Jairo Marques

Assim como você

Jairo Marques - Jairo Marques
Jairo Marques
Descrição de chapéu pessoa com deficiência

Observe bem quem e o que você 'deixa pra lá'

Fazemos isso o tempo todo, com uma turma enorme de gentes, e para abreviar situações que queremos escapar

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Uma amiga que é surda oralizada —se comunica com a língua portuguesa— expôs dia desses nas redes sociais o quanto é doloroso passar a vida toda ouvindo "deixa pra lá" daqueles que perdem a paciência em compreender o que ela tenta expressar, às vezes, precisando que se fale novamente ou com mais calma ou com a voz mais alta.

Senti um desconforto e uma identificação imediatos com o desabafo. Primeiramente, por já ter eu praticado o "deixa pra lá" com quem eu supus que não me compreenderia, logo, o melhor caminho seria interromper a troca. Cada um com seu cada qual.

Duas mãos enrugadas descansam sobre o colo de uma pessoa, que usa relógio de pulso. A imagem é em preto e branco
Por impaciência, os mais velhos são alvos frequentes do 'deixar pra lá' - Emidio Luisi/Divulgação

Depois, veio a bigorna no peito ao pensar nas inúmeras vezes que deixaram de argumentar comigo, lascando um "deixa pra lá", sorrateiramente atribuindo mentalmente a minha condição física de cadeirante uma inabilidade de compreensão.

Como é possível concluir tal disparate? Com os arremates das conversas, invariavelmente ligando a deficiência a uma falta de experiência de vida e práticas e projetando nela ultra sensibilidades que afetariam a compreensão do mundo cru e nu. Ah, e todo o mundo saca quando se é silenciado.

E fazemos isso o tempo todo, com uma turma enorme de gentes, e para abreviar situações que queremos escapar, evitar, ignorar, fazer de conta que não aconteceu.

Desistimos de falar com nossos velhos por serem cabeças duras e nunca estarem dispostos a mudar de lado. Assim, resumimos a conversa, fingimos que concordamos e… deixamos pra lá. O velho perde oportunidade de diálogo, o mais jovem perde, no mínimo, um bom causo.

Com as crianças não é diferente. Damos o vácuo a elas quando perdemos a paciência de explicar um conceito pela milésima vez e ignoramos a máxima da infância: a meninice adora uma repetição.

De tanto deixarmos para lá os pequenos, pode ser que não aprendam a andar de bicicleta, a entender de astrofísica, de cuidar das árvores e de dar conta de si mesmos.

No amor, a gente "deixa pra lá" porque pode dar briga, o que tem lá o seu sentido no dia a dia em se tratando de questões triviais. Até faz parte do bem-querer. O problema é aquilo que de fato não se abandona no pensamento e volta, mais forte, cheio de interpretações e carregado de rancores.

Insultamos e inferiorizamos quem pensa diferente porque é melhor se economizar com quem tem cabeça dura e não irá alcançar jamais nossos incontestáveis e elevados valores. E a cada "deixa pra lá" nessa disputa, mais radicais ficam os lados, menos se cria o terreno da convivência entre as diferenças.

Às vezes, um "me explica melhor" pode ampliar em níveis surpreendentes nossa capacidade de ser mais receptivos, de ver além, de estigmatizar menos e de não criar situações de cortes nada lacanianos nas relações humanas.

Mas é reconfortante aplaudir as mulheres não deixando as meninas para trás nem os parlamentares seguirem à frente. Os negros não abandonando os debates de suas dores e de sua história. Os diversos não se encolhendo diante daquilo que os diferenciam. Não vamos deixar para lá.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.