Entrevista


Democracia e Justiça

Para Daniel Hirata, da Universidade Federal Fluminense, cidade vem sendo construída com mediação de grupos armados que influenciam seu funcionamento

Caso Marielle chama atenção para

Democracia e Justiça

Caso Marielle chama atenção para "urbanismo miliciano" no RJ, diz sociólogo

Para Daniel Hirata, da Universidade Federal Fluminense, cidade vem sendo construída com mediação de grupos armados que influenciam seu funcionamento

Escrito em 10 de Abril 2024 por
Rafael Ciscati

A atuação cada vez mais sofisticada das milícias mudou a maneira como a cidade do Rio de Janeiro funciona, e deu origem a um fenômeno que especialistas chamam de “urbanismo miliciano”. O conceito foi cunhado pelo professor Rafael Gonçalves, da PUC-RIO, e destaca como essas organizações criminosas forçaram a ampliação do perímetro urbano ao grilar terras públicas e construir loteamentos irregulares. Em especial, na zona Oeste carioca. 

Embora o conceito tenha sido pensado para descrever a realidade fluminense, ele pode ser aplicado a outras grandes cidades brasileiras. “Há pesquisas, em São Paulo, que mostram que o PCC atua fortemente mediando a ocupação de terras, com [apoio de ] policiais e sob a proteção política de certos vereadores ”, diz o sociólogo Daniel Hirata. Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Hirata coordena o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismo (Geni), que discute políticas de segurança pública. 

O vínculo das milícias com a grilagem de terras ganhou novo relevo com o avanço das investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco. De acordo com a apuração da Polícia Federal, os irmãos Chiquinho e Domingos Brazão decidiram matar a vereadora quando Marielle se opôs a um projeto de lei  que propunha regularizar ocupações clandestinas na zona oeste da cidade.

Hirata explica que, ao longo das duas últimas décadas, foi nessa região que o poder das milícias mais se fortaleceu. Trata-se de uma área de fronteira que, nesse período, assistiu a uma expansão da urbanização. Levantamento feito pela Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (Idmjr), uma organização fluminense, mostra também que a zona oeste foi a que mais concentrou propostas de regularização fundiária apresentadas na Assebleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj): entre 2021 e 2024, foram 43 indicações legislativas, número que representa 89% das propostas sobre o tema apresentadas na Assembleia. 

Nessas regiões, o modus operandi das milícias envolve ocupar terrenos públicos, construir loteamentos irregulares e lucrar por meio de exploração de serviços relacionados à infraestrutura urbana: como o fornecimento de água, gás de cozinha e televisão à cabo. O passo seguinte envolve buscar mudanças legislativas que regularizem essas ocupações. “A cidade do Rio de Janeiro vem sendo construída com a mediação dos grupos armados”, diz Hirata.

Ele destaca que isso só é possível porque essas organizações contam com o apoio - ou a conivência - de grupos com influência política. E que essa influência cresceu nos últimos anos.

O ponto de virada para as milícias, diz, foram as grandes obras de infraestrutura realizadas no Rio de Janeiro nos anos que precederam a Copa do Mundo do Brasil, em 2014, e os os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016. “Foram anos em que se investiu muito num eixo que vai do centro da cidade à zona Oeste. Foi o eixo das remoções, construído a ferro e fogo”, diz Hirata. “Isso impulsionou ainda mais a urbanização nessa fronteira urbana onde as milícias estavam”. 


Hoje, diz ele, o modelo de segurança pública adotado na cidade não é capaz de conter a expansão desses grupos criminosos. Baseado em grandes operações militarizadas, ele foi pensado para combater o tráfico de drogas: e se mostrou ineficiente mesmo para esse objetivo.

Para se opor às milícias, Hirata recomenda que o poder público aprimore mecanismos de fiscalização. “Temos que atacar as bases de cobertura política desses grupos, e atacar as bases econômicas também. Isso nos permitiria, inclusive, ter um espaço urbano mais democrático”. 

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Brasil de Direitos - O que é o urbanismo miliciano?    
Daniel Hirata - É a produção do espaço urbano vinculada aos grupos armados. Esse  termo foi cunhado pelo professor Rafael Gonçalves da PUC-RIO. Há muitos anos, ele pesquisa a história das favelas, e como  isso se relaciona com a produção da cidade em geral e, em particular, com essa realidade mais recente. Aqui no Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), utilizamos esse termo de modo mais ou menos livre, mas que se relaciona com a maneira como o Rafael o utilizou da primeira vez. Nos referimos a  esse fazer urbano que associa grupos armados - particularmente as milícias - com poderes políticos e policiais.

A ideia é mostrar como esses grupos armados interferem na maneira como as cidades são organizadas?
Exatamente. A cidade do Rio de Janeiro - em especial a zona Oeste, que é uma espécie de fronteira urbana, para onde a cidade cresce - vem sendo  construída com a mediação dos grupos armados. Essas formações de tipo miliciano, com as características que conhecemos hoje, começam a aparecer no final dos anos 1990. Na época, elas não tinham esse nome. E elas têm uma particularidade: seu modelo de negócios é muito assentado no fazer a cidade. Eles se apoiam em mercados que têm como palco a própria cidade. A começar pelo mercado imobiliário. Isso ficou mais claro a partir do caso Marielle. O mercado imobiliário, por sua vez, envolve muitos outros mercados: há o mercado da ocupação, do loteamento, da construção imobiliária, da compra e venda de imóveis, da locação e até da administração condominial. Em muitos conjuntos habitacionais, por exemplo, nós notamos a presença de síndico ligados à milícia. 

É esse o modelo de negócios das milícias?
Sim. As milícias lucram com o loteamento e com a construção dos imóveis. Há um fenômeno importante no Rio de Janeiro que é a explosão de kitnets. Trata-se de um tipo de habitação que tem muita circulação. Hoje, várias delas são construídas dentro de áreas de preservação ambiental. Mas as milícias também fazem dinheiro ao explorar outros que têm a ver com a infraestrutura urbana. Me refiro à água, luz, lixo, gás de cozinha, internet, televisão a cabo, eletricidade. Em todos esses mercados, as milícias atuam de forma predatória. Fazem uma espécie de extrativismo urbano. Seja na operacionalização direta - com empresas e  grupos de milicianos que atuam como construtores, fornecedores de serviços, distribuidores de gás, etc. Ou, então, na forma da extorsão, que também é outra prática muito central para as milícias. Elas vão extorquir empresas, empresários, comerciantes. 

Agora, o que é importante ser dito: toda essa pilhagem só é possível se esses grupos têm apoios políticos e policiais. Apoio da própria institucionalidade estatal. Isso inclui um aspecto mais conhecido, que é a presença de policiais nas fileiras das milícias. Mas também negociações com pessoas que deveriam zelar pela cidade como um bem público. Fiscais, órgãos de controle - Domingos Brazão, preso como um dos mandantes do assassinato de Marielle, era um conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, que é um órgão de controle e fiscalização. E os próprios representantes públicos - vereadores, deputados. O caso Marielle também  trouxe à baila projetos de lei que eram apresentados para flexibilizar  a regularização fundiária em favor de grupos milicianos. Você tem uma rede criminosa que atravessa Estado e sociedade, formalidade e informalidade. E essa rede sustenta isso que chamamos de urbanismo miliciano. 

O caso Marielle jogou luz sobre as conexões políticas das milícias. É um sinal de que a atuação desses grupos se sofisticou com os anos, ou as milícias sempre estiveram intimamente ligadas à política?
O clientelismo político é muito antigo no Rio de Janeiro. Não é exatamente um novidade que, em alguns casos, o acesso a serviços e equipamentos urbanos e à moradia seja mediado por políticos, que eventualmente também teriam relações com grupos criminais. Mas as milícias vão dar um ganho de escala muito grande para isso. Estamos falando de áreas inteiras, bairros inteiros que foram construídos dessa forma. E é um tipo de mudança quantitativa que acaba produzindo uma mudança qualitativa. Esse ganho de escala que as milícias produzem significa uma penetração muito maior nos órgão públicos, uma relação muito mais íntima com esses atores. E uma atuação que se expande por áreas gigantescas. Em extensão e profundidade. Isso é uma novidade. Veio com as milícias que, diferentemente de outros  grupos armados que já existiam no Rio de Janeiro, em sua grande maioria, sobretudo no seu período formativo,  eram compostas por policiais, bombeiros, por pessoas  que sabiam como o Estado funcionava. E que foram ampliando essa rede. As milícias já nascem com esse novo modelo de negócios, e com esse novo modelo de cobertura política para proteger esse novo modelo de negócios. Mas, ao longo dos anos isso se aprofundou. 

Há um ponto de virada que favoreceu essa expansão das milícias?
A expansão das milícias foi muito favorecida pela construção da Cidade Olímpica. Foi um período em que o Rio de Janeiro sediou diversos megaeventos - a Jornada Mundial  da Juventude, Jogos Olímpicos, Copa do Mundo. E,  para que isso fosse possível, houve investimento público muito grande num eixo que ia do centro da cidade à zona Oeste. Foi um eixo das remoções, das UPPs, construído a ferro e a fogo, muito violento para garantir que esses investimentos chegassem a esses locais. Isso impulsionou ainda mais a urbanização nessa fronteira urbana que é zona Oeste. Foi um momento em que a zona Oeste se valorizou e se urbanizou muito. Teve um crescimento imobiliário muito grande. Justo num lugar onde  as milícias estavam. Essa conjuntura favoreceu enormemente a expansão desses grupos. Foi um momento de alavancagem muito grande para elas, justamente num momento em que o tráfico de drogas atuava, ali, basicamente no varejo das drogas. As milícias já atuavam no transporte coletivo, habitação, lixo. A mecânica  não é nova, mas a escala é. São atores diferentes que ganharam muito poder e que cresceram ao longo desses anos. 

Que cara esse fenômeno assume em outros centros urbanos, onde a milícia não tem tanto destaque?
Há pesquisas, em São Paulo, que mostram a atuação na ocupação de terras fortemente mediada por relações com o PCC, com policiais e sob a proteção política de certos vereadores. Já existe uma produção sobre isso que mostra, em diversos pontos das periferias paulistas, esse tipo de configuração. Se não é igual, é bastante comparável com o que as milícias fazem no Rio de Janeiro - essa articulação entre crime, polícia e política.

Hoje, como o Estado combate esses criminosos?
Não temos os instrumentos necessários para fazer esse enfrentamento. Via de regra, o modelo de segurança pública do Rio de Janeiro foi pensado em relação ao tráfico de drogas. É um modelo baseado em operações policiais, um modelo repressivo e reativo que já não funcionava para o tráfico de drogas. É bom lembrar que o modelo das operações policiais foi ampliado, que a militarização da segurança tem a ver com a lógica da expansão das operações por toda a cidade. Tudo isso teve consequências cada vez mais dramáticas do ponto de vista do aumento da letalidade policial. E não foi eficiente porque o tráfico de drogas só aumentou nesse período. A letalidade policial é água no moinho na lógica do controle territorial armado. Para o combate às milícias, esse modelo é mais ineficaz ainda. Além disso, é muito reduzido o número de operações policiais que acontecem nas áreas de milícias. O que se faz nessas áreas? Basicamente, nada. Além de ter uma política de segurança pública que é um fracasso, não temos nada de diferente para fazer frente a grupos que se organizam de uma maneira diferente. E esse é um problema real que enfrentamos no Rio. 

Que caminhos a segurança pública deveria tomar para enfrentar esses grupos?
Estamos falando da produção das cidades por grupos armados, associados - seja pela conivência, seja pela participação direta - com agentes públicos. Qual seria a política logicamente mais eficaz? São duas. Primeiro, a regulação de mercados urbanos. Muitas vezes, eles têm a presença estatal, mas não a efetiva mediação pública. É o extrativismo urbano. Regular esses mercados teria um efeito muito maior de diminuir o poder econômico desses grupos, sem os efeitos de letalidade que as operações policiais têm. Por outro lado, outra medida muito importante tem a ver com o rompimento do vínculo das polícias com os poderes oficiais. A começar pelas polícias, mas  também com as representações políticas, nos seus vários níveis. Inclusive no judiciário. A gente tem que atacar as bases de cobertura política desses grupos, e tem que atacar as bases econômicas também. Isso nos permitiria, inclusive, ter um espaço das cidades mais democrático. 

O que significa regulação de mercado urbanos?
Em primeiro lugar, é preciso fiscalização. Grande parte das terras da zona Oeste também são terras federais e é necessário um acompanhamento do que acontece com elas. Há medidas de ordem regulatória mais estrutural - como o plano diretor. Ele é o guia de como a urbanização deve ser feita. A regularização, urbanização, etc. Ele faz o planejamento urbano. Não temos planejamento urbano quando uma série de projetos de lei estão sendo utilizados para legislar em favor das milícias. Isso é um remendo de interesses privados fazendo uso de instituições públicas para obter vantagens particulares.  Nós tivemos a revisão do plano diretor. Alguém discutiu, durante esse processo de revisão, a questão das milícias? 

Daí temos um segundo nível, um nível legislativo: essa possibilidade de legislar sobre regularização fundiária é recente. Tem mais ou menos uma década. Será que é possível ter um pouco mais de transparência sobre o que se faz, quem faz, quais as consequências, os efeitos dessa legislação sobre regularização fundiária?

Num terceiro nível, fiscalização. Quem faz essa fiscalização? Como os órgãos de controle atuam em cada um desses pontos. 

Nada disso é trabalho de polícia. Mas são ações importantes para o enfrentamento de grupos armados. O mesmo pode ser dito dos outros mercados em que as milícias atuam. Um problema grave que temos no Rio de Janeiro é o da venda de gás de cozinha. Há um ágio que é cobrado, via de regra coisa de R$20 por botijão, que é repassado pelas distribuidoras ao consumidor final. A pessoa que mora em território controlado por milícias, normalmente regiões pobres, vai pagar um botijão mais caro do que quem vive em áreas mais abastadas. Seria possível fazer um cadastramento das distribuidoras de gás de modo que a fiscalização sobre o preço operado siga, mais ou menos, os patamares da agência nacional do petróleo? Para cada mercado, é possível pensar soluções específicas. Tudo isso seria muito mais eficiente que a politica de operações policiais. 

As discussões estimuladas pelo caso marielle podem levar a mudanças na política de segurança pública?
A Marielle, num primeiro momento, mostrou a partir das investigações dos executores, todos um universo criminal que era pouco conhecido no Rio de Janeiro. Bicheiros, matadores profissionais, o sicariato fluminense, milícias e por aí vai. Quando chegamos nessa etapa em que, segundo as autoridades, foram descobertos os mandantes, começou a emergir toda uma outra paisagem que envolve esses outros personagens: políticos, membros de órgãos de controle, policiais,etc. Pensando, no ponto de vista positivo, isso pode servir como ponto de partida. Espero que essa investigação, que tinha como alvo um caso específico, possa se desdobrar em outros casos. Não é possível imaginar que os personagens que apareceram nesse relatórios de inquérito da PF atuassem de forma isolada. A família Brazão é muito tradicional na política fluminense. A primeira eleição deles foi em 1996. Essa família ocupa posições do executivo e legislativo muito importantes. Não é periférica na cena política. O mesmo pode se dizer do  chefe da polícia civil que foi chefe da divisão de homicídios, responsável pelo esclarecimento das mortes. Me parece razoável que outras investigações sejam feitas para que se esclareça toda a extensão dessa rede criminal. Isso vai ser feito? Não sei. Um lado mais pessimista meu pensa que, sempre que aparecem essas denúncias envolvendo personagens importantes,  o que se faz é um acordo para estancar a sangria. Sacrifica-se algumas pessoas de modo a manter o sistema funcionando como antes. 

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