O país que reduziu assassinatos ao ‘legalizar’ gangues de jovens

  • Boris Miranda
  • Enviado especial da BBC News Mundo ao Equador
Três membros do grupo Latin Kings fazem gestos que representam seu grupo na universidade
Legenda da foto, Manuel Zúñiga (ao centro) junto com seus 'irmãos': ele comemora os resultados da legalização de sua 'nação'

Em pouco mais de uma década, as cores amarelo e preto, combinadas com uma coroa de ouro como símbolo, passaram a ganhar novos significados nas ruas de Quito, capital do Equador. Hoje, as roupas caraterísticas dos jovens da Latin Kings já não remetem mais ao medo ou à ilegalidade.

Essa é uma das gangues que está prestes a completar 11 anos de idade como organização "legalizada" no Equador, parte de um processo sem precedentes no país que contribuiu para uma redução em mais de 70% nos homicídios.

Agora, segundo observei como enviado da BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) à capital equatoriana, a coroa de ouro remete a... comida de qualidade.

Os Latin Kings (ou "Reis e Rainhas Latinos") são agora a Kings Catering, uma pequena empresa do ramo gastronômico.

Três membros do grupo Latin Kings fazem gestos que representam seu grupo dentro de um salão de jantar, um deles com roupa de chefe de cozinha
Legenda da foto, Os 'reis latinos' agora administram um negócio no ramo gastronômico

Não foi uma caminhada fácil, mas os resultados obtidos em dez anos já são destacados por organizações internacionais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

A entidade destaca que o programa teve influência significativa na redução da violência local. Segundo dados do BID, os assassinatos no Equador caíram de 15,35/100 mil habitantes em 2011 para 8,17 em 2014 e uma taxa próxima a 5 em 2017 - no Brasil, essa taxa é de cerca de 30 homicídios por 100 mil habitantes.

A difícil transição

Manuel Zúñiga é o "Inca", isto é, o presidente dos Latin Kings. Seu nome é King Majestic entre os "pandilleros" - como são chamados membros desses grupos marcadamente jovens, informais e vinculados a determinadas regiões.

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No passado, ele aprendeu a usar armas, roubar veículos e viver na prisão; hoje, ele é o representante legal de sua "pandilla" (ou "nação", como chamam em alguns casos) e trabalha na Universidade Católica de Quito, uma instituição privada, com um escritório e tudo mais.

Ele não utiliza mais suas antigas calças largas, mas continua a vestir com orgulho as cores de seu grupo e colares que ganhou como líder.

"Inca" também não esconde suas tatuagens e explica que cada uma simboliza os valores de seu grupo ou suas experiências pessoais.

"Nossa transição foi graças à união e à maturidade de todos nós. Não foi fácil, mas foi o de mais positivo para a nossa nação", explica o líder.

Zúñiga acrescenta que os "reis e rainhas" estavam "cansados ​​de tantos abusos e discriminação".

Mas "foi muito difícil convencer os irmãos porque vivíamos em um mundo de violência", diz.

"Agora que veem nossos passos como positivos, muitos irmãos estão se juntando a nós", conta à BBC News Mundo enquanto viaja em um carro dirigido por um desses "irmãos" da universidade até seu bairro, em um trajeto com quase uma hora de duração.

No início, apenas 20 "pandilleros" decidiram "se legalizar". Agora, eles são mais de mil, com origem nos Latin Kings e também em outras gangues.

Dois membros do grupo Latin Kings trocam saudação

Crédito, Edu León

Legenda da foto, Os Latin Kings deixaram a violência, mas mantêm seus símbolos

A 'legalização'

Ana Rodríguez, pesquisadora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) e ministra da Cultura em 2016, foi uma das promotoras do processo à época.

"Para evitar abusos e reivindicar a vontade de evitar ações violentas, começamos a promover a legalização", explica.

Rodríguez diz ter sido fundamental o apoio do governo e da polícia do Equador - o que incluiu a disponibilização, para os "pandilleros", de centros de apoio e treinamentos para o mercado de trabalho.

"Não foi preciso convencê-los. Foi uma vontade mútua acabar com a discriminação contra eles", disse Rodríguez à BBC News Mundo.

Homem mostra camisa com símbolo dos Latin Kings
Legenda da foto, A coroa que é símbolo dos Latin Kings já não é mais sinônimo de ilegalidade no Equador

A pesquisadora ressalta que o modelo funcionou e conseguiu se expandir até mesmo em direção às gangues inimigas dos Latin Kings.

"Uma das principais dificuldades foi mudar a imagem dos 'pandilleros', mas esse signo foi mudado."

O relatório "Inclusão social de baixo: As pandillas de rua e seus possíveis efeitos na redução da taxa de homicídios no Equador", do BID, também destaca as conquistas do programa - iniciado em 2007.

"Descobrimos que a legalização desses grupos ajudou a reduzir drasticamente a violência e o crime e, ao mesmo tempo, garantiu um espaço cultural e legal para transformar o capital social das gangues em meios eficazes para alcançar uma mudança de comportamento", destaca o relatório.

A empresa

Manuel anda com seus "irmãos" pelos corredores da Universidade Católica de Quito.

É 30 de outubro, e o Kings Catering tem dois importantes serviços a oferecer: um almoço dos decanos da instituição e outro do conselho das universidades equatorianas.

Ninguém se surpreende ao ver que jovens com várias tatuagens nos braços, camisetas estampadas e longos colares preparam e servem comida: no menu do dia, arroz pesto com frango recheado.

Para Manuel, uma das maiores conquistas na década foi a superação do estigma que os cercava.

Dois membros do grupo Latin Kings fazem trabalho de serigrafia
Legenda da foto, Membros da 'pandilla' agora recebem formação em técnicas como a de serigrafia

A socióloga Alejandra Delgado, coordenadora do programa de inclusão dos "pandilleros" da Universidade Católica, combina suas aulas com o trabalho ao lado dos "reis e rainhas latinos". O grau de confiança que ela construiu com o grupo é notável.

Os Latin Kings não trabalham apenas no serviço gastronômico como também recebem treinamento técnico em áreas como serigrafia e informática. Os entes envolvidos buscam projetos que funcionem a longo prazo e gerem empreendimentos próprios.

Luis Enrique, um dos "pandilleros", tornou-se recentemente o primeiro do grupo a cursar Sociologia na universidade. Ele frequenta as aulas com quase uma dúzia de colares, tatuagens nos braços e uma camiseta com os símbolos de sua "nação".

Lui Enrique mostra sua carteira de universitário
Legenda da foto, Luis Enrique é o primeiro membro da gangue a se matricular como aluno de sociologia

Os percalços

Apesar dos resultados celebrados, porém, a legalização das gangues não foi capaz de erradicar a violência entre grupos de jovens no Equador.

E embora o general de polícia Patricio Carrillo, agora parte do Ministério do Interior equatoriano, reconheça as conquistas do programa, ele também alerta para as dificuldades atuais de sua manutenção.

Membros do governo reconhecem que o surgimento de novos grupos violentos não legalizados e o cenário econômico atual, de queda na renda dos equatorianos, dificulta o apoio aos "pandilleros".

Para Carrillo, a redução da violência no país não passa apenas pelo trabalho com as organizações juvenis mas também pela aproximação entre a polícia e as comunidades, subdivididas em áreas de atuação dos agentes de segurança.

Lições

Homem armado e fardado participa de revista em carro no Equador

Crédito, AFP

Legenda da foto, Em paralelo à legalização, um obstáculo ao programa é o surgimento de novos grupos violentos no Equador

Curiosamente, as conquistas da experiência equatoriana não parecem ter chamado a atenção de outros países latino-americanos.

Para especialistas consultados pela BBC News Mundo, a experiência é pouco conhecida e há resistência em países próximos, como El Salvador, a uma eventual alocação de recursos públicos para membros de gangues.

"É preciso implementar uma mudança estrutural, não só do governo, mas também da polícia - como aconteceu no Equador", defende Rafael Gude, pesquisador do BID que trabalhou com "pandillas" no Equador e na América Central.

A socióloga Ana Rodríguez afirma que o processo equatoriano deveria ser replicado em outros países - mudando a abordagem "criminalizadora" dos membros de gangues.

"É muito difícil que isso seja alcançado se os governos continuarem atribuindo a culpa pelos problemas em suas ruas às organizações de jovens. Eles (os governos) devem reconhecer que a violência é produto da desigualdade, e não das gangues."

Para ela, os Estados com problemas de violência mostram a repressão contra as gangues como uma conquista, apesar da evidente ineficiência dessa política na redução de homicídios.

A opinião da sociólogia encontra semelhanças com a de Manuel Zúñiga, presidente dos Latin Kings, que expressa desejar que "irmãos" em outros países sigam o mesmo caminho de sua "nação" e possam andar com suas tatuagens e camisetas pretas com coroa dourada sem dificuldades nos corredores de universidades e órgãos governamentais.

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