Graduado em qu�mica e jornalismo pela USP, tem especializa��o em jornalismo cient�fico pelo MIT.
Em frente � Kiss
Da ampla avenida Rio Branco, que tem canteiro central arborizado com muitos bancos de concreto, sai, em declive, apontando para o leste, a rua dos Andradas. A cal�ada do lado direito de quem desce tem uma ag�ncia banc�ria na esquina, depois o consult�rio de uma vidente, logo ao lado uma academia de gin�stica, em seguida uma empresa grande de fotos para formaturas.
Mais abaixo da loja de fotografias, aqui no centro de Santa Maria, a caminhada se interrompe: h� um cord�o de isolamento. Entre o cord�o e a cal�ada, vasos e vasos de flores, cartolinas com mensagens de protesto ou saudade, fotos de gente muito jovem, e at� um atestado de �bito colado na parede.
� uma esp�cie de memorial, � moda dos que se veem na porta de escolas americanas depois dessas matan�as cada dia mais comuns.
O ponto das homenagens � o n�mero 1.925 da rua dos Andradas. Ali, fica, ou ficava, a boate Kiss, onde, domingo passado, mais de 230 jovens morreram em um inc�ndio.
Passa um pouco da meia-noite de quinta-feira. Volto para o hotel depois de um dia longo de trabalho, preparando uma reportagem para o "Fant�stico". � a primeira vez que visito o que restou da Kiss.
O choque inicial � tamb�m definitivo: o choque da trivialidade. N�o se v� uma pra�a de guerra, tanques, n�o h� sobrevoo de helic�pteros, n�o se enxergam ru�nas, vest�gios de deslizamentos de terra, escombros ou o esqueleto de um pr�dio consumido pelo fogo. Nada do que se imagina existir em um lugar que, apenas quatro dias antes, foi cen�rio de uma carnificina.
A fachada da Kiss mal tem resqu�cios do inc�ndio. S� mesmo os buracos feitos de improviso nas paredes, na tentativa de abrir novas sa�das. Poderia ser uma obra qualquer.
Se existe alguma semelhan�a entre a rua da boate e uma zona conflagrada, � com o que mostra o filme "Guerra ao Terror", de Kathryn Bigelow: ciladas urbanas.
A geringon�a jogada na rua pode ser uma bomba improvisada. O congestionamento repentino pode ser a deixa para franco-atiradores entrarem em a��o.
Disparados os tiros, cometido o atentado, tudo volta ao que era. Fam�lias fazem compras no verdureiro, crian�as jogam bola na rua.
� a mesma sensa��o neste in�cio de madrugada em Santa Maria. Havia uma boate, a boate era uma armadilha, pegou fogo, matou muita gente, fim. A dor indiz�vel est� em cada casa -ou melhor, em todas as casas. A trag�dia vai marcar a cidade para sempre. Mas n�o de uma forma f�sica, exceto por uns poucos metros no entorno imediato da Kiss.
A vida segue, Santa Maria est� acordada. O Gr�mio disputa a decis�o da pr�-Libertadores contra a LDU do Equador.
Um motoboy aparece para dar uma olhada no que restou. Chegando bem perto, em um dos extremos do cord�o de isolamento, ainda d� para sentir o cheiro de queimado.
Um casal deixa a moto na av. Rio Branco e desce a p� at� a frente da boate. A mocinha de capacete cor-de-rosa examina o cen�rio sem demonstrar emo��o. Dois gordinhos de bermudas falam baixo.
"Mas cad� o queimado, cad� o queimado?", pergunta, em tom de desconfian�a, como se duvidasse de que morreram mesmo tantos jovens, uma senhora de cabelos negros at� a cintura e saia comprida, acompanhada de outras mulheres de cabelos negros at� a cintura e saias compridas.
De repente, gritos em um bar pr�ximo. S�o de alegria. Marcelo Grohe, goleiro gremista, pegou um p�nalti. Vit�ria ga�cha. Roj�es, mais gritos. � festa. Talvez mais discreta do que se tudo estivesse normal na cidade. Mas uma festa mesmo assim.
Encerro a visita. Nas cinco ou seis quadras que separam a Kiss do hotel, pessoas felizes bebem na rua, muitas com a camisa do time vencedor. Uma portinha iluminada de vermelho indica, quem sabe, um bordel em plena opera��o.
J� � quase uma da manh�, um gremista ainda passa buzinando. Da janela do quarto, vejo o canteiro central da avenida Rio Branco. Um casal de meia-idade se beija, sentado em um dos tantos bancos de concreto.
Livraria da Folha
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