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Javier Milei, presidente da Argentina, chamou Lula de comunista e corrupto
Javier Milei, presidente da Argentina, chamou Lula de comunista e corrupto| Foto: EFE/Ariel Alejandro Carreras

O presidente argentino Javier Milei está apostando em reforçar o antagonismo ideológico com o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para disputar com ele a liderança regional na América do Sul e também se projetar mundialmente como líder de direita, segundo analistas ouvidos pela Gazeta do Povo.

Milei bateu boca com Lula pela imprensa na semana passada, chamando novamente o presidente brasileiro de corrupto e comunista após Lula exigir dele um pedido de desculpas pelas "ofensas" proferidas inicialmente em 2023. Também compareceu à Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC) ao lado do ex-presidente Bolsonaro no domingo (7) em Santa Catarina e faltou à reunião de cúpula do Mercosul na segunda-feira (8) no Paraguai.

Segundo o consultor de comércio internacional da BMJ Consultores Associados, Guilherme Gomes, o Brasil exerce naturalmente um papel de liderança na América Latina. O país tem a maior economia, com um Produto Interno Bruto de US$ 2,3 trilhões, seguida por México (US$ 2 trilhões) e Argentina (US$ 604 bilhões). Mas Buenos Aires tem um desejo latente para assumir a liderança regional, ao menos entre os países da América do Sul. Na opinião do analista, Milei vê na "janela da polarização ideológica" uma oportunidade para disputar a liderança política da região com Lula.

"Nas perspectivas políticas, pode-se analisar esse movimento de Milei como o primeiro passo para reforçar o seu papel como uma liderança da direita na América Latina", disse Gomes.

Lula também quer o papel de líder regional, mas usa uma estratégia diferente, mais focada na construção de blocos e organismos multinacionais. Em maio do ano passado, ele convidou os líderes da América do Sul para um evento no Brasil com o objetivo de tentar reestruturar a Unasul (União das Nações Sul-Americanas), um organismo multinacional de viés esquerdista que havia sido criado por ele e por outros líderes de esquerda em 2008 e desestruturado entre 2018 e 2020, com a saída da maioria dos países-membros. Bolsonaro era contra a Unasul.

O evento de Lula foi um fracasso devido à sua insistência em apoiar o ditador venezuelano Nicolás Maduro. Foi naquela ocasião em que Lula disse que a ditadura na Venezuela é só uma narrativa.

Lula busca liderança institucional e Milei prefere caminho informal

A decisão de Milei de ir ao CPAC e não comparecer à cúpula do Mercosul, o Mercado Comum do Sul, nesta semana mostra a diferença entre as estratégias dos dois presidentes. Lula estava presente no Mercosul e disse que a ausência de Milei é "triste para a Argentina".

"Milei não pretende ser uma uma liderança institucional. Observa-se que a visita que ele faz ao Brasil não é como presidente da Argentina [visitando o presidente brasileiro], não é uma visita institucional, ele não vem aqui como presidente. Ele vem como o líder da direita da Argentina, aquela figura internacional da direita que tem se destacado em diversos foros da direita. Milei quer ser uma referência mais ideológica", avalia o cientista político.

"Sobre Lula, ao contrário, a liderança que ele pretende exercer é justamente no plano institucional. Ou seja, ele usa como base a Presidência da República, ele participa dos foros internacionais, tenta construir arranjos políticos ou econômicos como o presidente do Brasil", disse Gabiati.

Neste contexto, o cientista político avalia que a presença de Milei no CPAC foi mais uma estratégia do argentino para reforçar sua oposição ao considerado “tradicional”.

"O esperado era que Milei estivesse no Paraguai discutindo o Mercosul. O que quero dizer com isso é que para figuras que trabalham muito bem a comunicação como o ex-presidente Bolsonaro, como Milei e o ex-presidente americano Donald Trump, não há improviso. Para essa direita mais ideológica que tem trabalhado muito bem a comunicação, os gestos e as decisões políticas são muito bem pensadas", avalia o especialista.

Além da visita ao Brasil para se encontrar com lideranças de direita, Milei já fez quatro viagens aos Estados Unidos e teve agendas em países europeus como Suíça e Itália. A agenda internacional do argentino, contudo, é marcada por uma particularidade: não são visitas de Estado. "Ou seja, ele não tem que participar de cerimônias com o presidente ou primeiro-ministro. Há uma agenda rígida quando se faz visitas de Estado e Milei não a cumpre dessa forma", explica Gabiati.

"Em todas essas viagens, ele se encontra com outros líderes da direita, premiês, presidentes e com empresários alinhados à essa ideologia. Então percebe-se que há um objetivo claro do Milei de ser uma das grandes referências desse movimento não só na América Latina, mas mundialmente. Ele se enxerga como um líder que tem potencial para liderar o movimento da direita populista no mundo e por isso mantém esse tipo de agenda", avalia o cientista político e diretor da consultoria Dominum.

A singularidade de Milei é reforçada por ele ser o único político de ideologia libertária que se tornou presidente de um país. Essa ideologia significa que ele leva ao limite as ideias de livre mercado e liberdades individuais pregadas pelo liberalismo. Por causa disso, foi taxado de louco ou de ultra radical por seus oponentes e até dentro da própria direita. Por outro lado, seu destino é observado mundialmente com esperaça como a primeira experiência prática de um governo de ideologia realmente libertária.

Estratégia de Milei também foca política interna argentina

Essa estratégia também tem interesses internos, conforme pontua Guilherme Gomes, consultor de comércio internacional da BMJ Consultores Associados. Milei assumiu a Casa Rosada em um momento de profundo colapso na Argentina, com hiperinflação e 40% da nação em extrema pobreza. Ele vem implementando propostas consideradas radicais e um duro programa de austeridade, que vêm rendendo superávits consecutivos e redução da inflação. Argentina registrou o quinto superávit fiscal primário mensal seguido em maio, de US$ 2,57 bilhões, o maior até agora sob o comando de Milei, e a inflação oficial mensal caiu cerca de vinte pontos percentuais desde o início de seu mandato.

Mesmo assim, ele não agrada a todos os setores do país, especialmente os peronistas, que estavam acostumados com o paternalismo do Estado.

"O Milei tem enfrentado um movimento econômico bastante desafiador e, nesse momento da reforma econômica, é interessante para o presidente buscar outros povos", avalia Gomes. Segundo o analista, o apoio internacional pode aumentar a força política de Milei dentro da Argentina.

Opostos, discursos de Lula e Milei se retroalimentam

Para analistas, o cenário de polarização mundial contribui para o surgimento de disputas por liderança regional através do embate ideológico. "O cenário atual, não só aqui na região, mas no mundo todo, principalmente nas nações ocidentais, é de uma polarização cada vez mais marcada. E em um cenário de polarização cada vez mais forte, talvez a leitura que tanto Milei quanto Lula estão fazendo é a de trabalhar a favor dessa polarização e com pautas que rivalizem", avalia Gabiati.

Enquanto Lula busca fortalecer sua influência como uma voz progressista e populista, Milei articula uma narrativa que apela para os eleitores descontentes com o establishment político e econômico, propondo uma alternativa viável de menor paternalismo e menos participação do Estado na política e na economia.

O claro oposicionismo entre os presidentes do Brasil e Argentina fica evidente na maioria dos discursos e políticas de governo que ambos adotam. O mandatário argentino declarou seu apoio a Israel e à Ucrânia no contexto das guerras que enfrentam contra o Hamas e Rússia, respectivamente. Esse posicionamento é importante porque as guerras são os temas dominantes da política internacional hoje. A posição de Milei é um alinhamento claro ao grupo do G7, das maiores economias liberais do planeta, entre elas os Estados Unidos e a Europa.

Já Lula se afastou das democracias ocidentais ao fazer o caminho oposto, com críticas a Israel e acenos ao ditador Vladimir Putin. Ou seja, o petista tenta cada vez mais levar o Brasil para o eixo de países autoritários liderados pela China.

No campo econômico, Milei tem adotado o discurso de que a dolarização da Argentina poderia ser uma das soluções para recuperar o país da crise financeira e da hiperinflação. Lula, por outro lado, tem apoiado discussões no Brics (acrônimo para o bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul e mais seis nações) para transações comerciais entre países que descartem o dólar e usem o yuan chinês ou moedas locais. O bloco discute ainda a possibilidade de uma moeda única para negociações entre os países-membros.

Milei defende a redução da presença do Estado na economia e o livre comércio. Lula vai no sentido oposto, apostando em no Estado como indutor do desenvolvimento econômico e pouco preocupado com a desvalorização do real. Essa diferença foi criticada por Milei no CPAC: "Em nome da justiça social, os socialistas cometeram atrocidades, inventando mercados cativos para empresários amigos, violaram direitos fundamentais de uns e outros", afirmou o argentino.

Já Lula vende internacionalmente a imagem de um governo alegadamente voltado para a promoção de políticas sociais que preveem a redução da pobreza e da fome por meio da redistribuição de renda pelos impostos e taxações.

Em seu discurso no CPAC, Milei evitou menções diretas a Lula, mas condenou os governos de Cuba, Venezuela e Nicarágua, regimes ditatoriais de esquerda que o petista tem declarada aproximação. Milei chamou esses países de "ditaduras sanguinárias" e fez críticas veladas a Lula.

"É falso que a esquerda seja a ideologia dos pobres e dos oprimidos. A cada dia fica mais claro que é a ideologia dos ricos, dos poderosos que controlam e têm posições de destaque na difusão cultural", disse Milei em seu discurso durante o CPAC, em Balneário Camboriú (SC).

Lula também adotou um tom indireto durante seu discurso no Mercosul. Sem menções ao argentino, fez críticas a direita e alfinetou Javier Milei ao criticar o libertarianismo na Argentina. Ele também criticou barreiras diplomáticas criadas pelos argentinos a projetos esquerdistas no Mercosul. "Um pseudo “aggiornamento” [atualização, em italiano] que afasta o Mercosul de suas bases sociais nos enfraquece. Apagar a palavra gênero de documentos só agrava a violência cotidiana sofrida por mulheres e meninas", disse Lula se referindo à resistência da Argentina de aprovar no Mercosul alegadas políticas de gênero propostas pelo governo Lula.

“Quem conhece a história da América Latina reconhece o valor do Estado como planejador e indutor do desenvolvimento. No mundo globalizado não faz sentido recorrer ao nacionalismo arcaico e isolacionista. Tampouco há justificativa para resgatar as experiências ultraliberais que apenas agravaram as desigualdades em nossa região”, disse o petista em uma provocação ao argentino.

Mais tarde, Lula ainda criticou a ausência de Javier Milei na Cúpula do Mercosul para estar no CPAC. "Sinceramente é o tipo de reunião [o CPAC] que não me interessa. No final das contas, o Presidente da República perder tempo fazendo uma coisa de extrema-direita é tão desagradável, é tão antissocial, tão antipovo, tão antidemocrático. Não sei o que as pessoas ganham participando disso”, afirmou.

Analistas esperavam que os discursos de Milei no CPAC e Lula na cúpula do Mercosul não só aumentassem a rivalidade, mas gerassem uma eventual crise diplomática. Mas os mandatários não caíram nas provocações mútuas. Nenhum deles determinou, por exemplo, a convocação de embaixadores - ato considerado ofensa no meio diplomático.

Lula teria sido orientado a se conter para não provocar uma crise similar à que criou com Israel quando comparou a ofensiva militar israelense ao nazismo de Adolf Hitler. Ou seja, os episódios do CPAC e da Cúpula do Mercosul passaram sem uma crise diplomática maior entre Brasil e Argentina, mas o embate entre Milei e Lula por influência internacional deve continuar.

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