'Quando o resíduo está valorizado, ele não vai parar no mar', diz gerente de circularidade do Pacto Global da ONU

Gabriela Otero liderou estudo que estimou que 2 milhões de toneladas de lixo plástico gerado no Brasil têm alto risco ir para o oceano

São Paulo

Fragmentos de plástico, bitucas de cigarro, pedaços de isopor, tampinhas de garrafas plásticas e embalagens de delivery de alimentos. Esses são os cinco itens mais encontrados nos mares do Brasil durante as coletas amostrais que o projeto Blue Keepers, do Pacto Global da ONU, realiza periodicamente em quase 20 pontos do país.

Entre rios, mares, lagoas e manguezais, o projeto reuniu um inventário com 55 mil itens classificados por categoria de material e, quando possível, pela marca à qual o resíduo pertence. O plástico é o tipo de material mais presente. Estima-se que os oceanos tenham um estoque de 75 a 200 milhões de toneladas de resíduos plásticos.

"Os itens segregados geraram um banco de informações de quase 190 tipos de produtos que agora podem direcionar políticas públicas e investimentos", afirma a geógrafa Gabriela Otero, 40, gerente de resíduos e circularidade do Pacto Global da ONU no Brasil e coordenadora do Blue Keepers.

Mulher branca, usando blazer branco, posa sorrindo em frente a parede azul com logo do Pacto Global da ONU
A geógrafa Gabriela Otero, gerente de resíduos e circularidade do Pacto Global da ONU no Brasil - Divulgação/Divulgação

"Isso porque a gente consegue dizer para as empresas que determinado produto está problemático em certa região, na qual é preciso investir em infraestrutura de coleta e reciclagem, além do design e definição de materiais desses produtos. Quando o resíduo está valorizado, ele não vai parar no mar. O caminho dele é desviado para a reciclagem."

Segundo Otero, hoje 80% dos resíduos que circulam no mar têm origem continental. Às vezes, a centenas de quilômetros de distância do oceano.

Quais são os resíduos mais encontrados nas coletas?
Do nosso ranking hoje, o item mais encontrado é o fragmento de plástico rígido ou mole. Produtos de limpeza, cosméticos, embalagem de salgadinho, de doce e de alimentos. São resíduos domésticos que entraram no corpo hídrico, sofrem degradação e se fragmentam. Isso indica navegação, ou seja, é um problema que não surgiu na praia. Depois vem a bituca de cigarro, o isopor de delivery e e-commerce (aquele granulado), o pino plástico, que é usado a priori em laboratório, mas que também é para vender cocaína, e a haste de cotonete.

Usa-se tanto cotonete assim?
Recentemente conversamos com marcas que produzem cotonete e foi estarrecedor para elas saber que as hastes plásticas estão entre os resíduos mais encontrados nas coletas. O cotonete não é um objeto de consumo de praia, mas acontece que o consumidor joga cotonete no vaso sanitário, o que é errado. As pessoas jogam no vaso junto com o fio dental, o lencinho umedecido e o absorvente. Só que essas coisas param no gradeamento do esgotamento sanitário. O cotonete, não. É preciso comunicar para as pessoas não jogarem cotonete no vaso sanitário.

Como os resíduos dos brasileiros vão parar no mar?
Com toda essa costa, a gente precisava entender quais eram os pontos mais vulneráveis do território brasileiro para a poluição marinha. Fizemos um diagnóstico da gestão de resíduos nas 5.570 cidades brasileiras, do que ia para aterro sanitário, do que vai para lixão e aterro controlado e colocamos geograficamente em variáveis naturais, como precipitação, proximidade da orla, proximidade de rios. Fizemos a projeção de que mais ou menos 3 milhões de toneladas de resíduos plásticos vão para o ambiente por ano. Disso, 2 milhões de toneladas têm alto risco de parar no oceano.

Qual é a relação entre o setor empresarial e o plástico nos oceanos?
Os produtos que vão parar no oceano, via de regra, foram objetos de consumo produzidos por empresas. O papel do Pacto Global da ONU é o engajamento responsável e consciente dessas empresas pautadas em evidência e informação. Nosso trabalho não é de denúncia e exposição das marcas cujos produtos são mais encontrados, mas ter essas informações para letrar as empresas internamente sobre o tema. O Blue Keepers reuniu essas informações para poder informar uma marca que identificou uma presença preocupante do seu produto nas coletas amostrais e que pode trabalhar com ela para desviar esse resíduo do oceano por meio de coleta seletiva, logística reversa, comunicação do próprio produto e redesign da embalagem.

Como isso funciona em outros lugares do mundo?
Na Europa, os países fazem logística reversa por cadeias específicas, e as empresas criam entidades gestoras para receber informação de mercado e fazer os cálculos de quantas embalagens cada empresa precisa recuperar a partir da porcentagem estabelecida pela diretiva, o que dita o investimento de cada uma nesse sistema, implementado sempre em parceria com o poder público. A empresa não pode sair colocando lixeira nem máquina de retorno na cidade e criar um problema. E o consumidor sabe que ele tem que levar garrafa plástica para um lugar, garrafa de vidro para outro etc. Então, há contribuição efetiva do setor empresarial sem retirar o controle do poder público, que é o verdadeiro titular da gestão de resíduos e vai saber como organizar esses serviços no território.

Qual é o papel dos consumidores?
As pessoas deixaram de consumir o canudo e acham que já fizeram a sua parte e protegeram o oceano. Mal sabem elas que a quantidade de plástico que elas descartam está escapando do sistema de coleta, da cooperativa e indo para o mar. O resíduo é um problema material, com uma responsabilidade inicial nossa, por lei. O primeiro elo da cadeia é o consumidor, que precisa consumir menos e descartar corretamente. Mas o poder público precisa acompanhar o mercado, e vice-versa porque tem uma variedade de produtos novos que chegam ao mercado em grande quantidade, mas que não têm reciclabilidade, e o poder público não dá conta.

O rótulo de uma embalagem de salgadinho tem o símbolo indicando que ele é reciclável, mas ele não é reciclado de fato porque não tem viabilidade econômica e nem técnica em determinadas territorialidades. Seria como dizer para as empresas que elas têm de fazer embalagens específicas para cada região do Brasil com base na sua reciclabilidade.

Como lidar com a naturalização da poluição plástica nos oceanos e dos danos à biodiversidade?
Para as pessoas que já não se sensibilizam mais com a imagem de uma tartaruga com um canudo enfiado no nariz ou com aquelas imagens de estômago de bicho cheio de plástico, tem a questão da alimentação humana. O oceano é um dos maiores estoques alimentares do planeta. O que hoje a gente coloca de químico, de fragmento de plástico e de outros materiais no oceano acaba contaminando essa fonte alimentar humana. Existe o direito que esses animais têm de viver. Quem não se sensibiliza com isso tem que se preocupar com o seu sushi, o seu sashimi, o seu atum selado. Hoje, a gente já está botando para dentro o problema.

Qual é o impacto dos plásticos de uso único, descartados depois de horas ou minutos de uso, nos oceanos?
Os plásticos de uso único estão presentes. Mas o maior problema tem sido o comportamento de descarte. Quando a gente fala de banimento de plástico de uso único, eu consigo banir do meu cotidiano porque eu tenho recursos. Mas e as pessoas de classe C e D? Com que alternativas elas vão contar de forma que preserve seu direito ao consumo? A sacolinha plástica do mercado, que eu posso evitar, essa pessoa usa para descartar o lixo. Eu posso comprar o xampu em barra, e canudo de metal, mas quem consegue pagar?

Existe um componente social na busca por substitutos dos plásticos descartáveis?
A diferença vai acontecer se a gente pensar como população, como cidade, e isso for uma preocupação coletiva. Para proteger o oceano, eu também preciso reivindicar que a estrutura de que eu hoje sou servida chegue para as outras pessoas. Afinal, eu até posso fazer a minha parte para comer o meu sushi, mas e as pessoas que não têm sequer coleta? Essa justiça social de saneamento precisa ser colocada na agenda.


Raio-X

Gabriela Otero, 40

Geógrafa e mestre em Ciências, ambos pela USP (Universidade de São Paulo). Tem 15 anos de experiência em gestão de resíduos sólidos urbanos, com foco na prevenção à poluição de recursos hídricos. É atualmente Gerente de Resíduos e Circularidade do Pacto Global da ONU no Brasil.

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