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Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

Euclides seguiu fiel a suas concepções, mas seu livro se rebelou

'Os Sertões' contradiz certezas do autor, revelando a inteligência que brota da escrita

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Numa crítica, o importante não é o louvor ou a condenação. Por meio deles, conhece-se mais o crítico do que a obra. O que conta mesmo é a qualidade da análise.

Em 1874, o jornalista Louis Leroy publicou no jornal humorístico parisiense Le Charivari um artigo com título de intenção satírica: “Os Impressionistas”. Essa palavra —impressionista — foi inventada ali. Louis Leroy comentava a reunião de obras apresentada por um grupo de jovens pintores. 

O artigo virulento, irônico e muito engraçado fez sucesso enorme. Bombardeava, sem piedade, as obras de Monet, Renoir, Degas, Cézanne e companhia, pintores que ascenderiam ao lugar altíssimo de gênios.

Leroy não era um idiota. Ao condenar, foi capaz de ver muito bem. Mencionou a falta do contorno que define, a feitura espontânea, a pincelada solta, os acordes vivos das cores, as tintas aplicadas com espátula. Mas essas características, que configuram para nós as grandes qualidades dos impressionistas, para ele eram defeitos evidentes.

Ao ler um comentário sobre um filme, ou um livro, não importa muito se o crítico gostou ou não. Importa o modo como chegou às suas conclusões, e se, graças a elas, podemos tirar as nossas.

Andei pensando em Louis Leroy e nos grandes críticos porque releio “Os Sertões” de Euclides da Cunha. Tive a felicidade de examinar, palavra por palavra, esse imenso livro quando o traduzi para o francês, junto com meu amigo Antoine Seel. Faz tempo isso, foi em 1993. E cada vez que o retomo, volta o mesmo assombro.

A relação de “Os Sertões” com Leroy, e os bons críticos “malgré eux”, está no fato de que eles têm em si o antídoto para seus próprios equívocos. “Os Sertões” torna-se intolerável quando nos deparamos com os raciocínios derivados das teorias racistas, então consideradas científicas. 

No espírito hiperdeterminista daquele tempo, o livro distingue o “bom” e o “mau” mestiço, este sendo o fruto da mistura desordenada ocorrida no litoral e aquele de uma depuração que conduz ao “tipo de uma subcategoria étnica”.

É tudo errado, odioso e inaproveitável. Mas Euclides da Cunha avança na busca obsessiva de compreender o conflito de Canudos. Pela descrição, pela observação minuciosa, o livro subverte-se e recusa os dados teóricos iniciais. Digo o livro, e não seu autor. Euclides da Cunha permaneceu fiel, é plausível, às suas concepções conceituais. “Os Sertões”, porém, se rebelou.

Ele contradiz as certezas do autor, revelando inteligência que brota da escrita. Aqui mostra-se a imensa distância em relação ao jornalismo de Louis Leroy, que transpõe suas observações imediatas em linguagem jocosa e transparente. Ao contrário, a formidável inteligência de “Os Sertões” surge de sua beleza. Da poderosa lucidez brotando das mãos que escrevem, e não do cérebro que pensa por abstrações.

O autor faz nascer a força épica da precisão própria à cada palavra. Já que a frase se faz forte pelo rigor, a análise desenha-se com rigor espontâneo. Cada substantivo, adjetivo, verbo, advérbio incendeia-se em contato com o particular. Surge como que uma nova língua, fusionando lirismo e precisão, engendrando formidável inteligência analítica. Língua em revolta contra o conceito e contra as convicções, animada pela beleza estilística que depende da exatidão.

O livro execra o fanatismo dos revoltosos. No entanto, ao descrevê-lo, a admiração que sente por eles —corajosos, leais, inteligentes— anula a reprovação. Concebe o Exército como arma da civilização. Todavia, ao narrar suas manobras ineficazes e dolorosamente ridículas, ao detalhar a crueldade desumana de suas práticas, cujo apogeu foi a degola dos prisioneiros —a tremenda “gravata vermelha”—, expõe a campanha como uma estupidez e um crime: “Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada”. 

Esse genocídio não foi cometido só pela soldadesca, foi também estimulado ou consentido pelos comandantes mais altos. “O principal representante do governo” —ou seja, o marechal Bittencourt, responsável pela vitória definitiva contra Canudos— é acusado de “indiferença culposa”.

Bittencourt compreendera que a vitória não dependia de estratégias engenhosas, mas de persistência. Os combatentes não podiam ficar isolados; era necessário manter comboios regulares e a compra de burros sucedeu aos gestos heroicos. Depois, de modo bem adequado, o Exército erigiu esse marechal como “patrono da intendência”, dando a ele uma página em seu site. Que ignora soberbamente a degola de Canudos.

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