Ciência Fundamental

O que pensam os jovens cientistas no Brasil?

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Descrição de chapéu genética

Como os seres vivos foram criados?

A complexa dança entre as diferentes forças que governam a natureza

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Douglas Galante

O texto abaixo responde à pergunta de Cora Weisner, 10 anos, para a série "Perguntas de criança, respostas da ciência"

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Ao nos perguntarmos como surgiram os seres vivos, partimos do pressuposto de que uma entidade os criou. Mas, apesar de grande parte das religiões serem fortemente embasadas em mitos de criação, com entidades sobrenaturais que criaram a natureza, o Universo e os seres vivos, não é isso que a ciência tem nos mostrado. O Universo prescinde de um criador, bastam leis naturais bem ajustadas de modo a permitir que a vida surja e evolua espontaneamente, em locais onde algumas condições mínimas sejam satisfeitas.

A discussão sobre a origem dos seres vivos no planeta é muito antiga, e talvez uma das primeiras reflexões científicas sobre o tema tenha surgido com o filósofo grego Tales de Mileto (639-544 a.C.). Ao tentar separar a discussão mitológica de uma mais racional e geral, ele fez uma observação importante. Tales notou que a água era abundante no planeta, e que a existência de todos os seres vivos (na época, animais e plantas, pois não se conhecia o mundo microbiano) parecia depender dela. Assim, postulou que a vida deve ter se originado a partir da água, e todo organismo dela privado morreria. Hoje sabemos que isso não é totalmente correto nem completo, mas tal postulado já trouxe uma noção muito moderna da vida, centrada em observações do mundo real e não em especulações filosóficas ou mitológicas.

Arte ilustra uma mulher flutuante com o braço esticado, prestes a encostar o dedo indicador em plantas que estão em uma superfície; embaixo delas há animais. a arte remete à pintura "a criação de Adão", de Michelangelo.
Ilustração: Lívia Serri Francoio - Instituto Serrapilheira

A ciência tem se debruçado sobre essa difícil pergunta partindo de duas abordagens principais: de cima para baixo (top-down) e de baixo para cima (bottom-up). Em ambas, o naturalista britânico Charles Darwin ­teve um papel fundamental. Um dos primeiros cientistas a recolher informações de maneira sistemática e ampla sobre a diversidade da vida, vivente ou fóssil, ele fez uma síntese da vida no planeta que acabaria resultando em sua teoria da evolução, uma das mais clássicas aplicações do estudo de cima para baixo, ou seja, partindo do que é conhecido atualmente e inferindo o passado. Hoje, com base em modernas informações genéticas, sabemos que há uma forte chance de sermos todos descendentes do mesmo antepassado, o Último Ancestral Universal Comum ou LUCA, da sigla em inglês Last Universal Common Ancestor. Provavelmente um microrganismo que viveu nos mares primitivos e que mais tarde se diversificaria.

Na abordagem de baixo para cima, construímos a complexidade da vida a partir de bases mais simples: começamos com átomos e moléculas isoladas e estudamos a interação entre eles e o contexto em que seria possível a produção de entidades químicas complexas o bastante para ter características de seres vivos, como capacidade de automanutenção e autorreprodução. E aqui mais uma vez entra Darwin, como atesta a carta que escreve a seu amigo e botânico Joseph Hooker, em 1871, na qual pela primeira vez ele formula um modelo da provável origem de entidades biológicas a partir de sistemas químicos mais simples: "mas e se (e que grande se) pudermos imaginar uma pequena poça quente com todos os tipos de sais de amônia e fosfóricos – luz, calor e eletricidade presentes –, e que um composto proteico fosse quimicamente formado, pronto para passar por mudanças ainda mais complexas [...]".

As ideias de Darwin para um início puramente químico da vida impactaram o mundo científico, estimulando dois pesquisadores, um na Inglaterra, John Haldane (1892-1964), e outro na Rússia, Aleksandr Oparin (1894-1980), de forma simultânea e independente, a criar um modelo teórico que embasasse essa química prebiótica, ou seja, as reações químicas que precedem à vida. As ideias de Haldane e Oparin finalmente puderem ser postas à prova em 1953, quando o pesquisador Harold Urey (1893-1981) e seu então aluno de doutorado Stanley Miller (1930-2007), na Universidade de Chicago, EUA, recriaram em laboratório as condições que os modelos teóricos haviam previsto. O resultado surpreendente foi que, a partir de compostos muito simples e de descargas elétricas, foi possível produzir moléculas que antes eram tidas como unicamente biológicas, como os aminoácidos. Assim a química prebiótica se consolidou como área de pesquisa, e muitos outros experimentos seriam feitos dali para a frente, para testar as várias etapas da origem da vida.

Usando as duas abordagens, estamos ainda aprendendo como a química original do planeta pôde se complexificar de forma espontânea, originando os primeiros seres vivos capazes de reprodução e transferência de informação entre gerações. Uma vez que essas entidades tenham surgido, foi uma questão de tempo (não pouco: centenas de milhões a bilhões de anos…) para que a evolução criasse a diversidade de vida que conhecemos. Não há nada de sobrenatural ou místico no processo, nem mesmo de intenção ou direcionalidade, mas sim uma complexa dança entre as diferentes forças que governam a natureza, ora puxando em direção à diversidade química, molecular e biológica, ora em direção à extinção, eliminação, simplificação.

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Douglas Galante é astrobiólogo e pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais.

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