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Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

Descrição de chapéu Natal

Caetanear o Natal

Algumas datas nos confrontam com nossa ideia de família

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A cena idílica da família cristã talvez só funcione por se tratar de um casal de jovens pobres com seu bebê recém-nascido, longe da família estendida e recebendo a visita pontual dos “tios” magos.

Mas a família que mais se assemelha com a que temos de fato é a dos deuses olímpicos com seus ataques de fúria, inveja, ciúmes, disputas, sem os superpoderes, claro. Mesmo aquelas nas quais o amor e o respeito imperam não estão livres de desentendimentos ou enfado.

Depois de um ano tentando sobreviver ao vírus, ao desgaste dos relacionamentos —por excesso ou falta de contato— e ao drama socioeconômico, enfrentamos um Natal insólito. O distanciamento recomendado tem gerado lamento de uns e alívio para outros. Álibi perfeito para os que não desejavam se encontrar por manterem relações burocráticas, sem sentido ou francamente violentas, escancara-se que o que chamamos de celebração é, muitas vezes, uma obrigação (in)suportável.

Os que lamentam não estarem juntos dos parentes devem comemorar justamente o fato de sentirem sua falta.

A família, esse poço de contradições da qual somos todos tributários, começa com um gesto amoroso de um casal. A partir desse encontro se entrelaçam sujeitos que não pediram para se conhecer, como cunhados, sogros e tiozinhos do pavê.

A descendência gerada, cuja afinidade não está garantida, também costuma parecer um balaio de gatos.

Curva de rio de relações baseadas em circunstâncias externas ao desejo e ao interesse de cada um, trata-se do meio no qual aprendemos a amar e sermos amados.

A família de origem continua sendo esse lugar no qual supomos encontrar as respostas para o enigma de quem somos. Mas a razão da nossa existência é algo que os pais sabem tão pouco quanto nós.

Temos filhos por motivos alheios a quem eles são e tão inconscientes que nem vale a pena perguntar. Mas vale sim —e isso é crucial– nomear as fantasias que criamos para preencher essa falta estrutural de respostas. As fantasias inconscientes dirigem nossas vidas sem que admitamos, nos adoecem e são o que uma análise busca elucidar. Freud o descobre e Lacan o precisa no seminário de 1966-1967, “A Lógica do Fantasma”.

Por vezes, a palavra amor numa família vem associada a gestos de violência e desrespeito. Se não houver outras referências que permitam questionar esse sentido, a prole estará condenada a dividir-se entre vítimas e algozes. As famílias alternativas que inventamos ao longo da vida são imprescindíveis para romper o ciclo da violência geracional, comum nesses casos.

A qualidade do arranjo familiar se baseia na aceitação das diferenças profundas que o compõem e na inibição sistemática de suas violências. Uma característica das famílias bem sucedidas no exercício de se suportarem –aguentarem e amarem– é sua abertura para o mundo à sua volta. Ao invés de se fazerem de bunker do qual saem armas apontando para todos os lados, permitem que os de fora usufruam dos afetos que dela transbordam e são arejadas pelos que lhes são estranhos.

Fomos testemunhas dessa dimensão porosa da família na live de Caetano Veloso, na qual se entrelaçaram arte e relações fraternas e familiares. Show que nos encheu de ternura, de alegria por estarmos vivos e de gratidão por falarmos a mesma língua do artista. Deleitando-se com sua falibilidade pela graça de reconhecer-se humano, Caetano renovou nossos votos nas famílias que valem a pena serem cultivadas.

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