Principal avaliação positiva
5,0 de 5 estrelasUma rica fonte de resenhas em sociologia brasileira
Avaliado no Brasil em 31 de dezembro de 2022
Trabalhada, por assim dizer, a seis mãos, reuniu esta obra três amigos como seus autores. Além da amizade, reforçada pela origem geográfica comum, Belo Horizonte (grande cidade!) alia-os nessa empreitada o desejo comum de aproximar o público cristão evangélico dos elementos fundadores de nossa cultura brasileira. Cada um contribui com suas especialidades e áreas próprias de estudo. Rodolfo Amorim, mestre em sociologia pela UFMG, com especialização em Relações Internacionais pela PUC-MG, professor universitário e cofundador do L'Abri Brasil, coautor de Fé cristã e cultura contemporânea e Cosmovisão cristã e transformação, ambos pela Editora Ultimato; Davi Lago, pesquisador no Laboratório de Política na PUC-SP, professor de seminários, mestre em Direito, realizador do projeto cultural “A Distopia” em parceria com a Academia Mineira de Letras, palestrante e coautor dos livros Um dia sem reclamar (Citadel), Brasil polifônico, Formigas (Mundo Cristão) e O evangelho da paz e o discurso de ódio (Thomas Nelson Brasil); e Marcos Almeida, muito conhecido por suas canções da banda Palavrantiga, hoje em carreira solo, atuando em projetos e produção artística, coautor dos livros Igreja sinfônica e Uma nova reforma (Mundo Cristão). Enquanto os dois primeiros escrevem sob a perspectiva acadêmica, teológica e sociológica, o terceiro contribui com inserções ao longo do livro, sob uma perspectiva artística, sem deixar de ser bem-informado e provocativo, trazendo sempre elementos de contestação.
O objetivo principal do livro é promover uma escuta. A escuta dos evangélicos à sua cultura brasileira e, o que abre caminha para o seu inverso, a escuta da nossa cultura brasileira ao evangélico. Os autores partem da observação de que o diálogo evangélico brasileiro/cultura brasileira é dificultado de ambas as partes por resistências que comprometem o entendimento. Particularmente, “o crente normalmente apresenta projetos no campo da cultura meio como um ideólogo o faz, algo intervencionista no sentido de querer mudar o rumo das coisas” (p. 389). Por outro lado, os representantes da cultura veem na fé evangélica um público fechado em sua religiosidade com pouca ou mesmo nenhuma relevância ou interesse para a contribuição, podendo mesmo ser considerado um hostil e deletério.
Com o objetivo de apresentar a cultura brasileira ao público cristão, os autores apoiam-se no conceito teológico de graça comum para desafiar-nos a ouvir nossa cultura antes de prejulgamentos, buscando entender o que é o Brasil, o que é ser brasileiro e quais as particularidades dessa cultura. A obra, dividida em três partes, é organizada:
...a partir de três eixos fundantes: 1) A apresentação de personagens que traduzem facetas únicas da nação; 2) O diálogo com intérpretes que nos auxiliam a compreender as particularidades do Brasil; e 3) A introdução aos artefatos artísticos que revelam a singularidade da imaginação brasileira. (p.19)
Na Parte 1 – O Brasil por seus personagens – a cultura brasileira nos é apresentada a partir de dois tipos de personagens. Primeiramente, os que se encontram no centro do poder. Os padres jesuítas José de Anchieta e Antônio Vieira representam a religiosidade da contrareforma e a educação trazidas a esta então colônia portuguesa. O invasor Maurício de Nassau e o “traidor” Calabar contribuem com um olhar sobre uma terra ainda disputada. José Bonifácio e D. Pedro II configuraram um Brasil independente, que merece estar entre as nações livres. Passando pela Proclamação da República e a política do “café com leite”, Getúlio Vargas será a figura proeminente como político forte. Em segundo lugar, personagens à margem do poder. Representantes das raças e povos submetidos e relegados, como Zumbi, Felipe Camarão. Revoltosos, como Tiradentes e Frei Caneca. Mulheres, como Chica da Silva e Princesa Isabel. Assim, essa primeira parte destaca as particularidades e até ambiguidades da formação do povo brasileiro a partir de personagens bastante diferentes entre si. Considero a leitura dessa primeira parte a mais fluida, prazerosa, se posso colocar assim, no sentido do deleite em ouvir histórias bem contadas.
Quanto à parte 2 – O Brasil por seus intérpretes – temos, mais uma vez, uma divisão, agora entre os intérpretes canônicos e os contestados. Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, são avaliados como os propositores das principais teses que procuram explicar o que é o Brasil. Nas divergências das suas proposições percebemos a complexidade em se explicar nossa cultura, seja pelo viés culturalista de equilíbrio de antagonismos na miscigenação racial, pelo viés do tipo weberiano valorativo do “homem cordial”, ou pelo viés marxista de uma superestrutura econômica de dependência ao externo que se estende da colonização aos dias atuais. Sobre as interpretações contestadas, vemos representantes de opiniões que nos permitem perceber mais explicitamente as tensões sociais e as tentativas de assimilação de elementos externos. De abolicionistas a sociólogos, observa-se uma frustração quanto às possibilidades e desdobramentos da ação pública para a construção de um país melhor. Considero a leitura dessa segunda parte mais exigente, por expor as teorias sociológicas que são ainda hoje influentes na maneira como os intelectuais pensam nosso país.
Creio que é na Parte 3 – O Brasil por seus artefatos artísticos – que o título do livro (Arte e espiritualidade) ganha maior sentido. E é mais especificamente na conclusão que o subtítulo (o cristão e a cultura brasileira) fica evidente. As duas primeiras partes servem como informativo e preparação para essa parte final, embora o assunto afirmado no título e subtítulo estejam presentes de forma não explicita em toda obra. Seguindo um roteiro cultural histórico, desde o Barroco até a arte contemporânea, os autores mostram as particularidades da cultura no Brasil, mesmo quando essa assimila elementos externos, ao mesmo tempo que não consegue se desligar destes mesmos elementos, mesmo quando os contesta abertamente. A figura de Mário de Andrade é a proeminente aqui, sendo seu projeto modernista o elemento de contestação e que virá a ser contestado, mesmo pela arte contemporânea. Terminam os autores esta parte destacando as contribuições bastante pertinentes das culturas africana e indígena no presente cenário cultural brasileiro. Carecem estas de serem apreendidas pelos cristãos com as devidas considerações de suas particularidades.
Trata-se este livro de uma leitura muito bem recomendada, visto que temos no meio cristão em geral muito pouco conhecimento dos elementos de nossa própria cultura. Os autores mostram excelente erudição, trazendo não apenas muitas informações, mas fornecendo-nos uma espécie de catálogo de resenhas das obras mais representativas que influenciaram e formaram nossa identidade. E as indicações de músicas, arquitetura, pinturas e esculturas merecem uma busca na Internet.