Putin não espera nada de Biden, mas acordo nuclear é janela para abertura
Relação tende a ser conflituosa, dada desconfiança do Kremlin com EUA
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A Rússia de Vladimir Putin nada espera dos EUA, sejam eles de Donald Trump ou sob a nova direção de Joe Biden. Em relação ao democrata, já até comentou acerca da fama dele de ser linha-dura com o Kremlin.
Putin ter deixado basicamente Jair Bolsonaro sozinho na fila dos cumprimentos ao novo presidente americano é só significativo do nanismo internacional do Brasil: o Planalto não tem nenhum contencioso geopolítico real com Washington.
A Rússia, por sua vez, tem uma lista enorme. É preciso voltar aos anos 1990 para iluminar um pouco os motivos russos para a desconfiança em relação aos EUA.
Com o fim da União Soviética, em 1991, a Rússia emergiu como um grande e disfuncional Estado, aberto ao capitalismo mais selvagem possível e a grupos mafiosos internos, descendentes das burocracias regionais do Partido Comunista e liderados por gente que fez fortuna do dia para a noite.
Claro, é uma simplificação, e há casos de empreendedorismo real. Mas o clima era de faroeste, inicialmente temperado pela euforia do fim das sete décadas de totalitarismo soviético.
O filme se desenrolou de forma trágica. A humilhação sofrida na mão de insurgentes islâmicos na Tchetchênia em 1994-96 e o governo etílico de Boris Ieltsin acompanharam a queda brutal no padrão de vida russo.
No ocaso de Ieltsin, a crise financeira iniciada na Rússia em 1998 destruiu de vez o sonho liberal. Até os comunistas voltaram a ter uma relativa densidade eleitoral, dada a insatisfação entre os mais velhos.
Aí surge Putin e seu programa de restauração nacional, uma amálgama de capitalismo de Estado, divisão de poder com grupos rivais na elite e valores drenados do ideário da Igreja Ortodoxa e particularmente da grandiosidade da vitória soviética na Segunda Guerra Mundial.
Presidente, ainda enfrentando resistências, Putin avançou sua agenda com um aceno de abertura mais contido ao Ocidente. Em 2000, chegou a sugerir ao democrata Bill Clinton que a Rússia se unisse à Otan, a aliança criada para combatê-la em 1949.
Ninguém sabe dizer o quanto da oferta era sincera, mas ela foi ineficaz para evitar a expansão da Otan rumo às antigas fronteiras do Kremlin. Em 2004, uma baciada de sete ex-países comunistas integrou a aliança, incluindo três nações que faziam parte da União Soviética no Báltico.
Com a estabilização doméstica crescentemente financiada pelo alto preço das commodities energéticas, cortesia ao mercado de uma faminta China, Putin começou a se mexer. Para seus críticos, foi a desculpa ideal para que ele implantasse um programa autoritário de controle total sobre a vida russa, ao estilo dos czares.
Em 2007, já no seu segundo mandato, fez o duro discurso de Munique, no qual apontou para o unipolarismo americano.
No ano seguinte, travou uma guerra para evitar que a Geórgia aderisse à Otan. Suou para vencer, mas as lições levaram a um amplo programa de modernização teórica e material de suas Forças Armadas, que entraram os 2010 em um novo patamar.
É daquele momento a última tentativa de abertura entre russos e americanos, com Barack Obama e seu vice Biden prometendo zerar a relação entre os países e assinando o Novo Start, hoje o último acordo de limitação de armas nucleares vigente.
De lá para cá, foi ladeira abaixo.
As renovadas suspeitas do russo sobre o interesse americano e europeu em absorver a Ucrânia sob seu guarda-chuva institucional e militar, explicitado na derrubada do governo pró-Kremlin de Kiev em 2014, levaram à anexação da Crimeia.
À ação somou-se a guerra civil fomentada por Moscou no leste pró-russo do país, que deixou a Ucrânia num limbo, namorando o Ocidente, mas sem poder consumar a relação.
No caso da crise da Belarus, neste ano, a ação de Putin foi ainda mais sutil. Ofereceu ajuda militar e fez manobras para assustar o Ocidente, mas a contenção até aqui da revolta contra a ditadura local está sendo feita domesticamente.
Já na grave crise do Cáucaso, o cessar-fogo mediado por Moscou entre azeris e armênios foi apoiado pelo Ocidente de forma inaudita.
Primeiro, EUA e França não tinham instrumentos locais de negociação tão claros. Segundo, queriam ver a Turquia, que apoiava Baku na guerra, contida sem arriscar sujar as mãos. A mesma Turquia que sofreu sanções dos EUA por comprar armas russas, só para complicar a equação.
A Ucrânia é um espinho difícil de retirar, tendo suspendido toda a cooperação efetiva entre Otan e Rússia. Biden, a seguir a tradição dos democratas, irá manter a pressão por meio de sanções e discursos sobre o mundo livre.
Há outras frentes, como lembra sempre o Departamento de Defesa americano ao apontar o renovado potencial ofensivo e de projetar alguma força dos russos, como provou a intervenção que salvou a ditadura síria na guerra civil.
Nesta mesma terça (15), o beligerante secretário de Estado americano, Mike Pompeo, queixou-se da ação russa no Mediterrâneo. Há poucas semanas, os dois países se estranharam em águas contestadas no Pacífico, e não há semana sem interceptação de aeronaves dos rivais ou exercícios provocativos.
Há divergências claras em relação à grande dependência europeia do gás russo. Em praticamente todos os temas do Conselho de Segurança das Nações Unidas, Moscou e Pequim são aliados contra os EUA, Reino Unido e França.
Por fim, há as perenes acusações de ações de hackers russos contra os EUA e as contestações acerca de direitos humanos e liberdade política na Rússia. Para os democratas, em geral mais duros com os russos, são pontos de honra mais sólidos do que para Trump —até porque o republicano era visto como favorecido pela interferência digital.
Com a latente crise com o Irã ameaçando tomar o protagonismo no começo de seu mandato, assim como uma eventual surpresa nuclear da Coreia do Norte, além da rivalidade gigante com a China na sala, Biden tem uma oportunidade clara com Putin.
Trata-se da renovação do Novo Start, que Trump deixou apodrecer e que vence 15 dias depois da posse do democrata. Ele já disse ser favorável a alguma extensão para negociações, e Putin irá esperar a oferta.
A posição do russo é de conforto relativo, dadas as agruras econômicas de seu país. Mas a janela para Biden não desperdiçar, como Obama fez, uma chance de "reset" está dada.
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