Graduado em qu�mica e jornalismo pela USP, tem especializa��o em jornalismo cient�fico pelo MIT.
A dor de n�o saber
Quinta-feira, 23 de outubro de 1975. A Congrega��o, �rg�o m�ximo do Instituto de Qu�mica da USP, est� reunida para uma decis�o importante: o que fazer a respeito da professora Ana Rosa Kucinski, desaparecida havia 19 meses.
Em 22 de abril de 1974, Ana Rosa, de 32 anos, disse aos colegas que iria ao centro da cidade almo�ar com o marido, o f�sico Wilson da Silva. No trabalho, Wilson contou algo semelhante: almo�aria com a mulher e depois voltaria ao escrit�rio.
Nunca mais foram vistos. Ambos militavam no que restava da A��o Libertadora Nacional, organiza��o armada de esquerda. Os poucos integrantes ainda vivos eram perseguidos com especial brutalidade pelo regime militar.
Confirmado o desaparecimento, a fam�lia da Ana Rosa iniciou uma cruzada. Recorreu � Organiza��o dos Estados Americanos, ao Departamento de Estado dos EUA, levou o caso ao general Golbery, chefe da Casa Civil do governo Geisel, com intermedia��o do ent�o arcebispo de S�o Paulo, d. Paulo Evaristo Arns.
Pressionado, o ministro da Justi�a, Armando Falc�o, disse em nota oficial que Ana Rosa n�o estava presa. Era uma "terrorista foragida". Apesar das mentiras de Falc�o, as evid�ncias eram fortes: Ana Rosa havia sido levada pela repress�o.
O reitor da USP, Orlando Marques de Paiva, monta um grupo para analisar o caso. No burocrat�s uspiano, uma "comiss�o processante", formada por um representante da consultoria jur�dica da universidade, Cassio Raposo do Amaral, mais dois professores: um da pr�pria Qu�mica, Geraldo Vicentini, e outro da Odontologia, Henrique Tastaldi, que estava se aposentando para depois ser recontratado pelo IQ.
Apesar das evid�ncias fornecidas pela fam�lia, que apontavam para uma captura pelo aparato repressor, a comiss�o faz um relato frio. Prende-se �s faltas de Ana Rosa, e �s consequ�ncias trabalhistas. Recomenda dispensar a professora.
O parecer � encaminhado � Congrega��o. Quinze professores do Instituto de Qu�mica est�o reunidos. Por raz�es at� hoje desconhecidas, o ass�duo presidente do colegiado, Paschoal Senise, n�o comparece. Walter Colli, da bioqu�mica, tamb�m n�o est�.
Em vota��o secreta, por 13 votos a favor e dois em branco, a inst�ncia m�xima do Instituto de Qu�mica da USP demite Ana Rosa Kucinski por "abandono de fun��o".
No livro semificcional "K", o jornalista Bernardo Kucinski, irm�o de Ana Rosa, especula como teria sido esse encontro. Com base na ata da reuni�o, e imaginando o que pensavam os envolvidos, Kucinski constr�i um quadro em que, por raz�es diversas —convic��es reacion�rias, estrat�gia, omiss�o, covardia—, os votantes permitem que uma injusti�a aconte�a.
Mas outros pesquisadores, que analisaram recentemente o processo, t�m uma vis�o mais nuan�ada. Tiram o foco da Congrega��o e destacam a etapa anterior, a do duro relat�rio da comiss�o processante, que teria selado o desfecho do caso.
Independente do ponto de vista, muitas perguntas sobre a Congrega��o jamais ter�o resposta.
De quem foram os dois votos em branco? E foram de protesto, ou sa�ram em branco por uma trivialidade qualquer? Por que o professor Senise, que nunca faltava, se ausentou?
E mais: por que o grupo, que inclu�a gente de esquerda, votou maci�amente para demitir uma professora que eles sabiam ter sido levada pela repress�o? Foram for�ados, ou votaram com a consci�ncia? Por que n�o optaram por algo mais brando, como uma suspens�o?
A historiadora Janice Theodoro da Silva, presidente em exerc�cio da Comiss�o da Verdade da USP, esquadrinhou a papelada. E prefere n�o especular sobre as motiva��es da Congrega��o.
"Como a gente n�o sabe, eu n�o julgo", ela diz. "Temos de conviver com a dor de n�o saber."
Uma dor que os colegas de Ana Rosa na USP conhecem bem.
Em depoimento emocionado (youtu.be/VcrR1JbfH9w), a hoje professora aposentada Shirley Schreier descreve a �ltima vez em que viu Ana Rosa. Na juventude, foram muito pr�ximas. Depois Shirley mergulhou no trabalho e ficou sem tempo para a amiga.
Pouco antes de desaparecer, Ana foi � sala de Shirley conversar. Percebeu que ela estava ocupada, disse que viria outro dia. Jamais voltaram a se ver.
Ter�a-feira passada houve uma cerim�nia no IQ. Na data exata dos 40 anos do desaparecimento, finalmente o instituto pediu desculpas � fam�lia de Ana Rosa Kucinski. A demiss�o foi revogada.
Nos jardins da institui��o, uma escultura da artista Kimi Nii —uma flor met�lica— agora homenageia a cientista que a ditadura assassinou.
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