Graduado em qu�mica e jornalismo pela USP, tem especializa��o em jornalismo cient�fico pelo MIT.
O balc�o da meia-noite
Tudo pode em Shinjuku, o bairro onde nada consegue ser extremo ou estranho demais. � vizinhan�a central, a mais louca da mais mais febril das metr�poles: T�quio.
Em Shinjuku, o neon e os tel�es gigantes, o a�o e o vidro dos arranha-c�us, convivem em desarmonia improv�vel com vielas escuras, becos que se ligam a outros becos, casebres de madeira, portinhas de restaurantes sem placa e bares que s� quem � da noite conhece, e onde s� os ass�duos ousam entrar.
Acontece de tudo na madrugada –a vida dos residentes se mistura � de quem s� quer se divertir. A velhinha passa com a sacola de compras do mercado 24 horas. O mafioso confere o movimento em sua �rea. Um menino compra bolinhos triangulares de arroz na loja de conveni�ncia. As "hostesses" atraem para seus clubes noturnos os "salarymen" j� b�bados de cair, tomando todas desde que sa�ram do trabalho, muitas horas atr�s.
Neste ambiente de toler�ncia mil, fica o balc�o da madrugada. � o restaurante do Mestre. Um homem sem nome, todos os chamam assim: Mestre. � o dono do lugar, e l� trabalha sozinho. Limpa, atende, cozinha, conversa (n�o muito).
O balc�o da madrugada abre � meia-noite e fecha �s sete da manh�. Em Shinjuku, onde o anormal � regra, um hor�rio comum. "Meu dia come�a quando o dos outros termina", resume Mestre. Homem de meia-idade, magro, religioso.
Uma cicatriz vertical na face esquerda –nasce na testa, passa pela p�lpebra superior, para no olho, continua pela p�lpebra inferior e vai at� o meio da bochecha– lhe confere um ar levemente amea�ador.
Como � t�o comum no Jap�o, o menu traz um �nico prato: neste caso, tonjiru, um cozido de porco e legumes com miss� (pasta de soja). Mas este botequim tem algo a mais –se pedirem qualquer cl�ssico da cozinha caseira, e o Mestre tiver os ingredientes, ele faz. Voc� s� precisa ser cliente regular. Ou pelo menos que, em um golpe de sorte, ele v� com a sua cara j� de primeira.
Outra marca japonesa: o Mestre n�o quer divulga��o. O balc�o tem s� dez lugares e a cozinha � pequena. N�o daria conta de um movimento maior. Ele autoriza uma blogueira a tirar fotos da comida, desde que ela n�o revele onde est�. Resmunga quando entra um cr�tico de gastronomia ("a esp�cie que eu mais detesto"). Prefere que as coisas fiquem como est�o.
O balc�o da meia-noite reflete seu entorno –a fauna dos ass�duos � Shinjuku em concentra��o m�xima. Seres transg�neros dos mais variados graus. Mo�as em busca de aventuras e mo�os idem. Mulheres da noite de diferentes grada��es –as que cobram s� para conversar, as que se deixam tocar, as que transam.
Artistas frustrados, artistas decadentes, artistas iniciantes. Um m�stico que se senta sempre num canto e mal fala. O viciado em apostas. O aspirante a boxeador. Um astro porn� (nome art�stico: "Erecto Ohki").
As tr�s amigas solteiras que s� falam em casamento e pedem toda noite "ochazuke" (arroz com ch� e mais algum complemento, como ovas de bacalhau, peixe seco, ou conserva de ameixa).
Ningu�m bota banca. Mesmo o cr�tico esnobe, um d�ndi de echarpe e palet� vermelho, vem s� para comer um prato simples: arroz com manteiga e, por cima, umas poucas gotas de molho de soja (porque a manteiga j� tem sal suficiente). Tranquiliza os outros frequentadores: "N�o vou escrever sobre este lugar. N�o quero que ningu�m descubra."
O balc�o da meia-noite � cen�rio de uma s�rie japonesa de TV, "Shinya Shokudo" ("restaurante da madrugada"). Come�ou em 2009, teve tr�s temporadas e deu origem a um longa-metragem. Tudo in�dito no Brasil. Os cap�tulos de TV est�o dispon�veis, com legendas em ingl�s e legalmente, em sites como YouTube e Dailymotion (mais organizados neste �ltimo).
Cada epis�dio tem pouco menos de meia hora. Filmadas com esmero, as imagens das comidas s�o estonteantes. Mas n�o espere grandes "insights" de roteiro nem narrativas inovadoras.
Algumas solu��es chegam a ser infantis (coincid�ncias imensas que fazem cruzar os destinos dos personagens; trag�dias gratuitas; dramalh�es fora de medida).
O forte de "Shinya Shokudo" est� nos frequentadores do balc�o do Mestre. As tristes figuras, os perdedores solit�rios, os rejeitados. S�o de fic��o, mas parecem t�o reais.
Livraria da Folha
- Cole��o "Cinema Policial" re�ne quatro filmes de grandes diretores
- Soci�logo discute transforma��es do s�culo 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade