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Por Barbara Migliori


Barbara posa com túnica Cris Barros no quarto do bebê. (Foto: Guilherme Nabhan) — Foto: Vogue

Minha mãe sempre deixou claro que só queria ter tido filhas mulheres. Diz que não saberia o que fazer com um filho homem bagunceiro e que, se ele viesse a ter nascido, precisaria praticar violino para neutralizar o excesso de testosterona. Deu sorte e teve duas meninas de idades muito próximas que até os 10 anos se vestiam com roupas iguais, iam para a escola com penteados elaborados cada dia de um jeito diferente por ela mesma e que dormiam juntinhas em um quarto com papel de parede, cortinas, jogos de cama e estofados com padronagens florais em tons de rosa engenhosamente coordenadas.

Tudo lindo, não posso reclamar de nada e agradeço todos os dias pelo zelo e carinho que sempre recebi de meus pais em casa. Mas, talvez por ser a filha mais velha, ou por uma questão de personalidade mesmo (minha irmã é mais rebelde e contestadora), sempre me coloquei no papel de agradá-los a qualquer custo, de me enquadrar em padrões de comportamento que, lá na frente – e muitas milhas percorridas de terapia depois –, fui perceber que não eram exatamente os meus.

Quando engravidei, aos 34 anos, já bastante segura de que tinha o comando da minha própria vida nas mãos e de que o papel de filha poderia finalmente ser trocado pelo de mãe, decidi que não gostaria de saber o sexo do bebê até que ele (ou ela) nascesse. A ideia foi do meu marido, na verdade, ele mesmo fiel a valores e crenças profundos que descobri (no meu processo relativamente tardio de amadurecimento) serem essenciais à minha própria felicidade. Topei o desafio sem pensar duas vezes e, ao refletir sobre o porquê dessa decisão, concluí que tem muito a ver com a enxurrada de expectativas que os pais tendem a depositar em seres humanos que sequer vieram ao mundo ainda.

Detalhes do guarda-roupa genderless (Foto: Guilherme Nabhan) — Foto: Vogue

Já reparou que, ainda na maternidade, alguns meninos nascem craques na arte do futebol, e que menininhas que mal abriram os olhos já são vistas pelas mães como miniprincesas, vestidas de acordo, inclusive? É natural desejarmos o melhor para os nossos filhos, almejar que eles vivam tudo o que a vida eventualmente não nos proporcionou. Mas eu, pessoalmente, acredito que a melhor coisa que posso fazer é incentivá-lo(a) a sonhar seus próprios sonhos.

Com o intuito de proporcionar à minha criança uma tela em branco que ela possa pintar da maneira que lhe convier, decorei seu quarto de bege, optei por não explorar figurativismos (qual a certeza que tenho que minha filha vai gostar de laços ou que meu filho vai colecionar carrinhos?) e montei um guarda-roupa de gênero neutro até os 2 anos de idade. Gostando de roupas, acessórios e de todo tipo de detalhe como gosto, foi bastante difícil ignorar vestidinhos e micromeias de lã, aquelas de usar por baixo de tapa-fraldas de tricô ou veludo cotelê (uma obsessão), mas essa sou eu – deixo os meus desejos fashion para mim, não para o pobre bebê.

Não está sendo nada fácil segurar uma decisão que me parece tão simples por tanto tempo, ainda mais em um país como o nosso, onde os casais adoram viajar para fora para comprar todos os “plásticos” temáticos que conseguirem colocar no carrinho de supermercado pouco depois de armarem um chá-revelação para contar, na frente da família, amigos e espectadores do Stories do Instagram o que a confeiteira do bolo com recheio rosa ou azul já sabe há alguns dias.

Principalmente na Europa, para onde viajei grávida algumas vezes a trabalho, a reação das pessoas é de bem menos revolta quando digo não saber se terei um filho homem ou mulher. Pelo contrário, os franceses, em especial, agem como se não querer descobrir o sexo fosse a regra, não a exceção. Talvez isso tenha a ver com o fato de a França colecionar um dos menores índices de cesáreas do mundo: 21%, contra os mais de 50% contabilizados nos hospitais brasileiros. Seja lá qual for a relação entre uma coisa e outra, é fato que estamos comparando culturas com um abismo gigante no quesito ansiedade na hora de ter e educar os filhos – minha pátria que me perdoe, mas nessa hora eu fico com os franceses.

Detalhes do guarda-roupa genderless (Foto: Guilherme Nabhan) — Foto: Vogue

Além do não conformismo dos mais próximos – “chega, agora que está na hora de decidir a lembracinha da maternidade precisamos mesmo saber o sexo”, foi uma frase ótima que ouvi recentemente da minha mãe –, é preciso lutar bravamente contra os avanços da tecnologia e os riscos de receber a notícia por acaso. Avisar da sua decisão para o radiologista que realiza o ultrassom todos os meses e deve desligar o monitor quando examina os membros inferiores do bebê; relembrar o obstetra a cada consulta para ele não deixar escapar um “ele” ou “ela” na conversa; e passar por exames de sangue que mapeiam o código genético e leem cromossomos sexuais, sem acessar o site da clínica para não correr o risco de esbarrar com a informação do gênero, são obstáculos desafiadores, mas que cumpri bravamente ao longo desses nove meses de gestação – a previsão de nascimento do meu bebê é dia 8 de junho, mas, de novo, não vou estabelecer a data mais conveniente para mim ou que acuse uma condição astrológica mais favorável, deixando a natureza seguir o seu caminho.

É claro que, independentemente de saber o sexo ou não antes de dar à luz, minha grande provação ainda está por vir: será seguir não projetando qualquer tipo de desejo pessoal em cima dessa criança quando a tiver em meus braços, passando pela profunda transformação que a maternidade implica. No entanto, depois de ter sido capaz de suportar 40 semanas sem um indício sequer quanto ao sexo do meu (minha) filho(a), amando-o(a) e desejandoo(a) independente de seu gênero, esse processo só me faz pensar ainda mais que, no fundo, certas coisas que crescemos acreditando como sendo as mais urgentes e importantes são, na verdade, as que não fazem diferença alguma.

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