Chamar Boris Johnson de palhaço é injusto com os palhaços
A palavra é frequentemente usada como insulto; na verdade, é um elogio que ele não merece
Já é assinante? Faça seu login
Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:
Oferta Exclusiva
6 meses por R$ 1,90/mês
SOMENTE ESSA SEMANA
ASSINE A FOLHACancele quando quiser
Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.
Você não precisa ler muitos perfis de Boris Johnson para perceber um determinado epíteto recorrente. As pessoas têm muitas e variadas opiniões sobre o próximo primeiro-ministro do Reino Unido. Mas quase todo mundo, ao que parece, pensa que ele é um palhaço.
É fácil perceber por quê. A aparência excêntrica, pelo menos segundo os padrões dos políticos: descabelado, roupas mal cuidadas, gestos exagerados —braços giratórios, mãos nervosas. Os recursos extravagantes: agitando uma truta defumada num comício para ilustrar uma afirmação (completamente falsa) sobre a pesca britânica e o Brexit. Johnson tem um talento para o teatro cômico acima e além da inteligência verbal típica do humor político britânico.
No entanto, embora o termo "palhaço" seja frequentemente usado como insulto, na verdade é um elogio que Johnson não merece. O ofício dos "clowns" é uma forma de arte nobre, animada por um espírito de que ele não comunga.
A comunidade britânica de palhaços profissionais está fervendo de indignação pelo fato de sua atividade estar sendo humilhada por associação. Certamente, os palhaços usam técnicas como movimentos exagerados e roupas incoerentes, derivadas de tradições europeias seculares de teatro físico indisciplinado.
Mas a verdadeira arte do clown é mais que uma palhaçada. Jack Stark, um palhaço britânico conhecido no circuito de teatro e cabaré, diz: "Palhaços podem ser desajeitados e propensos a gafes, e vivem num mundo caótico. Mas como eles reagem a esse mundo é diferente. Os palhaços querem melhorar as coisas. Boris usa seu número para se livrar dos problemas criados por ele próprio".
O teatro moderno dos clowns, desenvolvido pelo mestre francês Philippe Gaulier a partir dos anos 1960, diz que os palhaços são essencialmente crianças brincando. Eles abraçam seus próprios fracassos, erros e mal-entendidos. Eles pretendem evocar empatia: seus percalços representam os percalços de todos. O público geralmente é incluído em suas brincadeiras, em vez de ser ridicularizado ou enganado.
John Wright, que estudou com Gaulier, teoriza que, ao contrário de muitos atores, os palhaços "declaram o jogo". Eles seguram uma batata e insistem que é uma maçã. Mas eles piscam para o público, e todos entram na brincadeira.
Os políticos, em contraste, costumam usar a bufonaria para enganar o público. Ocasionalmente, o número se torna óbvio. A fala de Johnson foi claramente revelada em uma famosa entrevista à BBC em 2013, quando o apresentador Eddie Mair perseguiu implacavelmente sua desonestidade no passado. Johnson se irritou e confundiu. Um verdadeiro palhaço teria admitido e se alegrado com suas falhas.
Com certeza, palhaços e política podem se misturar. A arte do clown é frequentemente usada em manifestações públicas. Stark conta que quando ele e um grupo de outros palhaços se reuniram em uma rua de Londres para celebrar sua profissão rapidamente atraíram a atenção da polícia, que pressupôs que um bando de palhaços em público devia estar protestando contra alguma coisa. Charlie Chaplin, o maior palhaço de todos, fez uma crítica ao capitalismo industrial em seu clássico filme da era da Depressão, "Tempos Modernos".
Mas a política dos palhaços é geralmente subversiva e satírica, e não controladora e enganadora. Os políticos têm agendas: os palhaços, não.
Então, se Johnson não é um palhaço, o que é ele? Um fato narrado recentemente pelo apresentador Jeremy Vine faz a revelação. Vine descreveu Johnson fazendo um discurso extremamente divertido depois de um jantar numa convenção setorial, chegando ao último momento com quase nenhuma preparação visível e tropeçando em uma palestra desordenada que, no entanto, trouxe a casa abaixo.
Vine ficou impressionado com a capacidade de Johnson de improvisar, até que ele viu exatamente o mesmo ato —o mesmo atraso, a mesma improvisação simulada, a mesma dificuldade verbal— em outro jantar, 18 meses depois.
Muitos artistas reconhecerão isso não como palhaçadas, mas como comédia stand-up, em que os jogos verbais e os tiques físicos que acompanham parecem espontâneos, mas são bem ensaiados. Oliver Double, um ex-comediante que hoje ensina teatro na Universidade de Kent, diz que Johnson desenvolveu cuidadosamente uma personagem completa, assim como faria um humorista stand-up, com o hábito performático de constantemente desgrenhar os cabelos. Mas em vez de usá-lo simplesmente para provocar risos ele o emprega para promover sua carreira.
É possível que essa afetação seja denunciada por um maior escrutínio. Em uma entrevista na TV na semana passada a Andrew Neil, Johnson parecia em pânico, mal-humorado e fora de prumo, enquanto sua persona carismática não conseguia escapar de um anfitrião inabalável.
Ele recentemente cortou o cabelo e emagreceu, talvez querendo moderar sua aparência cômica. Seja qual for o modo como Johnson faz seu número, porém, ele não tem em si um verdadeiro palhaço. Chame-o de cômico, chame-o de "showman", chame-o de bufão. Mas, por favor, não dê a Johnson o privilégio de ser chamado de palhaço.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Receba notícias da Folha
Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber
Ativar newsletters