Graduado em qu�mica e jornalismo pela USP, tem especializa��o em jornalismo cient�fico pelo MIT.
Um leitor grita que existe
Pr�-hist�ria: e-mails. A �ltima moda, os substitutos das cartas. N�o existiam mensagens instant�neas, celulares eram novidade. Redes sociais? Um ponto distante no horizonte, menos que uma abstra��o.
Eu escrevia uma coluna no suplemento "Folhateen", dirigido a jovens, hoje extinto. Falava basicamente de m�sica. E causava, comprava briga —algumas justas, outras n�o. Estilo encrenqueiro, normal que provocasse rea��es na mesma medida.
Primeiro eram cartas. Muitas delas am�veis, mas outras tantas de reclama��es. Guardo pilhas at� hoje. Depois vieram os e-mails, e o tom geral mudou. Mais imediatos, irrefletidos. Uma carta, voc� desiste, acaba n�o mandando. E-mail � diferente: um simples "enviar" e a lan�a incendi�ria dispara rumo ao alvo.
Na caixa de entrada, em meio a tanto ru�do, ele se destacava: era o leitor mais agressivo. Rancoroso, puro ressentimento. Pontificava contra tudo o que eu escrevia: as informa��es, as opini�es, meu uso do portugu�s. Tudo, tudo.
Meu texto sa�a �s segundas-feiras. Mas ele mandava e-mails quase di�rios. Longos, alguns duas ou tr�s vezes maiores do que a coluna que tinha provocado tanto �dio. Apesar das grosserias, escrevia bem. Gram�tica correta e racioc�nio claro. Jornalista frustrado, talvez. Um pioneiro dessa categoria hoje t�o presente na internet.
Com o tempo, passou a atacar tamb�m meu trabalho na televis�o. Violento como de costume. Em sua mente obcecada, eu n�o era s� um incompetente, mas um mal para a humanidade, uma presen�a pestilenta a ser extirpada da Terra. Por ele, claro, o vingador "self-righteous" da web.
A persegui��o j� parecia no auge, mas ficou ainda pior. Vasculhou minha vida pessoal. Descobriu meu endere�o, e se vangloriava nos e-mails de sua capacidade investigativa.
Toda semana, um envelope dele chegava a minha casa. Sem carta dentro. Alguns traziam recortes de uma antiga revista de terror, a "Kripta". Outros continham um pouco de um p� vermelho, cristalino, de cheiro acre. Nunca descobri o que era.
Fez mais. Abriu uma conta "fake" de e-mail em meu nome. Em mensagens falsas, supostamente enviadas por mim, amea�ou pessoas pr�ximas. Fez intrigas, inventou hist�rias para amigos meus. N�o foi pouco o trabalho que tive para consertar tanto dano.
Pensei em abandonar a coluna. Mas seria me render a esse Mark Chapman do Terceiro Mundo. Parei de ler seus correios eletr�nicos. E os envelopes ficavam na portaria, eu mandava jogar no lixo.
At� que, um dia, o sil�ncio. Os e-mails acabaram. Nunca mais vieram os envelopes sem cartas. Meus amigos pararam de receber mensagens falsas em meu nome.
N�o sei o que aconteceu. Pelo tom transtornado do que ele escrevia, o suic�dio seria uma hip�tese l�gica. Mas n�o acredito. Simplesmente deve ter encontrado uma nova v�tima, ou v�timas.
Talvez passe os dias na internet, postando coment�rios agressivos em textos alheios. Pode ser daqueles analistas de todo e qualquer assunto no Facebook. Talvez seja blogueiro.
Procurei por ele muitas vezes no Google e, mais recentemente, em redes sociais. O sobrenome cheio de consoantes parecia basco, incomum por aqui. Identidade falsa, provavelmente. Nunca descobri quem era de verdade.
J� sonhei que estava diante dele. No sonho, retribuo a obsess�o perseguidora, e descubro seu endere�o. � um pr�dio no litoral de S�o Paulo, daqueles em que cada andar tem um corredor aberto que se v� da rua. Os apartamentos um ao lado do outro, o da frente e o dos fundos um pouco maiores.
Vive sozinho em um andar baixo. O zelador n�o me para, vou pela escada, bato � porta. Ele abre, mas n�o me deixa entrar. � um sonho sem �udio, n�o escuto o que dizemos. O confronto dura pouco.
Volto pelo corredor de piso frio, des�o as escadas. Assim que chego ao lado de fora, ele sai do apartamento e se debru�a no muro que d� para a rua. Finalmente, o sonho passa a ter som. O leitor obcecado lan�a um grito em minha dire��o: "Eu... Eu existo!".
Esta coluna foi fortemente inspirada por duas hist�rias perturbadoras: uma, publicada no "Guardian" ("Am I Being Catfished?", de Kathleen Hale), e outra, na "New Yorker" ("Whipping Boy", de Allen Kurzweil). Estas, 100% verdadeiras.
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