Acredit�vamos o suficiente para encontr�-los regularmente no caminho de casa. Mas talvez soub�ssemos que eles eram met�foras de todo tipo de "perdi��o" que nos amedrontava e fascinava ao mesmo tempo e que, de fato, esper�vamos encontrar no futuro, nas esquinas da vida.
E os deuses do Olimpo, a gente acreditava neles? Claro que n�o, e claro que sim.
Claro que sim, porque eles apareciam na narrativa da nossa trabalhosa volta para casa. Ali�s, em caso de grande atraso, culpar Poseidon, que obstaculizava o retorno de Ulisses, era um jeito certo de arrancar um sorriso aos nossos pais e evitar uma bronca.
Claro que n�o, porque �ramos crist�os e ach�vamos, no fundo, que havia algo infantil na prolifera��o dos deuses do Olimpo, todos animados por sentimentos demasiado parecidos com os nossos (ira, ci�me, vingan�a etc.). N�o deixa de ser bizarro: a gente julgava improv�veis os deuses do Olimpo e declarava acreditar num Deus t�o improv�vel quanto (uno e trino, com filho encarnado e sacrificado"�).
Mais tarde, no ensino m�dio, come�amos a estudar filosofia –claro, pelos gregos. Enquanto Plat�o me dava sono, eu tinha uma tremenda prefer�ncia por Arist�teles. Naquela �poca, li a "�tica a Nic�maco", a "Po�tica" e a "Metaf�sica". Anos depois, Andr� de Muralt me disse um dia que Arist�teles s� era poss�vel na Gr�cia, onde a luz do meio-dia bate sem deixar sombras, e que n�s, europeus mais n�rdicos, sempre nos perder�amos nas falsas complica��es dos crep�sculos, nunca enxergar�amos o mundo com a mesma clareza.
Tendo a concordar com ele, mas me sobra uma pergunta, que vem com um certo esc�rnio: ser� que Arist�teles, com quem o Ocidente come�ou a pensar e a enxergar o mundo, acreditava mesmo nos mitos e nos deuses gregos? Como � poss�vel que algu�m que pensa parecido conosco acredite em divindades t�o "infantis" quanto os deuses do Olimpo?
Em 1983, Paul Veyne, o grande historiador da antiguidade grego-romana, publicou "Os Gregos Acreditavam em seus Mitos?" (no Brasil, ed. Unesp). Li vorazmente e aprendi, sobretudo, que, gregos ou n�o, todos n�s recorremos a v�rias maneiras de crer e de conceber a verdade.
Os dorze, da Eti�pia, acreditam que o leopardo � um bicho crist�o e devoto; mesmo assim, n�o deixam de proteger seu rebanho �s sextas, embora, em tese, para crist�os como o leopardo, seja dia de jejuar carne.
E o que dizer de ateus e agn�sticos que dizem sem hesitar "Gra�as a Deus" e "Se Deus quiser"? Acreditam ou n�o acreditam?
No domingo (4), assisti a "Mulher-Maravilha", de Patty Jenkins, que talvez seja o melhor de todos os filmes dedicados a personagens da Marvel Comics. Pela virtude do filme, que � �timo, acreditei o suficiente para me envolver na hist�ria.
Talvez, daqui 2.000 anos, algu�m se perguntar� se os homens do s�culo 21 acreditavam ou n�o nos super-her�is da Marvel, que s�o uma mitologia moderna.
Talvez, no futuro, algu�m observe tamb�m que os mitos n�o s�o tanto objetos de cren�a ou descren�a; eles s�o, sobretudo e sempre, a express�o de uma necessidade. E, aparentemente, desde a Gr�cia antiga at� hoje, a gente est� sempre precisando de her�is.
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