Graduado em qu�mica e jornalismo pela USP, tem especializa��o em jornalismo cient�fico pelo MIT.
Ele ainda est� mal
Um senhor ingl�s de Manchester, chamado Steven, 54 anos, topete insistente sobre cabelos cada vez mais escassos, camisas justas comprimindo a barriga, � autor da maior prova de que as biografias n�o autorizadas deveriam n�o s� ser permitidas, mas obrigat�rias.
Steven, claro, � Steven Patrick Morrissey, vocalista e compositor da banda fundamental dos anos 80, os Smiths, dono tamb�m de uma carreira solo tumultuada, mas de enorme sucesso.
Cantou e comp�s, como ningu�m, as dores dos solit�rios, dos que sofrem de inaptid�o para a vida.
Morrissey, esse seu nome art�stico, tamb�m � conhecido pelas atitudes duras e por um temperamento imposs�vel.
Mas n�o � bem esse o Morrissey que emerge de um livro rec�m-lan�ado nos pa�ses de l�ngua inglesa, cujo nome j� diz tudo: "Autobiography".
Em uma sequ�ncia nem sempre conexa de eventos, "Autobiography" apresenta Morrissey como eterna v�tima de desprezo e de compl�s --dos colegas de banda, da Justi�a, da imprensa, das gravadoras, de empres�rios incompetentes. Cada um desses, o autor pulveriza com brutal causticidade.
Sim, ele resolveu contar sua hist�ria. E, em nenhuma biografia recente, o pronome possessivo "sua" teve tanta for�a.
N�o h� divis�o em cap�tulos, nem �ndice onom�stico, nem preocupa��es cronol�gicas. Fica a impress�o de que Morrissey sentou-se por alguns dias e escreveu a esmo sobre sua vida, conforme ia se lembrando.
Sabe-se l� com quais estratagemas, Morrissey conseguiu que o livro sa�sse pela cole��o "Penguin Classics", que, como o nome indica, dedica-se a grandes obras da filosofia e da literatura, de Arist�teles a Hannah Arendt, passando por Charles Dickens, Edgar Allan Poe e Primo Levi. Deve ser o �nico autor vivo da s�rie.
Fruto de caprichos, instrumento para pequenas e grandes vendetas, "Autobiography" seria, ent�o, uma obra desprez�vel? Longe disso.
Morrissey escreve t�o bem, tem um dom�nio t�o completo do ritmo da l�ngua, do "turn of phrase", como se diz em ingl�s, que "Autobiography" � uma leitura, na maior parte, agrad�vel e iluminadora.
O maior obst�culo s�o as primeiras p�ginas, de lembran�as da inf�ncia, com min�cias de dezenas de s�ries de TV por que ele era obcecado.
O livro melhora muito quando come�a a falar de m�sica. Ao abordar sua banda preferida, os punks "avant la lettre" New York Dolls, Morrissey produz an�lises ricas. "As can��es dos Dolls tratam da vida acontecendo contra n�s --nunca com ou para n�s." "Os Dolls eram o corti�o de todos os fracassos, n�o tinham nada a perder e mal conseguiam diferenciar entre noite e dia."
David Bowie, outra de suas paix�es, aparece muito. Desde quando Morrissey, aos 13 ou 14 anos, matava aula para acompanhar as passagens de som do �dolo, at� o Morrissey j� consagrado, que percebe a estrat�gia de Bowie de se aproximar de quem quer que esteja na moda e descreve o m�sico mais velho como algu�m "que se alimenta do sangue de mam�feros vivos".
Os Smiths s�o o foco da parte mais tediosa --ou mais reveladora, depende do referencial. � quando Morrissey rem�i o julgamento que o op�s a Mike Joyce, o baterista da banda. Nove anos depois da separa��o, Joyce decidiu reivindicar 25% dos direitos autorais, em vez dos 10% que ganhava.
Joyce venceu. A senten�a do juiz John Weeks foi especialmente dura com Morrissey, chamado de "desonesto, truculento e indigno de confian�a".
Aconteceu em 1996, mas o autobi�grafo n�o engoliu at� hoje. E gasta cerca de 15% de "Autobiography" em diatribes contra os outros ex-Smiths e o sistema judicial. Maldades liter�rias de alta qualidade, mas um teste da paci�ncia para o leitor.
J� perto do fim, mais um impiedoso ritual de vingan�a. A v�tima agora � Julie Burchill, romancista, jornalista, ex-cr�tica de m�sica, conhecida pelo racioc�nio r�pido e pela acidez. Morrissey encontra seu igual. E pratica uma eviscera��o da oponente.
Julie, que est� fazendo uma entrevista com o cantor, � chamada de "cabra velha", e acusada de se vestir "como uma conselheira espiritual".
E mais: "Deus interrompeu a forma��o correta de seu corpo"; "tem as pernas lament�veis do fim da meia-idade"; "seu corpo nu provavelmente � capaz de matar pl�nctons marinhos no mar do Norte".
Como se v�, Morrissey usou "Autobriography" para acertar contas com o mundo e seus tantos inimigos. Fez isso sem amarras, aparentemente sem um editor, com estilo, � sua maneira. "Auto", sem d�vida. Mas biografia?
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