A crescente atenção voltada à educação profissional no ensino médio nem de longe é uma tendência passageira. Em nosso tempo, assombrado pelas ameaças do agravamento da desigualdade e da automatização precarizadora, a educação profissional é, na verdade, a resposta às necessidades emergentes e está em condições de energizar um novo caminho na trama educacional brasileira.
Historicamente, o ensino profissional ficava reservado aos "menos afortunados", enquanto o ensino superior era o reduto da elite. Essa divisão arcaica estabeleceu uma dicotomia discriminatória entre o fazer e o pensar. Contudo, à luz da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que estabelece a conexão da educação com o mundo do trabalho e a prática social, não podemos nos furtar ao questionamento: que trabalho é esse?
Se seguirmos a filosofia de Álvaro Vieira Pinto e de Paulo Freire, percebemos que o trabalho não é apenas uma tarefa rotineira, mas uma expressão da identidade humana, uma ação criativa e um pilar educacional. Em uma era cada vez mais dominada pela tecnologia, não podemos perder de vista o aspecto humano e a necessidade de uma educação que prepare os jovens não apenas para uma profissão, mas também para a cidadania ativa, o que envolverá, necessariamente, um engajamento crítico e criativo com foco na ciência da técnica que configura o mundo do trabalho.
E é aqui que a formação técnica integrada ao ensino médio brilha como promessa. Ela não se limita a desenvolver habilidades técnicas, como, por exemplo, programação ou gestão de redes de computadores. Não basta saber instalar softwares, programar e gerenciar uma rede de computadores. Essa formação integrada instiga os estudantes a compreenderem o contexto mais amplo de suas ações, como o impacto ambiental e social do uso da tecnologia e as relações de trabalho.
Uma educação que visa a formação integral é essencial neste modelo. A preparação para o trabalho ou até para uma ocupação específica é importante, mas deve considerar a compreensão da realidade e o local ocupado no mundo para que, de fato, a atuação seja entendida como uma escolha e não um caminho predefinido.
No entanto, o caminho para uma integração bem-sucedida não é simples. A democratização do acesso à educação profissional de qualidade é fundamental em um país marcado por desigualdades como o Brasil. Precisamos de infraestrutura robusta, materiais didáticos relevantes e, acima de tudo, professores bem preparados e valorizados.
O estudante de ensino médio imbuído com a formação técnica deve ser capaz de conhecer o impacto de sua atuação na sociedade, no uso de dados, na relação entre o trabalho realizado e sua remuneração, no papel na cadeia produtiva etc. É necessária uma reflexão crítica para, então, poder intervir na realidade, uma vez que a vocação da humanidade é a de ser sujeito, como ensinou Paulo Freire. Essas relações são essenciais para uma formação cidadã integral e desenvolvidas na articulação das ciências do trabalho com a matemática, ciências humanas e sociais, linguagens e ciências da natureza.
Essa articulação da educação profissional com as áreas do conhecimento, muitas vezes, dá significado ao próprio ensino médio, trazendo contexto para determinados conteúdos que pareciam não fazer sentido. O investimento em professores que combinam expertise profissional com formação pedagógica é imprescindível, uma vez que são eles a ponte entre a teoria e a prática, entre o mundo acadêmico e o profissional.
A educação profissional no ensino médio não é apenas uma via para o mercado de trabalho, mas uma ferramenta poderosa para a formação cidadã integral. Ela tem o potencial de tornar a educação mais relevante e empoderadora, desde que implementada com visão, cuidado e compromisso com a justiça social.
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O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha de S.Paulo sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Fernanda Yamamoto foi "La Maza", interpretada por Mercedes Sosa e Shakira.
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