Graduado em qu�mica e jornalismo pela USP, tem especializa��o em jornalismo cient�fico pelo MIT.
A tenta��o de humilhar
Ele para, pousa as m�os nas cadeiras, rebola com amplitude curta. Passa o p� por cima da bola. Finge que vai, volta. Passa o p� de novo, sem tocar na pelota. D� um giro. N�o sai do lugar. A bola ainda est� com ele. Os marcadores ficam tontos, e ainda v�o sofrer mais. Pedaladas, canetas, carretilhas —o repert�rio todo, usado em jorro.
A torcida urra, grita ol�. Os advers�rios v�o perdendo a paci�ncia. At� que um deles vara-lhe as entranhas com um pontap�. Paulada violenta, com efeito de alavanca. O driblador agora voa em torno de um eixo. D� piruetas como um cata-vento que levou um piparote caprichado.
O voo termina. O atleta talentoso desaba no ch�o. Quem urra agora � ele. Express�o contorcida, revira os olhos. Parece estar tendo convuls�es. A cena lembra a letra de "She's Lost Control", da banda p�s-punk Joy Division. � s� trocar "ela"por "ele": "E ela gritava e esperneava, deitada de lado / Perdi o controle outra vez / Ela teve convuls�es no ch�o, achei que fosse morrer / Ela disse: perdi o controle / Perdi o controle outra vez".
O protagonista das cenas futebol�sticas acima, claro, � Neymar. Melhor jogador do Brasil, craque incontest�vel, �dolo mundial, ele pratica aqui uma de suas especialidades: provocar, com dribles e malabarismos, advers�rios j� batidos, entregues, sem chance de recupera��o.
Que o digam Catanduvense, Botafogo de Ribeir�o Preto, a sele��o sub-20 do Uruguai (derrotada pelo Brasil, na final do sul-americano de 2011, por 6 x 0) e muitos outros.
� medida que Neymar ganhava fama, ainda no Santos, surgiam cr�ticas a essa aparente tend�ncia a tripudiar dos mais fracos. Foi prontamente defendido. Nossos Darcys Ribeiros do s�culo 21 (temos muitos) viam uma eventual humilha��o como simples consequ�ncia da ginga, do descompromisso, de nossa brejeirice t�o bronzeada e cheia de valor.
Nossos Nelsons Rodrigues do s�culo 21 (temos muitos) tamb�m foram r�pidos para pintar em tons �picos as peraltices do jovem craque. O j�ri de Darcys e Nelsons lavrou a senten�a: Neymar absolvido, humilhar � do jogo. E n�o � nem humilhar —� brincar!
At� que veio o dia 8 de julho de 2014, e o sinal se inverteu. N�o era o Brasil manemolente e m�gico que se via em condi��es de zoar o advers�rio. Porque o oponente comandava: a Alemanha, a mesma que sofrera para empatar com Gana (2 a 2) e ganhar da Arg�lia (2 a 1). Diante da sele��o brasileira, facilidade total.
Um, dois, tr�s, quatro. Depois que Sami Khedira marcou o quinto, aos 28 do primeiro tempo, seria, segundo a sociologia do alala�, a hora de brincar. Klose chapelando David Luiz. �zil metendo uma lambreta em Maicon. Schweinsteiger e Kroos botando na roda o meio de campo do Brasil.
Mas, como sabemos, n�o foi assim. A Alemanha parecia incomodada com a eviscera��o que ela mesma promovia. Arrefeceu. O escritor ingl�s Nick Hornby descreveu no site da ESPN a afli��o de pessoas que viam o jogo ao lado dele, e que se retiraram da sala. "Elas (...) n�o suportavam mais assistir, porque estavam se contorcendo demais em sofrimento."
Hornby completou: "Brasil x Alemanha foi muito mais parecido com uma ca�a � raposa —mas a parte em que a raposa � estra�alhada, n�o aquela parte que dizem ser divertida, da persegui��o [ao animal]".
Esses sentimentos se refletiram tamb�m dentro de campo. Os alem�es amansaram. Podem ter controlado a goleada para n�o desmerecer o pr�prio feito: ganhar de 12 x 0 seria o mesmo que n�o ter jogado contra ningu�m. Se tiveram pena, nunca saberemos. Se fizeram o que fizeram por altru�smo, ou simplesmente para se poupar para a final, s� a hist�ria dir�.
Fico imaginando se Neymar tivesse jogado, e se os 5 x 0 do primeiro tempo fossem a favor do Brasil. O que ele faria com o advers�rio j� batido? Humilharia? Teria d�?
� especular demais, entrar na fic��o. Neymar ficou de fora, com fratura numa v�rtebra. A Alemanha cravou 7 a 1. A situa��o dos jogadores brasileiros no gramado tamb�m est� descrita em "She's Lost Control": "Eu poderia viver um pouco melhor / Com os mitos e as mentiras / Quando a escurid�o tomou conta / Eu me entreguei e chorei".
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