Graduado em qu�mica e jornalismo pela USP, tem especializa��o em jornalismo cient�fico pelo MIT.
Cena de sangue num bar
Uma verdade jornal�stica: ningu�m sabe que editores existem. Ou melhor: da porta para fora da Reda��o, ningu�m sabe que editores existem. O leitor atento conhece o correspondente de guerra, o rep�rter das mat�rias exclusivas, o chargista mordaz, o colunista pol�mico.
Mas os editores? Aqueles que t�m as ideias de reportagens, consertam textos, orientam o reportariado, hierarquizam os assuntos e escrevem os t�tulos e manchetes? Como diria aquele personagem de "Esta��o Carandiru", de Drauzio Varella: sem chance.
Assim, foi com um sentimento de vit�ria que este editor por voca��o leu, na semana passada, um obitu�rio inusitado no "New York Times": o de Vincent Musetto, morto aos 74 anos de c�ncer de p�ncreas. N�o conhece? �bvio. Musetto era uma figura de bastidores. Um editor.
Mereceu o obitu�rio por ter criado uma manchete hist�rica: "HEADLESS BODY IN TOPLESS BAR". Assim mesmo, em mai�sculas, no estilo estridente do tabloide "New York Post", no qual foi publicada em 15 de abril de 1983.
A manchete desafia tradu��es. Literalmente: "Corpo sem cabe�a em um bar de topless". Ou, com certa liberdade po�tica, "Corpo sem cabe�a em um bar sem vergonha", como sugeriu a professora de ingl�s e leitora da coluna Ana Carolina Monteiro, que me enviou o link do obitu�rio.
O ritmo elegante, as alitera��es, uma quase simetria sonora e a perfei��o com que se encaixava nas duas linhas (de fora a fora da primeira p�gina) fizeram dessa manchete uma esp�cie de padr�o de ouro do jornalismo popular.
Como � comum nesse universo, a manchete foi "encomendada". Chegou ao jornal a not�cia de que tinha sido encontrado, em um bar na �rea de Queens, um corpo decapitado, do dono do lugar.
Na Reda��o, Vincent Musetto, editor da primeira p�gina, ouviu a hist�ria e disparou: "Headless body in topless bar", assim mesmo, sem verbo, e j� pensando nas palavras que caberiam no espa�o determinado.
Havia s� um problema: ningu�m sabia se o bar era mesmo de striptease. Um rep�rter foi despachado para apurar. Ecoou pela Reda��o um suspiro coletivo de al�vio quando ele ligou de volta confirmando: sim, naquele estabelecimento, dan�arinas se exibiam com os peitos de fora. A manchete estava garantida.
No come�o dos anos 1990, trabalhei no jornal paulistano "Not�cias Populares". Escrever manchetes era uma de minhas atribui��es.
A de que mais me orgulho acompanhava uma foto de Maradona pelado, reproduzida de uma revista alem�: "Maradona: bom de bola, ruim de taco".
Lembro tamb�m de um caso quase sobrenatural. O secret�rio de Reda��o, Walter Novaes, bolou, no dia 30 de abril, a manchete "Desempregado mata a m�e no Dia do Trabalho". E pediu ao rep�rter da madrugada, o lend�rio H�lio Santos, que descobrisse um caso assim.
Pois aconteceu: um desempregado assassinou a m�e nas primeiras horas de 1� de maio. Um triste fato, mas mais uma manchete garantida.
Al�m de fazer a manchete, criar a linha-fina (uma esp�cie de complemento do t�tulo principal) exige precis�o de poeta minimalista.
Laudo Paroni, mancheteiro titular do "NP", era expert nisso. Certa vez, na linha-fina de uma hist�ria tr�gica de final feliz –um menino tinha sofrido um acidente e tivera o p�nis reimplantado–, Paroni chamou o pequeno �rg�o de "pecinha".
Mas tudo isso � passado. No jornalismo popular e no "mainstream", escrever manchetes criativas � uma arte em extin��o. Como notou recentemente Margaret Sullivan, ombudsman do "New York Times", o modo de titular reportagens est� mudando.
O vi�s l�rico, por�m informativo, que sempre norteou o trabalho de edi��o, hoje d� lugar � literalidade. Ela cita como exemplo um t�tulo do pr�prio "New York Times": "Apple revela iOS 8 e OS X Yosemite em confer�ncia de desenvolvedores".
Dif�cil pensar em algo mais pesado e burocr�tico. Mas um t�tulo assim tem uma fun��o crucial: fazer com que a reportagem apare�a com destaque nas buscas do Google, e seja facilmente compartilh�vel em redes sociais.
A f�rmula atual de manchetes e t�tulos � aquela de sites como "BuzzFeed" e "Daily Mail". A mais literal poss�vel, a mais �bvia poss�vel, que traga todas as palavras-chave para aparecer no topo das buscas, mas que n�o conte toda a hist�ria, para obrigar o leitor a clicar.
Para isso, n�o � preciso editor. Um algoritmo faz melhor. Talvez, em breve, os editores, al�m de desconhecidos, passem a ser tamb�m inexistentes.
Livraria da Folha
- Cole��o "Cinema Policial" re�ne quatro filmes de grandes diretores
- Soci�logo discute transforma��es do s�culo 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade