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O príncipe da Fuzeta

Francisco do Rosário quer ser rei de Portugal. O autodenominado ‘Príncipe da Fuzeta’ formou o respectivo Principado, Governo e Guarda Real. Em 1988 comprou um terreno, não sabendo que também tinha comprado uma herança real do tempo de D. Maria I. Quando soube, nasceu um sonho. Francisco diz que tem direito a mais de metade de Portugal, Brasil e Cabinda. Vive só, mergulhado na pobreza e nos documentos seculares que lhe dão alimento.
28 de Agosto de 2005 às 00:00
Francisco do Rosário
Francisco do Rosário FOTO: Vasco Célio
O sino não tocava a rebate, o tapete vermelho não lhe cobria o chão, não haviam flores pelo ar, nenhuma multidão o cercava, não estava lá o séquito, não haviam convidados em fila para apresentar as vénias e os respeitosos cumprimentos. Nem vestígios de pompa adequada à circunstância de estarmos perante presença real, tão real como o homem encostado a uma parede, a poucos metros das bombas de gasolina do lugar de Alfandanga – Algarve –, dentro de uma camisa aos quadrados de pescador, umas calças de fazenda de prazo esgotado, uns sapatos sujos e velhos, a acenar expectativa, por trás de uma placa que de longe se sobrepunha à sua imagem, a indicar o caminho para a Fuzeta, onde apenas acabou o que está por começar. Precisamente ali, nos confins algarvios da sua mente, o auto-intitulado príncipe da Fuzeta, é rei de Portugal.
Em breves minutos, advertiu, trataria de explicar a génese da sua pretensão ao “trono” da República de Portugal continental, ilhas, e à generalidade dos campos de golfe do Algarve. Tinha documentos na sua posse para provar o que dizia e conversa de sobra para comprovar o que ainda tinha para dizer.
Era favor que o acompanhássemos então à sede do ‘Principado’, que ficava nas cercanias. Era seguir a viatura oficial do ‘príncipe’ Francisco do Rosário Candeias, um Citroën AX, presumivelmente ainda mais velho que as suas calças reais, a estremecer como uma cafeteira ao lume, na estrada de terra que conduzia à sua corte rural, com vista para um aglomerado de aldeamentos turísticos. Logo à entrada, em letras garrafais, séria informação: “Aviso: Cercado de Bias, sede do Governo Civil e Militar, enclave pertencente, território do Estado Independente do Principado da Fuzeta da Rainha D. Maria I. Como a determinação real de 15-3-1999 através: carta de doação régia da então Rainha de Portugal de 24-11-1794”. O autoproclamado rei dos portugueses, reconhece, não domina bem o português que escreve. Em 1999, corrigiu em voz, não existiam reis. Ou melhor, era ele. Mas levou muitos anos para que desse conta da sua própria existência. Andou ocupado pela Terra Nova, a perseguir postas de bacalhau. Ou nos subúrbios de Roterdão, na Holanda, a vergar o seu esqueleto real numa refinaria gigantesca da Shell. Nascido a 21 de Outubro de 1942, na freguesia de Moncarapacho, Francisco era filho de gente de trabalho, mas sem posses.
Com apenas seis anos começou a trabalhar, curiosamente no local que hoje demarca o ‘Principado da Fuzeta da Rainha D. Maria I’. Em 1959, o pequeno ‘príncipe’ foi encaminhado para a Escola Profissional de Pesca de Pedrouços. Aqui, ao que rezam as crónicas do próprio Francisco Candeias, deu-se a primeira ocorrência azarada, que havia de marcar o seu futuro de forma indelével. “Devido a um lapso dessa escola profissional, trocaram o meu nome por outro. E, por causa disso, não prossegui os meus estudos para a Escola de Oficiais da Marinha Mercante”. No entanto, se não lhe falha a modéstia, “fui um dos melhores classificados do meu ano de curso”.
Os anos que se seguiram passaram tão depressa que não houve tempo de aprender a ler e a escrever correctamente. O mar dispensava luxos de alfabetização. É sem disfarçar orgulho que afirma peremptoriamente: “Consegui o melhor óleo de fígado de bacalhau de 1961”, troféu atribuído pelos companheiros de faina. Era trabalho duro, mesmo na força da idade. Aos 18 anos, Francisco abandonou o barco. Com 22 anos emigrou para a Holanda, onde conseguiu colocação numa refinaria.
Mais tarde, mudou-se para uma fábrica de polir tubos para ‘pipe-lines’. Mais uma vez, não tem dúvidas: “Ninguém polia tubos como eu. Só não cheguei a chefe da fábrica porque houve lá uns problemas com o filho do chefe.” Os problemas acabaram com a promoção do filho do chefe a chefe do pai.
Francisco do Rosário, como é conhecido entre os amigos que lhe restam na Fuzeta, resolveu embrulhar o destino e colocá-lo entre os artigos de viagem, neste caso, directo à procedência. Só desfez as malas na Fuzeta, onde aparentemente tudo tinha mudado, excepto o conteúdo das ditas. Trouxera exactamente o que tinha levado. O verdadeiro pecúlio deste emigrante, esclarece o próprio, não estava à vista. Polia tubos como ninguém, repete, foi um grande atirador nos seus tempos de militar e ninguém lhe podia tirar o mundo que viu. Com este espírito, o futuro era uma pedra a sair do sapato. Com este espírito, conseguiu constituir rebanho. Num belo dia, há coisa de 31 anos, inaugurou o Talho Candeias, que nunca conseguiu expandir para o sonho de uma cadeia Candeias. “Tiraram-me o meu rebanho. Penhoraram-me tudo, fizeram-me a vida negra.” Do negro dessa vida, nasceu outra, misturada num conjunto de coincidências e acasos.
OS TERRENOS DA DISCÓRDIA
Ainda hoje o ‘príncipe da Fuzeta’ não percebe como comprou tantas complicações. No dia 26 de Janeiro de 1988 Francisco do Rosário investiu o que tinha e o que não tinha nos terrenos da Atabueira, sem imaginar que a sua história era longa e recheada de surpresas. Tantas, que mais tarde o transformaram num autêntico especialista a contornar burocracias. Por dez mil contos, que na altura já era soma de respeito, nasceu um embróglio que ainda não conheceu desfecho.
Depois de aturadas investigações na Torre do Tombo, nos arquivos históricos de Faro e de Olhão, e de muitas presenças no Tribunal Judicial de Olhão, Francisco do Rosário Candeias concluiu, sem quaisquer reservas de dúvida, que era o dono e senhor do Principado da Fuzeta e, na versão dos seus sonhos, legítimo pretendente a Rei de Portugal. Francisco respira fundo enquanto rebobina mais de dois séculos. E passa a explicar: “No ano da graça de 1792, a rainha D. Maria I faz uma escritura de renda sobre os terrenos da Taboeira – então assim designados –, a favor de Manuel Domingos Pereira Barros, de Moncarapacho.”
Este conterrâneo de Francisco, porém, seria despojado destas terras. Em 1794, conforme ficou devidamente provado recentemente no Tribunal de Olhão, D. Maria I, em reconhecimento de 25 anos de serviços prestados ao reino, “faz uma doação dos terrenos da Taboeira, com retroactividade a 1599, ao juiz desembargador das Alfândegas do Algarve, de seu nome João Vidal da Costa e Sousa”, afirma. Aliás, “essa doação é comprovada por Carta Régia, da qual também tenho uma cópia na minha posse, datada de 1794, por Decreto de Sesmarias de 26 de Setembro do mesmo ano”, acrescenta. Após sucessivas gerações, a família Costa e Sousa acabaria por vender os terrenos da Taboeira ao capitão Martins de Barros. O militar, porém, viria a falecer poucos anos depois, deixando as terras de herança ao seu filho, Lourenço Martins de Barros.
Maria Isabel Higino de Barros, viúva de Lourenço, tinha amor às suas terras só comparável ao que tinha pelo defunto marido, sempre determinada em não ceder o seu espaço às ofertas chorudas que lhe faziam em vida para comprar o que deixaria na morte.
A viúva resistiu às tentações de venda até ao fim. E acabou por ceder os terrenos da Taboeira a um sobrinho. Na curvatura do tempo, Francisco do Rosário Candeias acabou por cair nas boas graças de Maria Helena Martins da Silva, a viúva desse sobrinho que herdara os terrenos da Atabueira, que acabou por os vender a Francisco, quando podia ter vendido por muito mais a uns empresários que tinham esses terrenos debaixo de olho para a construção de um complexo turístico.
Com base no que consta na carta de D. Maria I, Francisco entende que, ao comprar os terrenos da Atabueira, ficou também na posse dos direitos de herança do Principado, pois no documento régio afirma-se que aquelas terras são pertença do sujeito da doação e dos seus respectivos sucessores. Assim sendo, “os domínios do meu Principado são muito mais vastos do que os meros terrenos da Atabueira”. E, garante, há uma senhora na Conservatória de Olhão, cujo nome não lhe ocorre, que não o deixa mentir. “Quando fui lá pedir os registos das minhas terras, ela disse-me que eu também tinha comprado os direitos de uma herança”.
Segundo os cálculos de Francisco do Rosário Candeias, o mapa do Principado parece não ter limites, como a sua imaginação. “Eu posso provar, muito sinteticamente. Ora bem, se verificarmos que a Companhia Real das Pescarias, que representa mais de metade do território de Portugal, pertence aos terrenos do Principado da Fuzeta, vistas bem as coisas, Portugal é quase todo meu”. Não faz por menos. Aliás, faz por muito mais. “Segundo o alvará régio de demarcação, a certidão régia de posse, a carta precatória do Supremo Tribunal da Coroa, uma certidão judicial de 1915 e a indispensável escritura da compra dos terrenos da Atabueira, é bom de ver que, até ao ano de 1804, todas as propriedades da Rainha D. Maria I são minhas. E isto, meus amigos, inclui o Brasil e Cabinda”. Numa visão limitadíssima, coisa rara no príncipe, é certo e confirmado que o sítio de Bias do Sul, Cabanas, Bairro Alto (Algarve), Atabueira, Murteira e Maragota são de sua senhoria. “Já deve ter percebido que não é fácil para mim estar a reclamar tudo o que é meu”.
E aqui entra uma entidade sinistra, desconhecida, que vive com ele de manhã à noite, que o tem atormentado até aos limites da loucura, que culminou com um ataque cardíaco em plena barra dos tribunais, no 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Olhão. “Há forças malignas que querem impedir-me de tomar conta do meu destino, que é acabar com as injustiças em Portugal”. Nas suas contas, já são duas as tentativas frustadas de regicídio. “Quiseram matar-me aqui mesmo, na minha casa. Também já me quiseram internar várias vezes. Tudo para impedir que eu chegue ao trono”. Por via das dúvidas, Francisco antecipou-se e formou Governo. O governo do Principado da Fuzeta, que por enquanto só tem o seu líder e soberano nas fileiras, na companhia de três gatos e três cães. Também há projecto para constituição da Guarda Real, que sofre do mesmo problema.
O poder, sabe-o agora de cátedra, é lugar solitário. “Todos me abandonaram”. A mulher, o filho – que só lhe faz visitas ocasionais –, até os súbditos das redondezas, desviam o olhar à sua passagem. Na pobreza, encerrado num escritório improvisado no primeiro andar da sua casa, cria governos, envia cartas para o Ministério da Justiça, para a presidência da República, para a Casa de Bragança, para o primeiro-ministro de Espanha, para o Rei de Marrocos, fantasia com a sua corte, pretende aprender golfe, quer começar a frequentar a alta-sociedade e anseia secretamente por uma princesa de alma sincera e fino trato. Francisco do Rosário Candeias sonha com o dia em que será rei reconhecido por todos e por todos respeitado. Se sonhar custasse, ele não poderia pagar.
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