Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.
A Folha e os tuítes do general
Parte da cobertura ainda pressupõe que Forças Armadas não se dobram à política
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Os jornais passaram o Carnaval rediscutindo tuítes antigos do ex-comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas.
Soube-se na semana passada que, em entrevista para um livro recém-publicado, Villas Bôas revelou que teve a colaboração da cúpula do Exército para escrever os famosos tuítes divulgados em abril de 2018, um dia antes do julgamento de um habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Em clara tentativa de pressão sobre a votação do STF (Supremo Tribunal Federal), as mensagens falavam em “repúdio à impunidade”.
O assunto voltou à tona porque, na segunda (15), o ministro Edson Fachin reagiu aos relatos de Villas Bôas, dizendo ser “inaceitável pressão injurídica sobre o Poder Judiciário”. Foi ironizado pelo general, que apontou, em rede social, que a manifestação ocorreu “três anos depois”.
Em análise feita para o jornal O Estado de S. Paulo de quarta (17), o cientista político Carlos Melo disse que a surpresa não estava no tuíte do general, tampouco na consulta que fez a seus pares, mas na reação retardatária de “agentes institucionais”.
Sendo assim, vale perguntar: e a imprensa, como se comportou?
Uma primeira olhada no noticiário da Folha da primeira semana de abril de 2018 mostra, no entanto, muito relato, pouca contextualização e quase nenhum debate.
Os tuítes saíram na terça (3). No dia seguinte, a Folha reconhecia a relevância da manifestação de um comandante do Exército às vésperas de um julgamento que poderia levar Lula para a cadeia a seis meses da eleição, mas o fazia em tom descritivo.
Estampava em manchete: “Comandante do Exército diz que repudia impunidade”. O subtítulo informava que, na véspera do julgamento de Lula no STF, o general Villas Bôas via a corporação “atenta a missões institucionais”.
A reportagem principal descrevia os tuítes, o silêncio do então presidente Michel Temer e a nota de apoio da Defesa —então chefiada por Joaquim Silva e Luna, agora, na última sexta (19), conduzido à presidência da Petrobras.
Ainda naquela edição, havia um bom passo a passo para que o leitor entendesse como se daria o julgamento do habeas corpus, mas nenhuma discussão sobre qual seria a missão institucional do Exército.
Na quinta (5), a capa trazia o resultado do julgamento em que o pedido de habeas corpus havia sido negado ao petista, por 6 votos a 5, prevalecendo a posição do relator Fachin.
No recheio, um solitário Celso de Mello reagia em tom duro a Villas Bôas, enquanto, na avaliação de especialistas em direito militar, as declarações do general não violavam a lei.
Em editorial, a Folha dizia que a manifestação de Villas Bôas havia sido “deplorável”, mas que parecia ceder à “pressão de subordinados” e que as Forças Armadas já haviam dado mostras de ter compreendido que o papel de atores políticos armados, que exerceram até 1985, deveria ser superado .
Embora permaneça vivíssima na cobertura jornalística, a ideia de que militares compreendiam que o papel de atores políticos já não lhes cabia mais e que pressões como aquelas eram coisa de subordinados foi desmentida pelos fatos já no fim daquela semana de abril.
Na sexta (6), dia em que o então juiz Sergio Moro determinou que Lula se entregasse à Polícia Federal, o jornal relatava a primeira aparição pública de Villas Bôas depois do episódio, no Clube do Exército. O general da reserva Hamilton Mourão falou à imprensa: “Ele [Villas Bôas] tem o direito de falar e deve. Porque uma coisa tem que ficar muito clara, o Exército é apartidário, mas não é apolítico. O Exército tem que fazer política”.
Alguns articulistas do jornal chegaram a apontar riscos. “Falar por meio de elipses é um conhecido recurso da retórica de militares que se metem em política”, escreveu Elio Gaspari em 8 de abril. “Ou a democracia se corrige ela própria ou outras ameaças virão, de gente fardada ou de candidatos a messias”, disse Clóvis Rossi três dias antes.
No geral, porém, a cobertura noticiosa daquele mês sugere que a Folha embarcou na normalização dos tuítes, deixando de tentar entender e explicar aos seus leitores o que aquilo significava.
Um pouco mais de tinta gasta em 2018 contextualizando os tuítes e, talvez, hoje tivéssemos que dedicar menos papel a tipos como o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), preso na terça (16) após vídeo em que ataca o STF e desafia os ministros a prenderem Villas Bôas.
O fato é que, em mais de dois anos de governo Bolsonaro, muito da cobertura jornalística ainda parte do pressuposto de que a contaminação política do Exército se resume aos subordinados, que as alas “ideológica” e “militar” do governo não se misturam e que generais não se dobram à política.
Já abordei o assunto antes. Passados três anos do episódio, a incompreensão sobre as Forças Armadas e a falta de interlocução com seus representantes (pouco afeitos ao diálogo) têm colocado a imprensa sempre um passo atrás da dinâmica de um grupo que precisa ser entendido, pois, no fim das contas, governa o país.
Publicada em meio às comemorações do centenário da Folha, esta coluna não quer atrapalhar a festa, mas engrandecê-la em nome de duas das coisas mais importantes ao jornalismo profissional: os leitores e o regime democrático. Mais uma vez, vida longa, Folha!
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