Dar a volta ao mundo é o sonho de muita gente. Mas esse desejo tem um preço. A depender da forma da viagem, o desembolso pode pesar mais do que a bagagem, como na opção de um cruzeiro da companhia Oceania Cruises, que vendeu em meia hora todos os assentos para cruzar o mundo durante 180 dias por módicos R$ 474.109 por pessoa. É claro que opções mais acessíveis existem. E é isso que Nataly Gabrielli Castro mostra. Ela deixou o Brasil em 20 de fevereiro e visitou 35 países com pouco mais de R$ 15 mil.
Para iniciar a viagem, ela priorizou locais "mais em conta" em relação aos preços das passagens e custos com vistos. Sempre que possível, a hospedagem na casa de amigos é usada. Ao chegar em um novo destino, Nataly dá preferência por atividades gratuitas para ter outras experiências, como experimentar uma comida diferente.
Para não estourar o orçamento, aplicativos de conversão de moedas são usados o tempo todo. Com a inflação global no radar, ela se adapta. Em lugares mais caros, o tempo de permanência pode ser menor.
No perfil Viaje Sem Limites, ela mostra como escolher por passeios mais acessíveis e que incentivem o turismo de base local realizado por famílias ou pequenos grupos de produtores rurais. Mas o perfil no instagram, que soma mais de 70 mil seguidores, tem um diferencial importante em relação a outros que trazem dicas de viagens: Nataly quer ser a primeira mulher brasileira e mulher negra a visitar todos os países soberanos reconhecidos pela ONU, superando até mesmo a jornalista Glória Maria, que visitou cerca de 160 nações.
“A indústria do turismo é formada por um padrão de pessoas brancas. Estou nesse projeto para mostrar que mais pessoas podem fazer parte disso. Minha viagem também está vinculada a um projeto social e educacional visando bolsas de estudo para jovens brasileiros estudarem no exterior.”, diz.
A urgência das pessoas negras se sentirem representadas em diferentes postos e atividades de liderança pode ser ilustrada a partir de dados. Conforme o IBGE, pretos e pardos são maioria entre trabalhadores, mas menos de 30% entre os chefes.
Em um outro levantamento, recém lançado da Opinion Box e Movimento Black Money, mostra que 64% das pessoas negras que responderam à pesquisa acham que nos últimos cinco anos estão sendo mais representadas, mas em setores específicos, como a música, filmes e séries (62%), e no jornalismo, esportes e entre influenciadores digitais (59%). Para realizar o "Relatório Pessoas Negras no Brasil", foram ouvidas 2.133 pessoas que se identificam como brancos, negros e pardos, e amarelos e que fazem parte do Painel de Consumidores do Opinion Box.
Nesse cenário, é fácil constatar que para por em prática o plano e conseguir 180 carimbos no passaporte, Nataly teria mais desafios do que um viajante branco. A jovem da Vila Carrão, Zona Leste de São Paulo enviou cerca de 50 mil e-mails para apresentar a proposta a possíveis patrocinadores. O retorno positivo só veio quatro vezes. "Meu primeiro patrocínio só chegou no país de número 50. Foram dois anos de trabalho duro em busca de apoio e parcerias. Mas eu sabia que se esperasse a oportunidade perfeita, eu não ia começar. Foi uma ousadia começar um projeto que, em geral, custa R$ 500 mil com R$ 15 mil, mas eu tinha muita certeza que as coisas iriam acontecer, mesmo com todas as dificuldades”, sustenta.
“Hoje a minha missão é inspirar outras pessoas, especialmente mulheres negras, de que o mundo também pode ser nosso”.
Conheça um pouco mais da história de Nataly, que já percorreu 57 países – quando conversou com o Valor Investe, ela estava no Camboja e se preparando para viajar para o Laos -.
Mapear oportunidades
Em 2013, com 17 anos, Nataly Gabrielly começou a buscar informações sobre intercâmbio durante as férias. Sem ter como arcar com a viagem, ela passou a frequentar feiras e eventos de instituições de ensino estrangeiras que oferecem aos visitantes vagas e oportunidades em seus programas. Nataly dedicou dois anos de contatos até conseguir uma bolsa por meio de um concurso para uma escola na Irlanda.
Priorizar gastos
Apesar de ganhar a bolsa, Nataly precisava juntar 3 mil euros para ser aprovada a embarcar em sua primeira viagem internacional. Trabalhando em telemarketing e ganhando pouco mais de R$ 600, a jovem passou a priorizar gastos. “Eu ganhava exatamente a mesma coisa que meus colegas, mas escolhia, na maior parte do tempo, levar marmita para o trabalho do que almoçar na rua. Também prioriza o metrô a gastar com uber”, diz.
Gerar renda extra
Disposição para buscar formas de renda extra também não faltou para a jovem. Venda de doces, oferta de serviços de beleza e até recreação infantil foram realizados por Nataly na busca pelos recursos. Entre maio e outubro de 2013, ela levantou R$ 4 mil entre ganhos do salário e renda extra.
Com essa organização, ela viajou pela primeira vez e nunca mais parou. Entre 2015 e 2019, fez viagens anuais de seis meses de duração para os Estados Unidos e Europa (em geral, Irlanda), com o objetivo de manter o inglês afiado. Ela morou em cinco países nos últimos sete anos. Nas temporadas no exterior, trabalhava no setor de comércio, serviços de turismo, a exemplo do que fazem muitos brasileiros que migram. Parte do que ganhava era reinvestido para garantir a próxima compra de passagens.
Com a experiência de morar nos Estados Unidos, Canadá, Irlanda e Portugal, ela sabe que comprar passagens aéreas para voar no inverno é mais barato. E, por isso, adota essa prática em sua nova jornada.
Conversar sobre dinheiro
Filha de uma neuro psicopedagoga, Nataly conta que o tema dinheiro sempre esteve presente na rotina. “Minha mãe sempre mostrou a importância de entender o que é prioridade para se gastar o que se tem, e da organização com as entradas e saídas de dinheiro. Mesmo com poucos recursos, ficava claro que se houvesse organização, eu poderia fazer muito”.
Versão empreendedora
A experiência de organizar as próprias viagens levou a jovem a atuar como consultora em roteiros de viagens e a explorar a produção de conteúdo para redes sociais enquanto está no exterior.
Em 2019, em um de seus retornos ao Brasil, decidiu que iria conhecer todos os países do mundo. Resolveu abrir um café com espaço de coworking para financiar a viagem. Durante um ano e meio, o local atraiu gente de diferentes países que se interessavam em ter consultorias. “O Instagram trouxe muita gente que entendeu o meu projeto de ser a primeira mulher negra a dar a volta ao mundo. Muitos consumiam com o objetivo de me ajudar nesse propósito”, comenta.
O café sobreviveu à pandemia, mas viu menos gente visita-lo quando Nataly partiu para o seu atual grande projeto. Por isso, ela decidiu encerrar o negócio.
Para acompanhar e apoiar a viagem de Nataly, siga ela no Instagram.