Qualquer um é livre para apoiar Jair Bolsonaro. Só não pode fazê-lo em nome do conservadorismo ou do liberalismo. É desonesto. Ou mal informado. É como espalhar o coronavírus e desmontar o SUS em nome da saúde pública. Ajuda a doença.
Se essa tese não é nova, os 15 meses de governo pelo menos oferecem confirmação empírica para o que antes soava como afetação acadêmica e má vontade política. Apesar dos 30 anos da carreira parlamentar em defesa de tortura, torturador e ditadura. E do que vem junto.
No xadrez da composição do governo, distribuiu-se entre seus membros os crachás de "liberal" e "conservador". Era mensagem para consumo externo. Paulo Guedes chamou a solenidade de "aliança de centro-direita entre conservadores e liberais", uma "revolução". A fachada queria vender moderação e decência, virtude dos que aceitam as regras do jogo.
Na vida real, liberais sumiram e conservadores não deram as caras. Quando as portas do cavalo de Troia se abriram, de lá saltaram os guerreiros que pedem AI-5, fechamento do Congresso, fim do STF e intervenção militar-constitucional (instrumento imaginário que a Constituição desconhece).
Os cavaleiros não representam mais uma franja excêntrica da sociedade brasileira. Não estavam no armário. Já desfilavam em 2013 e se consagraram em 2019. Formam hoje base indispensável de sustentação do presidente.
O governo não os ignora, muito menos os condena, pois formam um corpo só. O presidente, sua família e o general os atiçam para as ruas. Não é uma marcha pela família e propriedade. Não é por qualquer reforma ou reconhecimento de direitos. Não é protesto contra a omissão das instituições. A marcha é pela supressão das instituições que não se curvaram à agenda presidencial, a oficial e a oculta. "Fodam-se!", ponderou o general.
A tradição conservadora evoca medo de mudança abrupta e desconfia da capacidade de a razão teórica promover boas transformações sociais. Não é contra a mudança, desde que cautelosa. Afinal, o conhecimento é imperfeito e intervenções geram conseqüências imprevisíveis. Tradições fluem, não são estáticas. Prudência e a experiência importam.
Edmund Burke, ícone do conservadorismo, entendeu que "um estado sem meios para alguma mudança não tem os meios para sua conservação". Deixou em aberto a pergunta: o que vale conservar? Gerry Cohen ensaiou uma resposta: "Conservadores querem conservar aquilo que tem valor intrínseco, e injustiça carece de valor intrínseco (tem, na verdade, desvalor intrínseco)."
Um conservador não pode ficar neutro sobre o valor do que quer conservar. E Bolsonaro? Difícil conceber um espécime menos conservador. Para o bolsonarismo vale a pena conservar o que já não estava mais em curso, ao menos no plano das normas jurídicas e das convenções de civilidade pública. As tradições de respeito e dignidade que vêm lutando para se erigir na esteira da Constituição de 1988 fogem do seu plano.
Não são só seus maus modos que ofendem a sensibilidade conservadora. São também suas políticas. Não só as políticas formais, mas também as informais —aquelas que estão vigentes mas não foram publicadas no Diário Oficial.
Na falta de liberais e conservadores, restaram os anticristãos em nome de Cristo e os militares pré-democráticos; os milicianos, grileiros e capangas digitais —bolsonaristas da esquina sempre a postos diante dos sinais do capitão; e os empresários que querem "modernizar" a economia na companhia dessa turma.
Essa noção peculiar de "liberdade" econômica sem liberdades civis não tem a ver com emprego, bem-estar e segurança. Não há modernização pela delinquência. Numa terra sem lei há outra coisa, independentemente do nome que os guerreiros queiram dar a ela.
Entre o "conservadorismo" da tortura e da repressão a individualidades, que nada tem de conservador, e o conservadorismo constitucional, eu fico com o segundo. A Constituição quer conservar e mudar, mudar e conservar, no ritmo devido. Bolsonaro quer varrer limites ao seu poder tão rápido quanto possível.
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