Um mundo sem estantes

Um amigo entra na minha casa nova, v� as estantes ainda vazias e come�a o bombardeio: "Para que espa�o para tanto livro? Livro est� acabando".

Ele n�o quer saber da vista, de nenhum detalhe da obra, da arquitetura ou da decora��o (n�o que eu tivesse algo a dizer sobre essas coisas, mas, enfim, era uma casa nova). O inc�modo com as estantes � maior que tudo isso.

Para me safar do cerco, banco o moderno. "Claro que eu sei, os livros eletr�nicos s�o o futuro. Mas isso aqui � para armazenar o que eu j� tenho, entende? At� hoje guardo livros na casa dos meus pais, para voc� ter uma ideia."

Cascata, t�tica diversionista. Eu sabia que, se j� estava sob tiroteio pesado, tudo iria piorar quando meu amigo visse a outra face do m�vel. Ali, eu dava os primeiros passos para eliminar a bagun�a dos meus CDs. E "in style", � moda gringa, ordenando por sobrenome.

Um servi�o que, digamos, me dava certo orgulho. Mas o sentimento s� dura at� o pr�ximo bala�o: "E esse monte de lugar para CDs? CD n�o vai existir mais".

Em busca de tr�gua, sugiro sairmos para jantar. Encontramos a mulher dele. Como na faixa de Gaza, o cessar-fogo tem curta dura��o. "O �lvaro est� maluco, botou um monte de estantes na casa nova, parece que n�o sabe que livros e CDs est�o condenados."

Isso faz alguns anos. Nem preciso dizer que, tanto para livros quanto CDs, o espa�o naquelas estantes, que pareciam obsoletas, est� no fim. E o mais ir�nico: meu amigo, profeta do apocalipse do pl�stico e do papel, nunca chegou a comprar um leitor eletr�nico de livros. N�o tem Kindle nem iPad. Continua encomendando seus volumes de papel.

J� eu, dono do m�vel ultrapassado, adotei o livro digital. O encanto inicial foi grande, at� escrevi sobre isso. Caminho sem volta para um mundo sem estantes? Talvez n�o.

H� poucos meses, o ator Bruce Willis revelou que planeja algum tipo de a��o legal contra a Apple. O objetivo � garantir que sua vasta cole��o de m�sica, em grande parte baixada na loja virtual de Steve Jobs, fa�a parte da heran�a que ele deixar� �s filhas.

Nas entrelinhas da burocracia, Willis descobriu que as m�sicas n�o s�o exatamente dele, nem de ningu�m que as compra. S�o, de certo modo, alugadas. Se ele morrer, voltam para a Apple. N�o quer deixar, para as tr�s jovens, um legado de sil�ncio.

O pesadelo que Willis tenta evitar, uma mulher norueguesa j� enfrentou. Identificada apenas como Linn, um dia ligou seu Kindle, o leitor eletr�nico da Amazon. Ao conectar o aparelho � web, o golpe: todos os livros que j� tinha comprado foram apagados em um segundo.

Seguiu-se um pesadelo kafkiano. Ao contatar a Amazon, foi informada de que havia problemas de fraude em uma outra conta, tamb�m associada a ela. Como puni��o, todas as contas estavam sendo canceladas. Adeus, livros digitais.

S� um problema: ela n�o tinha nenhuma outra conta. Era claramente um engano. Mas a Amazon se recusava a dar detalhes. Linn n�o tinha como se defender.

Alguns escritores souberam do caso, e passaram a divulg�-lo. S� a partir da� a situa��o foi aparentemente resolvida. Os livros eletr�nicos foram restitu�dos a Linn, independente do status da conta.

O futuro desse universo cada vez mais digital � cheio de riscos. Imagine: colapso na nuvem. "Crashes" de servidores, fibras �pticas rompidas, blecautes em s�rie nos principais polos hi-tech da Terra.

Nos prim�rdios da web, uma situa��o assim teria uma consequ�ncia grave: internet fora do ar. Grave, por�m �nica. M�sicas, filmes e demais arquivos baixados pela rede estariam a salvo, guardados nos computadores das casas das pessoas.

Mas, hoje, tudo mudou. Um crash gigantesco seria muito mais devastador. Porque cada vez menos gente armazena em casa seus arquivos digitais. Est� tudo em servidores poderosos, espalhados pelo mundo. Nessa nuvem, digital e amorfa.

N�o � fora de prop�sito imaginar um cen�rio de perda de contato com ela. Sem livros f�sicos, sem CDs, os arquivos digitais perdidos na nuvem isolada. A distopia digital extrema. O mundo das ideias salvo pelas
estantes.

cby2k@uol.com.br