Mudanças climáticas dobraram risco de chuvas devastadoras no RS

As chuvas que arrasaram o Rio Grande do Sul e levaram a 172 mortes foram fortemente influenciadas pelo aquecimento global e pelo fenômeno natural El Niño. Um relatório publicado nesta segunda-feira (3) pelo WWA (World Weather Attribution), um conglomerado de cientistas climáticos internacionais, concluiu que cada um deles duplicou as chances de precipitação histórica.

Os pesquisadores analisaram o período entre 26 de abril e 5 de maio, quando choveu mais de 420 mm na região - o equivalente ao esperado para três meses. Eles identificaram um evento climático atípico, caracterizado por chuvas excessivas e prolongadas. Foi a maior quantidade de chuva em um período tão curto já registrada na região.

De acordo com o relatório, o aquecimento global não apenas dobrou as chances destes eventos climáticos, como aumentou a sua intensidade entre 6% e 9%.

"Com as mudanças climáticas, a atmosfera está mais quente e por isso absorve mais umidade. Em locais onde já é úmido, como no Rio Grande do Sul, aumentam as chances de chover intensamente em períodos curtos", explica Regina Rodrigues, pesquisadora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e uma das autoras do estudo.

Ao mesmo tempo, o El Niño também teve um papel importante. O relatório afirma que o fenômeno natural também duplicou a chance dos temporais e fez com que ficassem entre 4% e 8% mais fortes. O El Niño, que deve durar até o fim de junho, costuma aquecer as águas do oceano Pacífico e levar um centro de alta pressão atmosférica persistente ao Sul do Brasil.

Os cientistas acreditam que, este ano, o fenômeno foi ainda potencializado pelo aquecimento global e temperaturas atípicas do oceano Atlântico, que está 2º C acima da média. "Nós temos observado um efeito direto da mudança climática que está deixando o El Niño mais forte e frequente", afirma Regina.

Previsões para o futuro preocupam

Com base em modelos estatísticos, os cientistas concluíram que as chuvas que caíram no Rio Grande do Sul são extremamente raras. Nas condições climáticas atuais, elas devem ocorrer de 100 a 250 anos. Mas o relatório alerta para um cenário muito mais perigoso no futuro, com o aquecimento global e a volta do El Niño.

Se a temperatura da Terra chegar a 2° C acima da era pré-industrial, as chances desse tipo de evento climático na região triplicam. Um estudo publicado recentemente na revista Nature prevê que a temperatura global deve chegar nesse patamar já em 2040, caso não diminuam os gases de efeito estufa na atmosfera.

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Na segunda metade do século 21, o cenário é ainda mais preocupante. De acordo com os modelos climáticos observados, entre 2050 e 2100, o clima no sul o Brasil deve ser ainda mais úmido. A previsão é de um número maior de dias chuvosos por ano e precipitação mais intensa comparado com os dias atuais.

Para Lincoln Muniz Alves, coautor do estudo e pesquisador do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), esse prognóstico é alarmante mas não surpreende. "Na verdade as mudanças climáticas no Brasil já estão em andamento. Olhando para os últimos 60 anos, percebemos que o clima já mudou, tanto no aspecto da temperatura quanto da precipitação".

Região sul precisa se preparar

Para reduzir os impactos das chuvas na população, os especialistas indicam que é necessário repensar a infraestrutura das cidades gaúchas.

Em Porto Alegre, que é banhada pelo rio Guaíba, a enchente foi agravada pelas falhas no sistema de proteção de inundações. As estações de bombeamento e comportas que deveriam ter segurado até 6 metros de água cederam aos 4,5 metros. Posteriormente, não permitiram o escoamento das águas.

Como consequência, a água chegou a 48 bairros, impactando quase 160 mil pessoas, 12% da população. Meio milhão de moradores ficaram sem eletricidade e 650 mil sem água potável.

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O relatório aponta a falta de investimento como grande responsável pela tragédia ter chegado a esse ponto na cidade. Desde 2021, a Prefeitura de Porto Alegre vem reduzindo drasticamente os recursos destinados à prevenção de enchentes, que chegou a zero em 2023. Não coincidentemente, das quatro maiores enchentes já registradas na cidade, três ocorreram nos últimos nove meses.

"Eu ainda não percebo dos tomadores de decisão a atenção necessária para prevenir esse tipo de desastre climático. Falta incorporar essa questão na agenda política como prioridade. Isso é muito preocupante porque esses desastres vão continuar acontecendo mas não ocorrem mudanças significativas na adaptação", afirma Lincoln.

Outro passo importante apontado no relatório é a necessidade de áreas verdes que ajudam na absorção da chuva de forma natural. De acordo com dados do MapBiomas, entre 1985 e 2022, o Rio Grande do Sul perdeu 22% da sua vegetação nativa - cerca de 3,6 milhões de hectares, a maior parte para dar espaço a plantações de soja. Os especialistas acreditam que esse desmatamento contribuiu para as inundações atingirem 90% do estado - uma área do tamanho do Reino Unido.

Embora o Código Florestal do Brasil de 2012 estabeleça que 20% das propriedades rurais no Rio Grande do Sul devem ser preservadas, essa legislação não é cumprida. Além disso, o estado flexibilizou 480 normas ambientais em 2020 para motivar o desenvolvimento econômico, o que pode levar à maior vulnerabilidade da população.

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