Valores por trás da xícara

22 de February de 2024

[Café]

Fazendas do Vale da Grama, reduto cafeeiro de qualidade para exportação, incorporam a restauração da Mata Atlântica como diferencial de mercado e ganhos de produtividade contra riscos da mudança climática


Por Sérgio Adeodato, de São Sebastião da Grama


Fotos: Juan Pablo Ribeiro


O produtor rural Diogo Dias, quarta geração à frente da Fazenda Recreio, em São Sebastião da Grama (SP), coleciona prêmios para os cafés especiais lá cultivados, com atributos para além da qualidade. Na sala de degustação, frequentada por compradores do mundo todo, a alquimia de aromas e sabores, em suas distintas notas, é manipulada pelo fazendeiro, que se orgulha de um detalhe não percebido no paladar. O diferencial, diz ele, se vê na paisagem. Por trás do produto, está o trabalho de restauração florestal que se expande na região cafeeira do Vale da Grama, na divisa entre São Paulo e Minas Gerais, com ganhos para o meio ambiente e para a produtividade dos cultivos.


Iniciada com a primeira colheita em 1893, após a chegada da tataravó para tratamento de saúde nas águas termais da vizinha Poços de Caldas (MG), a história da família com o café abriu nova página na virada para o século XXI quando Diogo assumiu a fazenda como engenheiro agrônomo recém-egresso da universidade. Vieram ideias inovadoras – e propósitos – de olho no mercado mundial de cafés especiais. “A estratégia tem sido agregar valor junto a compradores que reconhecem características de qualidade, sustentabilidade e origem do produto”, explica o fazendeiro.


Iniciativas de repor árvores chegaram no rastro de selos de certificação internacionais que atestam esses diferenciais, sobretudo a adequação às leis ambientais sobre a vegetação nativa que precisa ser mantida nas propriedades como Reserva Legal (RL) ou Área de Preservação Permanente (APP). Na Fazenda Recreio, foram implantados até o momento 54,9 hectares de floresta, grande parte sob a demanda da Nespresso – empresa de cafés especiais que adota protocolos socioambientais na compra do produto das fazendas. O plantio de árvores pelos fornecedores contribui com a meta de neutralização de carbono na estratégia empresarial de mitigação da mudança climática.



Cafés especiais incorporam ações socioambientais


Em parceria com a exportadora Bourbon, a companhia investiu na doação de mudas por meio do programa Florestas do Futuro, mantido pela Fundação SOS Mata Atlântica desde 2004. A estratégia reúne a sociedade civil organizada, iniciativa privada, proprietários de terras e poder público em projetos participativos de restauração florestal. Pessoas físicas e empresas podem colaborar de duas maneiras: como participação voluntária ou compensação obrigatória no Estado de São Paulo, via Termo de Compromisso de Recuperação Ambiental (TCRA).


O modelo promove a aproximação entre propriedades rurais que precisam restaurar áreas para cumprir a Lei de Proteção da Vegetação Nativa (12.651/12) e doadores. As mudas são direcionadas ao campo com base no mapeamento de áreas prioritárias para restauração no bioma, entre outros critérios. A Fundação mobiliza viveiros e prestadores de serviço para o diagnóstico das áreas, plantio das mudas, manutenção e monitoramento, fomentando a cadeia da restauração.



Tamanduás e onças no cafezal


No Vale da Grama, com apoio da ONG, foram plantadas até hoje 213 mil mudas, em oito propriedades, custeadas por doações de empresas em suas ações de sustentabilidade. Do total, 98 mil – quase metade – se destinaram desde 2020 à Fazenda Recreio, onde o trabalho abrange o planejamento do plantio de mudas, com a identificação das áreas junto ao produtor rural, além de assistência técnica e monitoramento por cinco anos. A iniciativa se incorpora a um conjunto de critérios socioambientais, exigidos por sistemas de certificação como atributos para se diferenciar no mercado.


O fazendeiro tomou gosto e quer restaurar mais 26,3 hectares, não só como RL ou APP: “O plano é ir além da lei e reconstruir floresta em áreas sem aptidão agrícola, com a estratégia de formar corredores ecológicos”, revela Diogo. Ele indica no mapa os morros onde plantações de eucalipto serão retiradas para dar lugar à mata nativa, recompondo a biodiversidade. Os resultados animam ambição ainda maior. Tamanduá, veado-campeiro e até onça-parda, entre outras espécies antes desaparecidas, já perambulam por lá – e, dessa forma, somam valores ao prazer de quem frequenta cafeterias.


“Abrimos mão de 8 hectares de café para proteger sete nascentes”, conta o produtor. Ele lembra que, no passado, o avô tinha incentivos do governo para desmatar e plantar até nessas áreas próximas à água. Estruturas antigas da fazenda, como a velha olaria com fornos a lenha e até uma serraria sinalizam práticas deixadas para trás. A ordem, agora, é recuperar florestas. “Nascentes são cercadas e a área destinada à regeneração natural, enriquecida com mudas nativas e outras técnicas, em parceria com a SOS Mata Atlântica”, diz Diogo. Ele reforça: “Deixar de produzir nessas áreas de APP não dá prejuízo, pelo contrário, só temos a ganhar com isso”.


A segurança hídrica é uma das preocupações, diante da mudança climática que já causa prejuízos. O fazendeiro relata perda de 30% da safra devido à falta de chuva, em 2022. “Além de ajudar no microclima e na qualidade e disponibilidade de água, necessária à irrigação por gotejamento em 35 hectares de nossos cafezais, a restauração florestal na área contribui na polinização dos cultivos e na redução de pragas, com impacto positivo para a produtividade”, completa Diogo.


A percepção do produtor coincide com a constatação de recente pesquisa científica na região: a restauração faz o café produzir mais, a ponto de compensar o custo de plantar floresta, ou ir até além – o que pode servir como estímulo adicional ao cumprimento da lei. O estudo, publicado na revista científica One Earth, é assinado por Francisco d’Albertas, doutor em Ecologia pela Universidade de São Paulo (USP), Gerd Sparovek, coordenador do Geolab (Esalq-USP); Luís Fernando Guedes Pinto, diretor-executivo da Fundação SOS Mata Atlântica; Camila Hohlenwerger, doutora em Ecologia pela USP; e Jean-Paul Metzger, professor do departamento de Ecologia da USP.


Diante dos ganhos, é maior a abertura para novidades: um projeto de agricultura regenerativa, em parceria com a Nespresso, tem permitido o uso de adubação organomineral, por meio da compostagem da palha de café.



Área de Preservação Permanente (APP) é cercada e restaurada na Fazenda Recreio



Na mesma fazenda, cafezal convive com vegetação nativa


Trabalho motivou plano municipal


As lições das propriedades no Vale da Grama com matas em restauração inspiram uma nova cultura produtiva em região vulcânica de solo e clima altamente propícios aos cafezais, a 1,1 mil metros de altitude. Por mobilizar o plantio de árvores e práticas responsáveis, os cafés especiais – destaque da economia da região – funcionam como vetor de políticas públicas locais com efeitos mais amplos.


No esteio do trabalho na região, foi construído o Plano Municipal de Mata Atlântica de São Sebastião da Grama, contendo diagnóstico da vegetação nativa, formas de uso sustentável e áreas prioritárias para conservação e recuperação, por exemplo. O instrumento, aprovado em 2022 após amplo debate local, com suporte da SOS Mata Atlântica, tem como meta ampliar a cobertura de florestas de 8,5% para 12% em três anos, no município.


“Precisamos retomar o Conselho Municipal de Meio Ambiente, do qual participam produtores rurais; avaliar os compromissos e buscar parcerias para sensibilizar a população”, admite Luiz Felipe Brasil, secretário municipal de meio ambiente. “É preciso manter a mobilização inicial viva”, completa.


Os planos municipais são importantes instrumentos para a implementação da Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006), voltada à proteção do bioma. São promovidas ações para sensibilizar prefeituras, capacitar equipes técnicas locais, apoiar a elaboração dos documentos e mobilizar as consultas públicas para aprovação dos planos. Em São Sebastião da Grama, além desse apoio, a SOS Mata Atlântica realizou capacitação para restauração de nascentes e monitoramento da qualidade da água da cidade – nexo importante para impulsionar o plano, no contexto da produção cafeeira como fio condutor.


No município, a Fundação contribuiu na prospecção de áreas para restauração e no contato com produtores sobre a importância dessas ações. Entre as propriedades beneficiadas, a Fazenda Baobá recebeu 8 mil mudas, recuperou a beira de riachos e agora se dedica a convencer vizinhos a fazer o mesmo, formando um fragmento maior de mata, em benefício de todos.


Na Fazenda Pinhalzinho, onde predomina o capim de antigas pastagens, nascentes foram cercadas para evitar o gado e a vegetação nativa cresceu de forma natural na área. O casamento do café com novas florestas não é simples, mas pode ter chegado para ficar – e outras culturas agrícolas presentes da região, como cultivos de oliveira e macadâmia, podem seguir igual caminho. Na Fazenda Recreio, com total de 596 hectares, 35% em áreas de preservação, a produção de café foi de 3,2 mil sacas em 2023. “A meta é atingir mais que o dobro, cerca de 7,5 mil sacas anuais, em quatro anos”, revela Diogo.


A propriedade tem ainda, em pequena escala, gado, eucalipto e uva para produzir vinho e espumante. O plano é expandir o cardápio. Ao incorporar a restauração florestal, a experiência com os cafés especiais – no caso, a variedade Arábica, típica de regiões altas – pode beneficiar produtos que compartilham aquela paisagem. “Mas ainda falta esse diferencial da sustentabilidade ser assimilado e valorizado pelo mercado consumidor”, observa o produtor. “No campo, em tempo de mudança climática, é crescente esse entendimento; é necessário fazer a conexão entre as pontas”.


"Gostinho” de floresta para exportação


Em Poços de Caldas (MG), vizinha ao Vale da Grama já em território mineiro, a sede da Bourbon, exportadora de cafés especiais, funciona como uma central de inteligência que separa os melhores lotes das fazendas e acessa cotações do mercado para venda no exterior. “Regulações do comércio lá fora apertam o cerco, diante do cenário da mudança climática global”, aponta Marcelo Viviani, chefe do escritório local, dedicado a articular produtores para um padrão de qualidade com o carimbo de práticas socioambientais, como a restauração florestal.  


Com seis escritórios no País, a Bourbon exporta 350 mil sacas de cafés especiais por ano, principalmente para Europa e Japão. Cerca de 20% se destinam à Nespresso, principal cliente. “O Brasil é o maior produtor mundial do grão, com 40% do mercado global, com fornecimento de grandes quantidades da commodity, mas não qualidade”, explica Viviani. Apenas 10% da produção brasileira é de cafés especiais, para o mercado premium, que exige boas práticas no campo e selo socioambiental.


“Com essas características, o valor para exportação é de 5% a 30% maior, cerca de R$ 1,2 mil por saca de 60 quilos, podendo atingir muito mais no caso de premiações e reconhecimento internacional”, afirma o gerente da Bourbon, trader que integra mundialmente o grupo Ecom.


Além de certificações internacionais, como a Fair Trade e a Rainforest Alliance, a empresa adota regras próprias para homologação de fornecedores, envolvendo, por exemplo, a rastreabilidade da origem, o uso controlado de agroquímicos e as condições de vida no campo. A meta é ampliar a certificação orgânica e há expectativa em torno de um projeto para o selo de origem Vale da Grama, voltado ao desenvolvimento rural sustentável, em 13 municípios da região.



O mapa de Marcelo Viviani para agregar valor aos cafés com ganhos ambientais



A provadora Jamaica Ribeiro testa os sabores no laboratório da Bourbon


Nas instalações da Bourbon em Poços de Caldas, telões plugados a bolsas de mercadorias dão suporte à precificação para venda do café a distribuidores no mundo, que então repassam ao varejo. Painéis retratam o controle dos estoques e, à frente, prateleiras com rótulos premiados estimulam o visitante para degustação. Ao lado do showroom, o laboratório de prova avalia física e sensorialmente cada detalhe das centenas de amostras de produtos candidatos. “É preciso ter concentração e não podemos usar perfume ou qualquer cheiro que atrapalhe a análise”, afirma Jamaica Ribeiro, há quase 20 anos no ofício. Em casa, o produto, diz ela, é uma raridade: “Só mesmo de manhã para despertar”.

Como mulher, a provadora enfrentou resistência em atividade majoritariamente masculina e hoje participa de famosos concursos para premiação dos melhores cafés. Poucos deles estão associados à restauração da Mata Atlântica, no seleto grupo de fazendas certificadas, com comprovada adequação à lei ambiental – 1% do total, no Vale da Grama. “Há sempre o desafio de engajar mais produtores”, enfatiza Marcelo, incansável no trabalho de articulação das propriedades na temática.

Ele faz o apostolado da restauração desde 2002, quando coordenou o plantio de 120 mil mudas nativas para proteger 124 nascentes em projeto do Departamento Municipal de Água e Esgoto, em Poços de Caldas. Dois anos depois, começou a trabalhar com programas de certificação agrícola. Hoje, o objetivo é replicar em outras regiões produtoras e fornecedoras os aprendizados do convívio entre café e biodiversidade na Mata Atlântica. “Quem trabalha com cafés especiais, principalmente as novas gerações, está mais aberto a inovações e o boca-a-boca tem grande valor para romper resistências”, analisa Marcelo.

Compartilhar nas redes: