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Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

Os deuses são pura projeção humana, como demonstra a história

A verdade é que os deuses nunca foram flor que se cheire, são invejosos e ciumentos, ao contrário do que todos pensam

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Jesus Cristo é um deus raro, diria único. Ele é justo e amoroso. Isso é incomum na história dos deuses. O desconhecimento desse fato peculiar faz com que a maior parte das pessoas à nossa volta cometa um equívoco cabal que é o seguinte: achar que as religiões são entidades culturais "do bem".

Não são. A historiadora e teóloga Karen Armstrong, e muitos outros, entendem que é possível estabelecer um denominador comum entre as grandes religiões e apontar nelas algum momento em que as religiões convergem para um discurso ético em que o bem de todos estaria no centro. Essa é sua empreitada no seu excelente "A Grande Transformação".

Ilustração de Ricardo Cammarota para coluna de Luiz Felipe Pondé de 16 de julho de 2023 - Ricardo Cammarota

Acho bonita a ideia, mas uma forçada de barra quando aplicada às religiões históricas, para além de alguns dos seus luminares. Aliás, é muito comum autores cristãos afirmarem com água na boca —num acesso do pecado da soberba— que o cristianismo seria, de todas as religiões, a melhor, justamente porque teria eliminado a ideia de sacrifício animal ou mesmo humano do horizonte quando sacrificou seu próprio deus inocente —o cordeiro de Deus— para tirar o pecado de todos do mundo.

Na verdade, o Deus de Israel, que para os cristãos encarnou em Jesus, já havia, por meio de seus profetas, condenado o sacrifício animal quando disse que queria que seu povo cuidasse das viúvas e dos órfãos em vez de sacrificarem animais a ele no templo.

Max Weber pensava mesmo que o desencantamento, ou desmagificação, do mundo teria começado com tais profetas e não com a ciência, como supõe o senso comum. Deus teria introduzido a ética no lugar dos rituais mágicos de sangue como forma de relação com ele.

Esse Deus, assim como Alá, é descrito como misericordioso, justo, mas não amoroso como Jesus. Dele pode-se esperar tudo, ainda que seus seguidores busquem explicar tais males à luz de algo que implica um final feliz no horizonte. A ideia de que Adonai ou Alá sejam malvados não parece sustentável, mas tampouco eles —são o mesmo Deus— seriam amor, como no caso do cristianismo.

A teologia cristã se inventou um problema moral enorme ao estreitar a "natureza" de seu Deus, Jesus, no conceito de amor. A cristologia, parte da teologia que estuda a "pessoa" de Jesus, criou um Deus excessivamente bondoso em comparação aos outros inúmeros deuses da história dos deuses. E, com isso, expulsou o princípio divino —o "verbo que se fez carne"— da dinâmica do mundo.

Evidente que essa diferença tem sido, para os cristãos, um motivo de orgulho. Nem todo mundo tem um Deus que seja o bem puro, sem nenhuma marca do mal em si.

A própria ideia de sacrifício humano nunca foi estranha às religiões. A própria história do patriarca Abraão começa com ele achando normalíssimo que Deus peça a vida do seu filho em sacrifício, ainda que não dê para dizer que ele estaria exultante.

Na sequência, Deus proveu a vítima para o lugar da criança, e os dois voltaram para casa felizes. Mas, se Abraão de cara não achou um completo absurdo o sacrifício de seu filho, é porque na época essa prática deveria existir.

Sacrificar humanos ou animais sempre foi uma forma de barganhar com os deuses. O sangue das vítimas era como uma prestação de honras às divindades poderosas. Ainda hoje, práticas religiosas no Brasil sacrificam animais, sem que os veganos branquinhos protetores dos animais soltem um pio.

A verdade é que os deuses nunca foram flor que se cheire. Invejosos e ciumentos uns dos outros, violentos ao bel prazer com os humanos, apegados a honras que os faziam se sentir importantes, guerreiros, deusas sedutoras belíssimas e cruéis —como costumam ser as mulheres mais belas—, os deuses são, evidentemente, pura projeção humana.

Ninguém precisa ser Ludwig Feuerbach e escrever sua obra de folego, "A Essência do Cristianismo", para perceber a atividade imaginativa humana por detrás da teologia.

A máxima desde Feuerbach é "toda teologia é antropologia". Neste processo de projeção, o cristianismo seria o único a eliminar as sombras humanas do coração do seu Deus.

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