Graduado em qu�mica e jornalismo pela USP, tem especializa��o em jornalismo cient�fico pelo MIT.
A internet de Allende
As ruas chilenas fervem. Infla��o descontrolada, greves, desabastecimento, o governo esquerdista de Salvador Allende em frangalhos, o golpe de Pinochet j� � espreita.
No centro de tudo isso, na sede do minist�rio da Fazenda, mas distante do tsunami social, um cen�rio de fic��o cient�fica: uma sala branca com m�veis igualmente brancos, de fibra de vidro e concep��o futurista. Um visual de Apple Store "avant la lettre".
Uma tela gigante, e outras menores, exibem n�meros obtidos em tempo real –ou quase– sobre a economia chilena. Mais precisamente, sobre as minas e f�bricas que o governo socialista da Unidade Popular, coaliz�o liderada por Allende, estatizava em s�rie.
Dispostas nessa sala, sete poltronas que n�o estariam fora de lugar no cen�rio de "2001: Uma Odisseia no Espa�o", de Stanley Kubrick, ou na nave Entrerprise da s�rie "Jornadas nas Estrelas".
Levemente reclinadas, t�m no apoio do lado direito bot�es que permitem ao usu�rio controlar as informa��es que surgem nas telas. Com base no que veem, os t�cnicos tomam decis�es em alta velocidade sobre a economia do pa�s.
Esse lugar deslocado no tempo era a sala de controle de uma iniciativa n�o exatamente secreta, mas que o governo de Allende n�o fazia muita quest�o de divulgar: o projeto Cybersyn (nome em ingl�s) ou Synco (em espanhol).
Como a web era menos que um sonho, os dados chegavam ao controle enviados de todo o pa�s por m�quinas de telex. E a falta de computadores de alto desempenho no Chile era suprida, na medida do poss�vel, com solu��es criativas de software. Uma esp�cie de internet primitiva.
Mentor intelectual: o brit�nico Stafford Beer, sujeito alto, corpulento e barbudo, consumidor voraz de cigarros, charutos, vinho e u�sque. Guru da administra��o de empresas e tamb�m de uma �rea de estudos na �poca muito em voga: a cibern�tica.
� uma hist�ria fascinante: a implanta��o de uma tecnologia vision�ria de controle computacional na economia de um pa�s socialista de Terceiro Mundo. E sob a tutela de um consultor exc�ntrico e milion�rio (dirigia um Rolls Royce), que tinha zero contato com atividades pol�ticas de esquerda.
At� poucas semanas atr�s, jamais tinha ouvido falar no projeto Cybersyn. Conheci o tema em um artigo recente de Evgeny Morozov na revista "New Yorker" (http://bit.do/YH5a). Morozov, observador preciso das novas tecnologias (e das velhas tamb�m), citou no texto o livro definitivo sobre o assunto: "Cybernetic Revolutionaries: Technology and Politics in Allende's Chile", de Eden Medina, professora da Universidade de Indiana (EUA). Fui logo comprar.
Em um relato acad�mico, mas sem linguagem empolada, a engenheira e historiadora Medina conta como uma curiosidade intelectual de um jovem economista, Fernando Flores (que viria a ser ministro da Fazenda de Allende com apenas 29 anos), levou � contrata��o de Beer pelo governo da Unidade Popular.
Numa explica��o bastante simplificada, cibern�tica � a ci�ncia do controle e da comunica��o. Em seus livros, Beer trazia as ideias da cibern�tica para o campo da administra��o. No Chile, Fernando Flores era leitor atento.
Allende estatizava tantas empresas que o governo se complicava tentando gerenciar tudo. Ocorreu a Flores que as ideias de seu guru, Stafford Beer, poderiam ser �teis no controle estatal da economia. Foi feito um contato e, por muito dinheiro, Beer largou seu sossego ingl�s rumo ao Chile.
Foram cerca de dois anos de trabalho, at� que o golpe de 1973 desmantelou o projeto Cybersyn e perseguiu seus principais membros –na maioria t�cnicos jovens e brilhantes. A sala futurista nunca entrou em opera��o plena. Foi literalmente destro�ada pelos capangas de Pinochet.
O maior feito do grupo liderado por Beer aconteceu em 1972, um ano antes do golpe. Uma greve patronal de transportadoras quase derrubou Allende. Salvou-o a rede de m�quinas de telex do Cybersyn, pela qual o governo conseguiu controlar as necessidades de abastecimento de cada ponto do pa�s, acionando caminhoneiros pr�-Allende para transportar os suprimentos.
Fracassada a experi�ncia, Beer mudou. Renunciou ao luxo e passou a viver de maneira quase mon�stica. Ele, que nunca tinha sido de esquerda, ficou marcado pela experi�ncia chilena. Morreu em 2002, aos 75 anos, coberto de gl�rias acad�micas, mas sem bens materiais.
Sua sala branca de fibra de vidro � hoje um rodap� na hist�ria da tecnologia –e das utopias socialistas tamb�m.
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