Graduado em qu�mica e jornalismo pela USP, tem especializa��o em jornalismo cient�fico pelo MIT.
O pior ano de nossas vidas
Trezentos e sessenta e cinco dias de farsa, de conversas imagin�rias, de n�o di�logos, palavras atravessadas, da glote que se fecha, asfixia, na garganta �spera o ar que passa queima como gelo.
De n�o presen�a, n�o sorrisos, de perda de tempo.
Ano de indecis�es, ou decis�es erradas, desastre iminente, passos mal dados, de indefini��o, de atrasos, adiamentos. De inseguran�a, arrependimento, da brutalidade da d�vida, de n�o pensar, ou pensar demais. De caixas postais vazias, telefones sempre mudos, mensagens dissipadas no �ter como fuma�a virtual.
Da aus�ncia de desejos ou ambi��es. De um grito desesperado no v�cuo, onde o som n�o se propaga. Do c�u coalhado de coisas mortas, estrelas que j� n�o existem (mas s� agora seu brilho nos atinge, estertor feito de f�tons).
De oportunidades desperdi�adas, contatos nunca estabelecidos. De papos de araque, dissimula��es, promessas n�o cumpridas (feitas e recebidas). De pouco se lixar, sem prazos, sem projetos, sem horizonte, b�ssola de agulha desmagnetizada. De um �nico olhar, longo, indiferente, que fita uma plan�cie de vidro opaco.
Ano de falta de ideias, de lugares-comuns, ano da p�gina em branco, do teclado em sil�ncio, do caderno vazio, de falar sozinho, ou nem isso.
Do eco dos pr�prios passos na madrugada, rua escura coberta de n�voa, do caminhar sem rumo, de nunca ter rumo, de escolher os piores trajetos, da ang�stia da perda total.
Ano de roer as unhas, ranger os dentes, de sopro no cora��o, de sangrar aos poucos (cada gota que mancha traz o vermelho do ferro e a densidade do merc�rio). De perder apostas, ficar devendo, implorar clem�ncia, ouvir um n�o a cada hora.
Ano de vacilar na curva, agonizar, enxergar o pr�prio corpo do alto, percorrer t�neis, uma luz, depois o escuro mais escuro, todos os comprimentos de onda em absor��o total.
De ir embora para nunca mais voltar, mas acabar voltando por falta de alternativa. Do reflexo em estilha�os, paredes que se fecham, um quarto frio, TV fora do ar, solid�o.
De mandar mensagens a si mesmo, passar datas em branco, esquecer essas datas, ou lembrar e n�o sentir nada, nada mesmo, fechar os olhos, fazer contagem regressiva e pedir para acabar logo.
Ano sem met�foras nem ironia, nenhuma figura de pensamento ou linguagem, frieza, ano bege, indistinto. De disson�ncias, harm�nicos fora de fase, interfer�ncias destrutivas.
Ano de isolamento, de mergulhar nas can��es mais sombrias. De assistir mentalmente a sess�es cont�nuas de filmes em que ningu�m � feliz. De espinha em peda�os e cora��o intranquilo.
De experi�ncias terr�veis, aniquila��o, ampolas vazias, chegar ao limite, das janelas mais altas, de escorregar com tudo, de deslizes sem volta ou perd�o.
De ser um fio desencapado, nunca relaxar. De ter uma britadeira end�gena entre os ouvidos, 24 horas por dia, descanso imposs�vel, inferno, vig�lia autoimposta.
Ano de dor, tens�o sem fim, m�sculos contra�dos, sinapses mergulhadas em um torpor de afasia, impulsos nervosos abaixo do n�vel de detec��o. De tremores, del�rio na noite, len��is ensopados.
Ano de todos os males, de almas penadas, dos c�rculos conc�ntricos do inferno, de uma espiral de dana��o, dos pesadelos mais realistas.
Da cidade medonha, do caldo podre da enchente, dos parasitas no esgoto, das doen�as sem cura.
Do erro do m�dico, do planejamento prec�rio, da combust�o incompleta, da fuligem que mancha o pulm�o.
Do papel que n�o vale nada, chutes, n�meros sem sentido, de conclus�es indevidas. Do experimento que falha, do desespero, da fraude, da execra��o.
De n�o entender nada, de correr sem ter aonde chegar, do �nibus que n�o para. Dos rostos indiferentes que passam na chuva, das vozes distantes em l�nguas guturais, corredores que nunca terminam, labirintos que desembocam em novos labirintos.
Cinquenta e duas semanas em que cem flores murcham. De mart�rio, desprezo, inc�modo, deslocamento, deficit de aten��o, pensamentos obsessivos.
Do fracasso recorrente, vexame, vergonha. E da desesperan�a, eterna companheira.
Todo ano novo pode ser o pior ano de nossas vidas.
cby2k@uol.com.br
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