É Logo Ali

Para quem gosta de caminhar, trilhar, escalaminhar e bater perna por aí

É Logo Ali - Luiza Pastor
Luiza Pastor

Tire esse peso das costas

Você não precisa levar a goiabada para passear

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Quando, em 2015, saí do Brasil para fazer os 450km planejados para 20 dias do Caminho de Santiago, na Espanha, a mochila pesava 11kg. Nela iam roupas para visitar a família e, ao final da jornada, flanar uns dias por Barcelona. Terminada a primeira etapa social da viagem, despachei 4gk de itens para a posta restante dos correios de Barcelona. Comecei a caminhada, assim, com 7kg, peso da mochila incluído.


Antes de continuar, um parênteses. A opção que escolhi, saindo da cidade de minha família, não era exclusivamente pela trilha mais famosa, o Caminho Francês, que sai dos Pirineus, com 800km no total. Eu não tinha tempo para fazer tudo isso no ritmo de que me sei capaz, e alguns de meus colegas só dispunham de três semanas de férias. Optamos, então, por uma rota alternativa, uma das muitas disponíveis, o Caminho do Sudeste. Provavelmente a pior escolha em um verão de temperaturas acima de 40 graus. É um longo trecho praticamente sem árvores, com muita poeira, girassóis, trigo, mais poeira, e horas a fio sem cruzar com um ser vivente —teve dia em que só encontramos um coelho em 27km. Roubada de amadores que só interceptamos o Caminho Francês depois de três intermináveis dias. Mas sigamos.


Castelo medieval em cidade espanhola
Castelo da Mota, onde começou nossa jornada do Caminho de Santiago, pela rota do Caminho do Sudeste - Arquivo pessoal

Já na primeira etapa, 26 km depois de sairmos da pequena cidade de Medina del Campo e chegando a Tordesilhas (sim, aquela do tratado que em 1494 dividiu o mundo em dois latifúndios para Espanha e Portugal), resolvi que 7kg seriam demais para minhas então quase sessentonas costas. Dali mesmo já despachei mais 2kg de supérfluos dos quais, garanto, não senti falta alguma até o final da viagem.


O que sobrou, afinal?

Reduzindo a tralha ao mínimo, ficaram duas camisetas de trilha, duas calcinhas, dois tops, dois pares de meias, uns chinelos e uns shorts para arejar o corpo ao final de cada jornada. No necessaire, hidratante corporal e de rosto, protetor solar, shampoo e desodorante, tudo fora das embalagens originais, de materiais mais rígidos e pesados, e acondicionado em tubinhos comprados em lojas de 1,99, os mais leves que encontrei.

Nem todos os produtos durariam todo o trajeto, claro, mas a mim compensava mais comprar um shampoo novo no meio da viagem do que carregar a embalagem original. Cada vértebra de minha coluna agradecia, mesmo pagando o desperdício em euros. E para as horas em que o corpo se revoltava pela jornada excessiva, em trajetos diários de até 31km, a farmacinha básica continha analgésicos, antialérgicos, curativos para bolhas, spray antisséptico e repositores da flora intestinal. Ninguém quer piriri no meio do mato, quer?

Fora isso, alguns itens mais pesados: o saco de dormir de verão, de 680g, porque você nunca sabe em que cama vai jogar seu corpinho exausto; o chuvisqueiro, espécie de poncho à prova d'água com capuz que cobre a pessoa e sua mochila, resultando numa versão de algo que lembra um camelo emborrachado e pesa 450g; e duas garrafinhas de água de meio litro. Só esses itens, mais a mochila de 40 litros que, vazia, pesa pouco menos de 1kg, somavam 3,13 kg, ou 65% do total. No corpo, além de uma calça de trilha (fuja de jeans, que quando molham levam uma eternidade para secar!) e das botas à prova d’água (apesar do calor, protegem os tornozelos de torções melhor que as tentadoras papetes), bastões de apoio (eu uso dois, tem quem goste de usar um só, mas para mim, toda ajuda extra é uma bênção), uma pochete (ignore sua consultora de moda, por favor!) contendo celular, carregador, documentos, dinheiro, e algumas balinhas para entreter a boca entre os destinos. Boné, óculos e coragem completavam a alegoria peregrina.

Mesinha com frutas e água para que os peregrinos peguem o que precisam e paguem quanto acharem justo
No Caminho de Santiago, barraquinha oferece água e frutas e o peregrino paga o que achar justo - Arquivo pessoal

Bom, se até aqui falamos de uma caminhada que, apesar de longa e por vezes pesada, tem biroscas e pousos garantidos a cada poucos quilômetros em sua maior parte, essa não é a regra das trilhas do planeta —e do Brasil, muito menos. A maioria exige planejamento maior das provisões e dos equipamentos que vão ser necessários para levar a empreitada a bom termo. E é aí que entra gente que tem experiência em viajar leve e poupar o lombo. Segura o fôlego, porque eles sabem do que estão falando.

O que diz quem entende do assunto?

A ideia do engenheiro ambiental Maurício D. Melati, 34, de criar um canal no YouTube para ajudar a facilitar a vida dos caminhantes nasceu ao encontrar, em plena Patagônia, um trilheiro que carregava uma mochila de 80 litros "até o talo de tralha", e uma segunda mochila menor no peito. Ante o sofrimento da criatura, e após convencê-lo a "abandonar cinco latas de seleta de legumes" e redistribuir o peso de maneira mais racional, resolveu compartilhar o conhecimento adquirido ao longo de décadas de aprendizado e perrengues em vídeos de fácil compreensão para leigos ou nem tanto.

Maurício D. Melati, engenheiro ambiental, dono do canal Graxaím Congelado, em Cânion da Pedra, nos Aparados da Serra (RS) - Arquivo pessoal

Nascia, assim, o Graxaím Congelado, nome inspirado em um graxaím (cachorro-do-mato frequente no sul do país) encontrado, claro, congelado em pé em Aparados da Serra, região gaúcha que Melati diz ser uma das que mais gosta de percorrer. Afinal, ele bem sabia o que era ter um princípio de congelamento nas pontas dos dedos (chamada de frostnip pelos iniciados) por causa de equipamento inadequado para uma empreitada no Aconcágua.

Para Melati, é importante ter em mente que riscos sempre serão inerentes à atividade. E ele cita estudo realizado em 2018 por um grupo de pesquisadores da Universidade da Califórnia e da Luisiana, com mais de 700 pessoas nos 354 km que formam a trilha John Muir, na Califórnia (EUA). Na pesquisa, entre os fatores de maior risco para se machucar, ficar doente ou ter de ser evacuado lidera o ranking o peso da mochila —mais relevante que a idade ou o peso do entrevistado.

Antes disso, em 2009, outro grupo de pesquisadores da Escola de Medicina Harvard e de importantes hospitais de Boston, nos Estados Unidos, havia publicado o resultado de levantamento feito para avaliar os impactos do calçado e do peso das mochilas no organismo de trilheiros de longa distância. A conclusão principal foi de que, mais que o calçado escolhido, embora fizesse alguma diferença, o maior causador de problemas era mesmo o excesso de peso às costas.

"Pensar de forma inteligente os equipamentos para andar leve ajuda na segurança e redução de riscos, mas é importante considerar o planejamento, o preparo físico e o psicológico" antes de enfrentar uma longa caminhada, como a citada no estudo. "Mas, pela minha experiência, não sobrecarregar a mochila ajuda em todos esses pontos", acrescenta ele.

Para o psiquiatra, hebiatra e trilheiro experiente Rodrigo Rodriguez, 47, há uma confusão entre ir leve e ir sem conforto e de forma insegura. "Por si só, ir leve se traduz imediatamente em segurança e conforto. Indo leve você sofre menos desgaste e fadiga, que se reflete em menos lesões e menos riscos de quedas e outros acidentes, e o conforto durante a caminhada é muito maior", explica, corroborando os estudos citados.

Rodrigo Rodriguez, em Torres del Paine, Chile - Arquivo pessoal

Não leve seus medos para passear

Mas Rodriguez faz um alerta: "A grande questão é ir leve sem ser burramente leve. Levar água ou comida suficientes para o tempo previsto, por exemplo, é essencial. Equipamentos de emergência e de segurança nunca devem ser subestimados ou deixados para trás", lembra. E sobre conforto, ele aponta que é importante considerar "o que dá conforto real e o que dá conforto psicológico ou de irrisório". Como exemplo, ele cita a escolha entre fogareiros a gás e espiriteiras a álcool. "Fogareiros são mais rápidos, você terá seu jantar mais cedo, mas são 5 a 8 minutos de diferença. Isso é um conforto real? Ou os 500 gramas a menos de um kit de cozinha mais leve serão melhores?"

E se viajar leve é o sonho de consumo da maioria dos mortais que já botou uma mochila às costas, Rodriguez ressalva que a aquisição de equipamentos deve ocorrer de forma organizada. "Duas ideias sintetizam esse aspecto", diz ele. "Primeiro, não carregue seus medos, não leve equipamentos que mitiguem psicologicamente esses medos se eles têm pouco fundamento", enumera.

"Segundo, troque equipamentos por técnicas. É comum trilheiros porem tudo em vários sacos e necessaires separados, mas se somar o peso de tudo isso, vai-se facilmente a 1kg, que pode ser eliminado arrumando a mochila de forma técnica e adequada", continua —para carão desta entrevistadora, que costuma fazer justamente isso, encher a mochila de sacos, saquinhos e afins. Ai!

Melati concorda que "conforto é bastante subjetivo", mas ressalta que no estágio atual de oferta e tecnologia de equipamentos, não é necessária uma escolha radical. Para muitos, viajar leve é desvirtuar o lado "raiz" da prática esportiva e há quem argumente que aquela porção extra de goiabada não pode faltar na bagagem. Entretanto, para Melati, "no estágio atual da oferta e tecnologia dos equipamentos, não é necessário abrir mão do conforto para andar leve". OK, que tal compensar o peso da goiabada com uma mochila menos trambolhosa?

Melati também rejeita a imagem frequente no meio de que equipamentos mais leves são, necessariamente, mais caros, por serem em sua maioria importados. "Muita gente acaba acumulando muitos equipamentos medianos em casa e, no fim das contas, a soma disso daria para comprar um único equipamento bom, e já temos alguns bons produtos nacionais", garante.

O segredo para evitar encher o armário de tranqueiras que nunca mais serão usadas, segundo Rodriguez, é analisar o roteiro pretendido. "Brasileiro acha que pesquisa, estudo e ciência são desinteressantes, mas há na internet uma infinidade de textos de boa qualidade para aprender antes de sair comprando equipamentos e escapar de furadas". Melati, por sua vez, sugere que se crie uma planilha de itens básicos, com seus pesos, e a demanda que uma boa pesquisa entre pessoas mais experientes naquela trilha específica pode ajudar a identificar. Em alguns lugares, levar uns litros de água a mais pode ser essencial —e água pesa. Talvez seja o caso de deixar a goiabada de lado de novo.

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