Graduado em qu�mica e jornalismo pela USP, tem especializa��o em jornalismo cient�fico pelo MIT.
Massa, o guerrilheiro
Se a imagem fosse mais fechada no rosto, e o som estivesse desligado, pareceria um discurso numa assembleia estudantil.
Quem tem a palavra � um nissei muito magro, cachecol branco, capote escuro e surrado. Exibe aquele misto de "nonchalance" e convic��o t�pico de jovens militantes. �s vezes sorri com o canto da boca. Pontua as frases movendo a m�o direita na vertical.
A c�mera, um pouco afastada, mostra o entorno. N�o s�o estudantes que o escutam. S�o senhores compenetrados, alguns de uniforme militar. O mobili�rio austero sugere um tribunal. Mas n�o � um julgamento, e sim uma entrevista � TV.
A filmagem � em preto e branco. Som baixo, mas aud�vel. E o discurso do jovem n�o tem nada do esp�rito contestador da �poca.
Ele elogia o ditador M�dici. Enaltece as obras do regime militar, diz que o verdadeiro esp�rito brasileiro se manifestou na festa pela Copa de 70. Chama a guerrilha contra a ditadura de "aventura idiota e sanguin�ria".
O protagonista dessas imagens � Andr� Massafumi Yoshinaga, de 21 anos. At� sete meses antes da grava��o, Massafumi, o Massa, era um dos guerrilheiros mais pr�ximos de Carlos Lamarca, comandante da Vanguarda Popular Revolucion�ria.
O v�deo, de 2/7/1970, foi postado no YouTube h� um ano. Enquanto escrevo, tem s� 1.454 visualiza��es (http://rs.gs/r8O).
A hist�ria de Massafumi � abordada com profundidade em um livro do historiador americano Jeffrey Lesser, "A Discontented Diaspora: Japanese Brazilians and the Meanings of Ethnic Militancy, 1960-1980" (Uma Di�spora Insatisfeita: Os Brasileiros de Origem Japonesa e os Significados da Milit�ncia �tnica, 1960-1980).
Lesser pesquisou a participa��o de descendentes de japoneses na esquerda armada. Descobriu cerca de 25. Todos nasceram no interior paulista, geralmente em fam�lias de agricultores. Mudaram-se para a capital para estudar.
Massafumi, de Paragua�u Paulista, 460 km a oeste de S�o Paulo, atuava no movimento secundarista. Mesmo sem ter chegado ainda � faculdade, j� era da VPR, organiza��o barra-pesada. Participou de um �nico assalto, mas sua fama entre os �rg�os de repress�o era bem maior que isso.
A tese de Lesser � que os estere�tipos associados a japoneses –samurais, kamikazes etc– tornavam os militantes nisseis especialmente temidos. Em todo ataque da guerrilha, alguma testemunha dizia ter visto "um japon�s". Pelos menos outros dois nisseis tinham participado de mais a��es, e mais violentas. Mas foi Massa quem ficou conhecido como "o japon�s da metralhadora".
Em dezembro de 1969, Massafumi, junto com outro militante, Celso Lungaretti, pediu para deixar a base no Vale do Ribeira (SP), onde a VPR fazia treinamentos, e voltar para a capital. Saiu da organiza��o, mas a ditadura ainda o ca�ava. Na clandestinidade, n�o encontrou guarida. Chegou a viver na rua, no entorno do Mercado Municipal da Cantareira.
O que aconteceu a partir da� � controverso. Segundo a vers�o mais conhecida, Massafumi, desnorteado, conseguiu contato com um guerrilheiro preso, Marcos Vinicio Fernandes dos Santos, amigo do movimento secundarista, pedindo orienta��o. Marcos pertencia ao primeiro grupo de militantes que tinha renegado publicamente, havia poucas semanas, a luta armada. Recomendou que Massafumi fizesse o mesmo.
Em circunst�ncias at� hoje obscuras, Massa entregou-se. O "japon�s da metralhadora" tinha mudado de lado. A m�quina de propaganda da ditadura usou-o ao m�ximo: em entrevistas, palestras em escolas, visitas a cadeias onde havia presos pol�ticos. Como pr�mio, Massafumi teve a pris�o revogada. Desconhe�o provas de que tenha feito dela��es. Pelo contr�rio, h� evid�ncias de que protegeu ex-companheiros.
Depois disso, esquecido, enlouqueceu. Nunca se fixou em um emprego. Achava que a repress�o ainda o perseguia e lia seus pensamentos. Escondeu-se na praia, onde imaginava ser mais dif�cil captarem suas ondas cerebrais.
No dia 7/7/1976, seis anos e cinco dias depois de ir � TV, Massafumi se matou, no sobrado onde morava, com a mangueira do chuveiro el�trico. Diante da cena, o pai, em desespero, rezava em japon�s.
Nestes dias em que uma esc�ria engomada pede a volta dos militares ao poder, conv�m lembrar hist�rias assim.
P.S. Al�m do livro citado, pesquisei no arquivo digital de "Veja", no blog de Celso Lungaretti e na excelente disserta��o de mestrado "O Terror Renegado", de Alessandra Gasparotto (2008, UFRGS).
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