Maria Cristina Fernandes: Privilégio é servir ao público

Primeiro livro da trilogia “O país dos privilégios” escancara as regalias do topo do funcionalismo público no Executivo, Legislativo e Judiciário e traça roteiro para mudanças que contribuiriam para o esforço fiscal


— Foto: Nelson Provazi

A edição de 5 de junho de 2023 do Diário Oficial da União trouxe o decreto que regulamenta o pagamento do bônus de eficiência na Receita Federal. O decreto encerrou uma novela iniciada oito anos antes, no fim do governo Dilma Rousseff, quando os auditores da Receita decidiram cruzar os braços por tempo indeterminado e a perder de vista.

Só voltaram ao trabalho sete meses depois, quando o governo, às vésperas do impeachment, resolveu ceder às suas reivindicações, entre elas o “bônus de eficiência”. Pelo acordo, parte das multas tributárias e aduaneiras como também uma fatia da receita das mercadorias apreendidas seria acrescida aos vencimentos dos auditores.

Inicialmente, o valor da prebenda era de R$ 3 mil. Ao longo dos sete anos seguintes, voltaram a parar várias vezes por mais. Depois de enfrentarem Congresso, Tribunal de Contas da União e Supremo, conseguiram dobrar o governo, que, no Orçamento de 2024, alocou R$ 2,4 bilhões para essa rubrica, o que triplica o valor do “bônus de eficiência” estabelecido em 2016. Com isso, os vencimentos dos auditores fiscais passaram para R$ 41,6 mil.

A prebenda da Receita atravessou a porteira aberta pelos “honorários de sucumbência” dos advogados públicos. Este penduricalho entrou na mira da Advocacia-Geral da União na tramitação do novo Código de Processo Civil. Sua tramitação durou três anos e, em março de 2015, a extensão da gratificação aos advogados públicos foi pendurada na conta da União. Em 2023, as quatro carreiras da AGU (advogados públicos, procuradores federais, procuradores da Fazenda Nacional e procuradores do Banco Central) acresceram R$ 12,1 mil a salários que vão de R$ 23 mil a R$ 29 mil.

A trajetória recente da remuneração dessas duas carreiras da elite do funcionalismo público está contada em “O país dos privilégios” (Cia. das Letras), de Bruno Carazza. O autor, professor da Fundação Dom Cabral, colunista do Valor e comentarista do “Jornal da Globo”, tem lugar de fala. É servidor, com passagem pelo Ministério da Fazenda e pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Desde 2019 goza de licença, privilégio, como ele mesmo diz, das carreiras públicas.

No primeiro volume da trilogia, Carazza discorre sobre os privilégios dos Três Poderes. Pretende dedicar os outros dois ao empresariado e o terceiro, aos ricos. Do volume de abertura sai um roteiro de reforma administrativa. Ou, no limite, para a empreitada de corte de despesas anunciada pelos ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Simone Tebet (Planejamento).

A ministra já chegou a dizer que a reforma administrativa ainda precisaria de longo amadurecimento como o fez a tributária, mas, premidos pela inquietação do mercado com as incertezas fiscais, recolocaram sobre a mesa propostas que há muito circulam.

Ao mencionar “supersalários”, é possível que Haddad mire no Judiciário. O apanhado de Carazza, porém, expõe a excepcional escalada dos vencimentos da AGU e da Receita Federal, as duas carreiras em que a Fazenda mais se apoia para recuperar arrecadação perdida por ação de lobbies no Executivo e no Judiciário nos últimos anos.

Carazza desconstrói o estímulo à produtividade como fundamento para a remuneração por desempenho. Os honorários são repartidos por toda a carreira sem qualquer avaliação quanto à contribuição de cada um para a recuperação de ativos da União.

Também desmonta o paralelo com a advocacia privada, inspiradora primária da remuneração por desempenho, ao argumentar que, nos escritórios, a remuneração é baixa e o grosso da remuneração vem das causas ganhas, enquanto na AGU e na Receita tanto os vencimentos quanto os prêmios de desempenho são elevados.

São esses bônus que garantem às duas carreiras uma remuneração total maior que defensores públicos e policiais federais que ocupam o topo da tabela de remuneração dos servidores federais do Executivo.

Todas as chamadas “carreiras típicas de Estado” garantiram reajustes salariais bem superiores à inflação nas últimas décadas. A valorização se iniciou no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, ampliou-se nos mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva, foi mais moderada sob Dilma Rousseff e Michel Temer e estancou com Jair Bolsonaro, que decretou uma estiagem de quatro anos para o servidor federal.

Ao longo do último governo, essas carreiras se distanciaram de outros cargos de nível superior com os quais tinham equivalência, como o de professores de universidades federais. Em 2016, um professor titular com doutorado ganhava 79% de um delegado da PF. Em maio de 2023, apenas 66,4%.

Carazza relaciona a escalada dos vencimentos das “carreiras típicas de Estado” à publicidade advinda de uma maior transparência nos dados. Relata o que aconteceu nos EUA, quando uma decisão da SEC (Securities and Exchange Comission), a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) americana, mandou publicar os rendimentos anuais dos presidentes de empresas.

O que era uma tentativa de controlar os abusos pelo constrangimento acabou se tornando um estímulo à competitividade salarial. Em 15 anos, desde a publicidade, o salário dos CEOs havia se multiplicado por três. Algo semelhante teria acontecido no Brasil, por ocasião da emenda constitucional de 1998, que estabeleceu o salário do STF como o maior salário do serviço público federal. O que era pra ser teto, virou meta.

Se a equipe econômica vai se deparar com constrangimentos para conter a escalada dos vencimentos do Executivo, o sarrafo vai subir no Judiciário, especialmente pela dobradinha com o STF que tem permitido ao governo driblar bloqueios legislativos. Se, entre as carreiras do Executivo, a meta é o salário do ministro do STF, no Judiciário, a regra é sua ultrapassagem.

Carazza fia-se no painel de remunerações do CNJ para constatar que 93% dos juízes, desembargadores e ministros dos tribunais superiores do país tiveram um rendimento mensal superior àqueles dos ministros do STF em 2023, contabilizados todos os descontos previstos em lei. Se, em 2023, o rendimento líquido na Suprema Corte foi de R$ 31,4 mil, aquele de 1.002 magistrados brasileiros foi superior a R$ 83 mil.

Isso se deve a um conjunto de vantagens que nada têm a ver com a necessária proteção do exercício independente de suas funções como o fazem a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade. Trata-se de uma miríade de auxílios (moradia, paletó, creche, educação, livro, transporte, alimentação, saúde, funeral, reclusão, natalidade), além de gratificação por acúmulo de função e alocação em comarcas de difícil acesso, abono de permanência e férias de dois meses. Fosse, de fato, indispensável ao exercício de suas funções, o direito ao gozo do dobro das férias previstas na CLT não seria convertido, pela maioria, em dinheiro.

Decisões no sentido de extinguir um ou outro penduricalho, como foi o caso do auxílio-moradia, acabam dribladas pelo aumento salarial compensatório ou, ainda, pelo restabelecimento do quinquênio, o acrescimento de 5% dos vencimentos a cada cinco anos, a despeito de qualquer avaliação de mérito ou produtividade. A prebenda só não foi adiante porque a urgência fiscal trazida pela tragédia das chuvas no Rio Grande do Sul se impôs.

Carazza traz o cômputo fresquinho dos disparates. Dados do Tesouro e do IBGE de janeiro de 2024 dão conta de despesas anuais dos tribunais de justiça da ordem de 1,6% do PIB, superior tanto à média dos países emergentes (0,5%) quanto daqueles de renda elevada (0,3%). Um juiz em início de carreira no Brasil ganha o equivalente a 11 vezes o PIB per capita local, enquanto o italiano recebe o dobro.

Se os privilégios da magistratura chocam, o que dizer daqueles do Ministério Público, corporação que tem a prerrogativa de representar judicialmente a sociedade? O autor reproduz o caminho no Judiciário e constata que 91,5% dos integrantes do MP receberam acima do teto do funcionalismo em 2023. A anomalia internacional também pede bis. As despesas com a corporação (0,3% do PIB) superam as da Itália (0,09%), Portugal (0,06%), Alemanha e Espanha (0,02%).

Ao adentrar os privilégios do Legislativo, mostra que as duas tentativas de se conter a avalanche de recursos que corrompem a atividade parlamentar - o financiamento privado de campanha e as emendas do chamado “orçamento secreto” dos parlamentares - foram devidamente dribladas pelo inchaço de outras rubricas. Os fundos eleitoral e partidário à disposição dos políticos em 2022 somaram R$ 6 bilhões, valor muito próximo daquele que foi arrecadado na disputa de 2014, última em que o financiamento privado foi franqueado: R$ 6,9 bilhões.

A pressão crescente sobre a fatia militar dos privilégios nacionais ganhou, na análise das contas do governo de 2013 pelo TCU na primeira semana de junho, uma reprimenda atualizada. Segundo o voto do ministro Walton Alencar, enquanto no Regime Geral da Previdência Social as contribuições dos trabalhadores da iniciativa privada e de seus empregadores cobrem 65% das despesas, aquelas dos militares pouco ultrapassam 15% dos custos de inativos e pensionistas para o erário.

Excluídos da última reforma da Previdência, os militares cavam as trincheiras para se abrigar da próxima. O comandante do Exército, general Tomás Paiva, chegou mesmo a defender uma parceria estratégica com a China e dar seu aval para a comissão de mortos e desaparecidos da ditadura.

Carazza recomenda cautela com a visão generalizada de que o setor público brasileiro esteja inchado, ineficiente e excessivamente remunerado. Há vastas porções do funcionalismo que não se encaixam nesta definição, dos fiscais do Ibama aos profissionais do SUS, passando pelos professores universitários.

A revisão dos benefícios, diz, não pode driblar a avaliação de desempenho como critério de desligamento. Não apenas para reduzir o fosso que os separa dos trabalhadores da iniciativa privada, como para prestar um serviço melhor para a população, finalidade primeira de sua existência.

Maria Cristina Fernandes, jornalista do Valor, escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail: mcristina.fernandes@valor.com.br

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