Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
Assassinato político
As cores políticas vêm tingindo as relações pessoais desde que parte da opinião pública dividiu o mundo entre petismo e antipetismo
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Eram festas de aniversários. O 03 aproveitou a coincidência entre a idade e a arma para decorar seu bolo com revólver e balas de confeito. Abaixo, lia-se: "Eduardo Bolsonaro, feliz 38". Na foto com esposa e filhinha, vestia camiseta com fuzil desenhado.
A outra comemoração, de cinquentinha, também teve estampa temática no peito, o rosto de Lula mostrando a língua. Painel enorme com a mesma face e a faixa de presidente ficou atrás do bolo, com a frase "pro Brasil voltar a sorrir." Mas, em vez de sorrisos, a festa de Marcelo Arruda acabou em tiros que não eram de açúcar.
As celebrações expressam o quanto a vida pessoal dos brasileiros anda infundida de política. Laços de sangue, fé e amizade escorreram para a gestão pública no governo Bolsonaro. Mas os conflitos públicos também invadiram a esfera íntima.
Não se trata de invenção bolsonarista. As cores políticas vêm tingindo as relações pessoais desde que parte da opinião pública dividiu o mundo entre petismo e antipetismo. A clivagem apartou amigos, azedou famílias, incluída a dos Arruda, e ensanguentou o aniversário de domingo.
Trata-se de um assassinato político. O episódio pertence a categoria já bem estudada. Exibe os traços da violência política que Charles Tilly mapeou em "Politics of Collective Violence". Um deles é que perpetrador e vítima representam coletividades opostas, que nem precisam se conhecer, como não se conheciam em Foz do Iguaçu. Outro é que o governo está em causa, porque um dos lados o defende. Antes de atirar, o bolsonarista gritou: "mito".
O aviltamento simbólico do adversário precede a violência física. De insulto não sai sangue, mas sua frequência anestesia. Xingamentos, arminhas e odes à intolerância se tornaram rotina governamental, gerando uma desensibilização com o cão que muito ladra. Até ele cravar os dentes.
A falência das instituições políticas e jurídicas em resolver os conflitos abriu espaço para que a violência política campeasse além da agressividade verbal. O assassinato de Marielle Franco tem mais de quatro anos e nenhum punido. Enfileiraram-se outros, como o do indianista Bruno Pereira. Marcelo Arruda entrou para a fatídica lista.
A violência política, Tilly argumenta, se espraia em governos fracos e pouco democráticos, amparada em dois intermediários. Um são os "empreendedores políticos", que recrutam, organizam e coordenam grupos insulados. Nestas bolhas, circulam símbolos e retórica de endosso à violência, forjando uma identidade política - que sobrepuja a familiar, a profissional, etc -, pela qual se deve matar ou morrer.
A outra intermediação é dos especialistas em violência. É gente treinada para a aç��o violenta, com maestria em armamentos, caso de membros de exército, polícia, milícias, gangues, clubes de tiro. Ameaçam usar a força e controlam meios para efetivar suas promessas.
Quando ambos os lados de um conflito político se organizam para o uso da violência, o desfecho frequente é a guerra civil. Na conjuntura brasileira, não é o que se vê. Enquanto os governistas contam com os dois tipos facilitadores da violência política, grupos coesos radicalizados e especialistas em violência, a oposição faz a campanha eleitoral rotineira.
Já o resto da sociedade assiste pasmada. Arma-se apenas de palavras de indignação, enquanto o país se equilibra sobre frágil pinguela. Muitos sonham com a festa das urnas, mas até as eleições viveremos assombrados por sangue.
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