Ana Paula Vescovi

Economista-chefe do Santander Brasil

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Ana Paula Vescovi

Fortalecendo a âncora fiscal

Não há saída para o reequilíbrio das contas públicas a não ser a reconstrução do Orçamento, o que passa por um debate estrutural entre o Estado e a sociedade

A história recente do Brasil ajuda a economizar muitas palavras. A desorganização macroeconômica interrompeu governos; analogamente, gestores fiscalmente responsáveis puderam adensar suas entregas à população. Somente com orçamentos equilibrados podemos conviver com juros mais baixos e moeda estável, o que abre mais espaço para políticas sociais.

Quando caminhamos para a outra direção, forçando a marcha dos gastos, colhemos a incerteza: quando será o próximo aumento de impostos? Quanto a inflação aumentará? Quando e o quão intensa será a próxima recessão? Quais serão as próximas mudanças na regra do jogo?

Estamos nessa incerteza nos últimos quatro meses. Não adianta colocar a culpa nos eventos externos ou nos bancos centrais, que têm o papel de defender o poder difuso da sociedade no combate à inflação. A inflação ajuda a financiar governos perdulários por um curto período, mas isso não é sustentável. Desde o Plano Real, a sociedade brasileira aprendeu a defender sua moeda.

Duas pessoas caminham à frente do prédio do Ministério da Fazenda, em Brasília
Sede do Ministério da Fazenda, em Brasília - Adriano Machado/Reuters

O pragmatismo deveria nos levar a soluções que estejam ao nosso alcance. E colocar para funcionar o novo arcabouço fiscal, aprovado no ano passado, é a resposta mais trivial.

Os preços dos ativos brasileiros embutem falta de confiança dos agentes econômicos, que avaliam que no próximo ano, ou no máximo em 2026, haverá algum "furo" no novo limite de despesas, mudanças de meta fiscal, uso de subterfúgios para forçar a marcha de crescimento da economia, e até o uso crescente de subsídios creditícios e/ou financeiros.

São tais crenças que levaram o dólar para mais perto de R$ 6,00 e a curva de juros negociados no mercado a embutir alta da taxa Selic já nos próximos meses, fato que acaba prejudicando o próprio crescimento da economia à frente (não obstante a boa performance recente).

Sem falar da queda de 3-4% da Bolsa de Valores desde março, que reduziu em R$ 190 bilhões o valor de mercado das empresas brasileiras.

Reverter isso não será trivial: será necessário enxugar cerca de R$ 100 bilhões dos R$ 170 bilhões de gastos acrescidos pela PEC da transição. O primeiro e mais importante passo é dar clareza ao diagnóstico para os tomadores de decisão, em várias esferas.

Calculamos o hiato de recursos para cumprimento das metas fiscais em 2024 próximo a R$ 40 bilhões. Assim, até 22 de julho, data da próxima reavaliação de receitas e despesas do governo central, seria necessário contingenciamento acima de R$ 15 bilhões para afastar mudança de meta, considerando a banda de tolerância de R$ 28,8 bilhões (cálculo do Tesouro).

O contingenciamento afastaria a incerteza do cumprimento das duas metas embutidas no novo marco fiscal: resultado primário e limite de gastos. Como há o limite de gastos, a contenção de despesas será inexorável, e torna inviável o ajuste exclusivamente do lado da arrecadação.

No médio prazo, há o Orçamento de 2025, cujo Projeto de Lei Anual deverá ser enviado ao Congresso até 31 de agosto. Calculamos o hiato para cumprimento tanto do limite de gastos quanto do resultado primário em cerca de R$ 70 bilhões.

Nesse caso, a estratégia ótima seria propor medidas para aprovação pelo Congresso ainda neste ano, com efeito a partir do próximo, de modo a assegurar o cumprimento das regras em 2025 e em 2026 e a afastar incertezas no horizonte até o final da atual administração.

Há um conjunto de medidas aventadas para cortes de despesas e algumas que poderiam ser alvo de discussão e que se aproximam do valor necessário.

Trata-se da redução do valor de emendas parlamentares; do pente-fino nos benefícios previdenciários e assistenciais (auxílio-doença, auxílio-defeso etc.); da focalização dos cadastros do Bolsa Família; do realinhamento dos mínimos constitucionais de saúde e educação; da convergência de regras da previdência dos militares; da regulamentação do teto salarial no serviço público, da revisão do aumento real do salário mínimo e do redesenho/otimização do conjunto seguro-desemprego, abono salarial e FGTS.

O controle das despesas, além de abrir espaço para investimentos, gera benefícios com maior estabilidade e previsibilidade das contas públicas e reforça o compromisso no cumprimento do arcabouço, com ações contundentes.

A lacuna entre medidas aprovadas e a efetiva necessidade de redução deveria ser coberta por contingenciamento de despesas discricionárias. E isso afetará o investimento público. Ou seja, quanto mais medidas de redução de gastos obrigatórios aprovadas, mais se consegue preservar o investimento público.

Olhando mais à frente, até o final desta década as despesas obrigatórias tomarão todo o Orçamento federal. Será imperativo rediscutir todas as funções públicas, partindo do zero e enfrentando as dinâmicas do envelhecimento da sociedade, das mudanças climáticas e das novas tecnologias.

Serão menos crianças entrando nas escolas. Contudo, serão mais jovens precisando desenvolver habilidades científicas, mais pessoas buscando por tratamento de doenças crônicas, desafios crescentes no combate ao crime organizado, maior demanda de recursos para mitigação dos eventos climáticos extremos e cada vez mais novos entrantes na Previdência Social.

Em alguns anos, a captura do Orçamento público por grupos de interesse não terá mais lugar. Será o colapso do Orçamento que levará ao enfrentamento de escolhas difíceis? Esse é um caminho duro para a reconstrução da nossa âncora fiscal e o melhor seria se pudéssemos nos antecipar a essa realidade.

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