Se destruir o Hamas não é possível, o que Israel quer com a guerra em Gaza?

A declaração do porta-voz das IDF, de que o Hamas não pode ser destruído, não caiu bem no governo israelense

Por , Para o Valor


Palestinos analisam as consequências do ataque israelense a uma escola administrada pela ONU que matou dezenas de pessoas no campo de refugiados de Nusseirat, na Faixa de Gaza, no dia 6 de junho de 2024 Jehad Alshrafi/AP

A declaração de hoje do porta-voz das forças armadas israelenses, que questionou a viabilidade do objetivo de eliminar o Hamas, lança uma série de dúvidas sobre a campanha militar de Israel na Faixa de Gaza. E parece também sugerir um racha entre o governo e os militares sobre a guerra.

“Dizer que vamos fazer o Hamas desaparecer é jogar poeira nos olhos das pessoas”, afirmou o contra-almirante Daniel Hagari, porta-voz das Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês), sugerindo que esse objetivo seria enganoso. “O Hamas é uma ideia. Aqueles que acham que pode ser destruído estão errados”, completou.

Acontece que destruir o Hamas é justamente um dos principais objetivos declarados pelo governo do premiê israelense, Benjamin Netanyahu, para justificar a guerra. A ofensiva em Gaza é a resposta israelense ao ataque sem precedentes realizado pelo grupo palestino a Israel em 7 de outubro do ano passado, que matou 1.139 pessoas.

O Hamas governa a Faixa de Gaza desde 2006, depois que Israel se retirou desse território ocupado. Apesar de ter vencido as eleições naquele ano, o Hamas não permitiu a realização de novas votações e governa desde então pela força, com apoio de países como o Irã e o Qatar. Cerca de 2 milhões de palestinos vivem na Faixa de Gaza, que tem pouco mais de um quinto da área da cidade de São Paulo. O Hamas defende abertamente a destruição de Israel.

A declaração do porta-voz das IDF não caiu bem no governo israelense, que divulgou uma nota reiterando a meta de destruir o Hamas e dizendo que as IDF estão comprometidas com esse objetivo. Mas tarde, as forças armadas também divulgaram uma nota “esclarecendo” que Hagari se referiu apenas à impossibilidade de destruir o Hamas como uma ideologia, e não como milícia que controla Gaza. Mas o estrago já estava feito.

Hagari é um militar experiente e, como porta-voz, sabe que a escolha das palavras é vital num ambientado fragmentado e tenso como o da política israelense. Destruir o Hamas como ideologia não é uma questão em Israel. Logo, se Hagari se referiu a isso, foi no contexto mais comum, da destruição física.

A declaração levanta muitas questões sobre a campanha militar israelense. A impossibilidade de destruir fisicamente o Hamas é uma avaliação feita por muitos especialistas dentro e fora de Israel. Por vários motivos. Primeiro porque parte da cúpula do Hamas não está em Gaza. Além disso, o grupo certamente continuará recebendo apoio externo, pelo menos do Irã. E, mesmo tendo perdido milhares de membros em combate, o Hamas conseguirá certamente recrutar novos militantes numa população palestina empobrecida e amargurada com a destruição causada pelos ataques israelenses. Mas de 37 mil palestinos morreram na guerra até agora.

É improvável que essa avaliação exposta hoje por Hagari não tenha sido levada ao governo israelense. Se destruir o Hamas não é um objetivo militar viável, pelo menos não sem uma ocupação longa e difícil de Gaza por Israel, então o que governo Netanyahu quer com a guerra?

Uma resposta possível é que não sabe o que quer. Certamente quer se vingar do Hamas, mas vingança é uma motivação, não um objetivo. Lançar uma guerra sem um objetivo militar claro e viável e sem um plano para o pós-guerra é uma receita para o desastre. Foi o que ocorreu com os EUA na guerra do Afeganistão. Após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, o governo Bush enviou tropas ao Afeganistão para destruir o grupo fundamentalista islâmico Talibã. Os americanos derrubaram o regime afegão, ocuparam o país por mais de 20 anos, gastaram trilhões de dólares, perderam quase 2.500 soldados e, quando ainda estavam se retirando, o Talibã já havia voltado ao poder.

Neste mês, o líder oposicionista Benny Gantz deixou o gabinete de guerra, uma espécie de governo de união nacional formado logo após o ataque do Hamas. Gantz havia pedido a Netanyahu um plano para o pós-guerra em Gaza. Não recebeu e pediu o chapéu. À época, disse que Netanyahu estava fazendo “promessas vazias” aos israelenses.

Por outro lado, se há um objetivo definido, a indiscrição de Hagari aponta para duas possibilidades. Uma é de um racha entre o governo e os militares. Por questão política, o governo visa realmente destruir o Hamas, apesar da avaliação militar de que isso não é possível. Também não é um bom sinal quando políticos e militares discordam sobre os objetivos de uma guerra.

A outra possibilidade é que o governo tenha objetivos não declarados. Nesse caso, seria possivelmente algo que, se fosse divulgado, causaria condenação do país. Membros mais extremistas do governo israelense já propuseram alguns objetivos alternativos desse tipo. O ministro do Patrimônio Histórico, Amichai Eliyahu, afirmou em novembro que Israel deveria jogar uma bomba atômica em Gaza, o que indica um desejo dele de genocídio. Em dezembro, ele disse ainda que Israel deveria ocupar Gaza definitivamente, reestabelecendo colônias judaicas no território. A ministra da Equidade Social, May Golan, se disse orgulhosa da destruição causada pelas forças israelenses em Gaza, o que sugere que destruir a infraestrutura civil também pode ser um objetivo não declarado. Oficialmente, o governo sempre rejeitou essas declarações.

Não há nenhuma confirmação sobre essas sugestões fazerem parte de objetivos do governo Netanyahu. Mas o Tribunal Penal Internacional investiga acusação de genocídio contra o governo israelense e um relator especial da ONU já afirmou que Israel “trabalha para expulsar a população civil palestina de Gaza”.

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