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A grande ficha, em algum momento, vai cair

A pandemia deixa claro que não estamos todos no mesmo barco

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Uma enorme ficha de orelhão está vindo em alta velocidade na direção da Terra, como um meteoro em chamas. “A grande ficha”, diz a tira da Laerte, “em algum momento, ela vai cair”.

Minha geração acreditou no fim da história, porque nasceu junto com ele. Parecia que o juiz tinha apitado o fim do jogo, e a humanidade estava só confraternizando. Os jogadores trocavam a camisa, se abraçavam, combinavam a festa. O mundo parecia que tinha chegado a um lugar bom: o racismo era feio, a ditadura também, “we are the world”, dizia a canção, “we are the children”.

A queda do Muro de Berlim parecia um final perfeito para a narrativa hollywoodiana: cai o muro, sobem os créditos. Alguns pensaram: ganhamos. Outros pensaram: perdemos. Mas, independentemente disso, viramos um só planeta, sem guerras nem fronteiras: liberal, anglófono, acadêmico, progressista, meritocrático. Estamos seguros. E saudáveis. A penicilina matou as bactérias, os analgésicos acabaram com a dor, e os ricos só vão morrer bem velhos. Os pobres vão morrer mais cedo, mas tudo bem, porque eles merecem. Ninguém se importa. Ou se importa, mas lamenta. O mundo às vezes é meio injusto, mas isso está dentro da normalidade: paciência.

Salvo um assalto aqui e um sequestro ali, os ricos viveram um tempo de paz social, política e biológica. As epidemias só aconteciam longe: na África, na Ásia, nas favelas e subúrbios. As guerras também: já não morria ninguém famoso.

Talvez, se o mundo tivesse acabado lá pelos anos 2000 e pouco, teria parecido um final de novela. O Brasil tinha eleito o primeiro presidente operário; os Estados Unidos, o primeiro presidente negro, a Europa tinha abolido as fronteiras. Podiam subir os créditos finais. Se fosse uma festa, tocariam “Mr. Jones” (“shalalalalalala, yeah-eh”), e cada um ligaria para a sua cooperativa de táxi.

Talvez, por um desleixo do contrarregra, não caiu o pano. Ninguém apertou o stop. Sem fala, os atores começaram a improvisar. E a multidão de figurantes passou a exigir papéis melhores. Descobriu-se que a máquina de fumaça soltava gás carbônico, e que a paz social, biológica e ambiental era uma fraude.

Vivemos dentro de um prédio construído por gente que não tem onde morar, e essa conta não fecha. Não pode fechar.

A pandemia deixa claro que não estamos todos no mesmo barco. Ou estamos, mas tem gente remando e tem gente tomando sol na proa. “Parasita”, “Coringa”, “Bacurau”.

Talvez não fosse o fim da história, mas do primeiro ato.

A ficha, a grande ficha: ela vai cair.

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