Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune

Amante não pode ser mais chato do que marido em casos extraconjugais

Enquanto Maria Luísa desejava fortes emoções no tocante ao adultério, Arnaldo seguia seu ritual de descalçar os sapatênis

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Maria Luísa estava decidida: ia terminar aquele relacionamento. Só faltava escolher o momento certo —talvez quando Arnaldo, religiosamente voltado para o Itaim Bibi, cumprisse seu lento ritual de descalçar os sapatênis.

Havia ali toda uma rotina de luxúria e devassidão. Por entre beijos sôfregos e lascivos, ela arrancava sensualmente a própria blusa, enquanto ele procurava uma cadeira para deixar a calça bem esticada.

"Arnaldo, preciso te dizer uma coisa." "Peraí, um minuto", ele respondeu, com o controle do ar-condicionado na mão, tentando ajustar a temperatura exata. "Vinte e três graus é o recomendado em lugares fechados".

"Acabou, Arnaldo." Pronto, formou-se o climão. "Como assim, Maria Luísa? Você não me ama mais? Você tem outro?" "Arnaldo, você já é o outro."

Ilustração de uma mulher com cabelos pretos na altura dos ombros e um homem com cabelos pretos curtos nus deitados em um lençol roxo. A mulher está com expressão entediada, enquanto o homem fala sobre uma máquina de iogurte.
Ilustração publicada na coluna de 6 de fevereiro de 2022 - Marcelo Martinez

Se existe um axioma supremo, uma regra de ouro para todos os casos extraconjugais, é que amante não pode ser mais chato do que marido. Tanto que Maria Luísa nutria anseios específicos no tocante ao adultério. Queria as emoções fortes de uma Madame Bovary, uma Anna Karênina, um Arthur Aguiar. Contudo, achava Arnaldo sexy e tinha um certo fetiche pelo seu jeitinho de pingar colírio antes da pegação. Pedia para o amante lhe dizer coisas excitantes ao pé do ouvido, ainda que ele saísse sempre com a tabela do Brasileirão ou do IPVA para carros com placa final dois.

A crise não tardou. Maria Luísa até sugeriu que eles comprassem um brinquedinho para esquentar a relação, mas Arnaldo apareceu com uma iogurteira. Na promo, ela vinha com um acendedor de fogão inteiramente grátis.

"Já deu, vou indo nessa", disse enfim Maria Luísa, abotoando a blusa. Ao contornar a cadeira onde estava a calça, Arnaldo apelou para todos os argumentos possíveis. Lágrimas brotavam de seus olhos. E não eram de colírio.

"Quando seu Windows dá pau, quem reinstala? Mês passado você precisou ir ao dentista e fui eu que marquei a consulta! Sou a única pessoa que ouve os áudios da sua mãe na velocidade normal e resume o que ela quer."

Maria Luísa olhou para ele, enternecida. "Verdade. Isso é tão, chato que nem meu marido faz." Arnaldo sorriu esperançoso, mas ela tratou de pegar a bolsa.

"Vai embora mesmo?" Foi quando a amante tirou uns papéis ali de dentro e tacou todos na cara dele. "Toma! São minhas contas. Cadastra em débito automático!" Loucos de tesão, os dois se agarraram até que Arnaldo interrompeu rapidinho, só para ter certeza. "Depois posso fazer seu imposto de renda antecipado?"

E se amaram a tarde toda.

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