Oi, ingleses, daqui portugueses: não sabíamos que era permitido substituir o Kane ou o Ronaldo. Podiam ter dito - TVI

Oi, ingleses, daqui portugueses: não sabíamos que era permitido substituir o Kane ou o Ronaldo. Podiam ter dito

Harry Kane

PAÍSES BAIXOS 1-2 INGLATERRA || Southgate tirou Kane e Foden aos 81 minutos e os dois jogadores que entraram construíram o golo da vitória nove minutos depois. Afinal parece que há vantagens em substituir os craques - mas não há grandes vantagens estéticas em ver esta Inglaterra (a da segunda parte, a da primeira já deixa saudades)

Imaginar coisas: o melhor do jogo entre Países Baixos e Inglaterra

Guião da série ficcional da Netflix sobre o Euro 2024, episódio das meias-finais: Southgate entra no balneário inglês, é intervalo do jogo com os Países Baixos, os jogadores felicitam-se pela luminosa primeira parte que fizeram, aquele balneário cheira à alegria deles, portanto cheira bem cheira a futebol, mas vai passar a cheirar à indignação do treinador, isso cheira mal cheira ao futebol de Southgate - o mister decide silenciar o balneário com um monólogo histérico, "que atrevimento é este, gente? que é isto?, fuck minha nossa, rematámos mais nesta primeira parte que no jogo inteiro contra a Sérvia", esta parte estatística não é ficcionada, "exijo que parem já com este futebol lindo da primeira parte, isso de sermos uma equipa superofensiva e intensa no último terço é contra os princípios fundamentais do meu futebol insosso, aquela maneira contente e levezinha como vocês trocaram a bola vai danificar a nossa imagem infeliz, a confiança e o acerto com que remataram de longe ainda nos vai dar a ideia de que somos capazes de ganhar com mais do que um golo de diferença, nesta seleção não aceitamos isto, se vocês querem fazer parte de eventos futebolísticos atraentes dirijam-se ao consulado espanhol porque neste meu consulado à frente de Inglaterra é para fazer as coisas segundo o meu modo medonho", e o realizador da série corta o plano do balneário para substituí-lo por imagens da segunda parte de Inglaterra. Que foi mesquinha.

É preciso alguma ficção/imaginação para entender o que se passou entre os primeiros e os segundos 45 minutos porque o futebol inglês da primeira parte pareceu mesmo uma ficção temporária no modelo de jogo sem imaginação de Southgate: a Inglaterra até começou a perder, Xavi Simons recuperou uma bola no terço ofensivo neerlandês e rematou a 116 km/h para um dos golos mais violentos deste Euro, mas os ingleses retomaram rapidamente a iniciativa, era um futebol psicologicamente tão forte como objetivamente dominante, intenso, potente, rápido nas transições e pragmático a encurtar os caminhos para a baliza - ora com remates de meia distância, ora na distância curta, que é a distância que há quando se está frequentemente dentro da área adversária: o lance que dá o penálti de Kane é num remate que acontece quase na cara de Verbruggen, minutos depois Foden entra pela área adentro com fintas e fintinhas e a bola só não pára dentro da baliza porque foi cortada quando estava literalmente a meio da linha de golo, entretanto Foden tentou imitar Yamal com um arco longo e geometricamente sofisticado que nesta meia-final foi ao poste enquanto na outra foi aquele 1-1 extrovertido no Espanha-França, enfim, Inglaterra estava a entreter enquanto se entretinha com os Países Baixos - que após o golo de Xavi Simons estiveram 20 minutos sem rematar nem atacar e sobrou-lhes uma bola parada que Dumfries usou para atirar à barra. Ao intervalo a Inglaterra tinha sete remates, contra a Sérvia fez cinco no jogo inteiro; tinha 27 ataques nesta meia-final, contra a Sérvia fez 29 nos 90 minutos; a posse de bola inglesa era de 59% contra os Países Baixos e, mais do que qualquer estatística, a Inglaterra provou ter futebol para o que quiser mas a seguir provou que tem um treinador que se aflige muito com futebol bom.

No único jogo de todo o torneio em que a Inglaterra esmagou o adversário - e os Países Baixos foram pisados mesmo, ao intervalo a sola inglesa estava cheia de detritos de futebol neerlandês impotente -, no único jogo em que a Inglaterra estava a justificar o estatuto de semifinalista, nesse mesmo jogo a equipa chega ao intervalo com um 1-1. E 1-1 não é estar a ganhar, ainda bem que isso fica desde já esclarecido entre mim e si, cara pessoa que me está a ler. E quando se joga bem mas não se está a ganhar, aí há que tomar opções - e quando se é Southgate, ou seja, quando se é um cínico (e no futebol isso é tão virtuoso como defeituoso, o futebol é um lugar muito complicado e contraditório), quando se é este Southgate então o bom futebol é um estorvo porque as vitórias não têm de ser bonitas, têm é de ser vitórias. E uma equipa inglesa deitada sobre a defesa neerlandesa, como aconteceu na primeira parte, era uma equipa com pés destapados na sua própria defesa, portanto Inglaterra era uma equipa exposta a ter uma derrota bonita em vez de uma just-vitória - e foi essa a vitória que Inglaterra teve, vitória que só veio naquela segunda parte sem qualquer remate inglês entre os 45 e os 80 minutos.

Mas Southgate fez por ganhar à maneira dele, que é uma maneira esteticamente bizarra mas corajosa enquanto líder - atenção que Southgate não merece jogar contra a Espanha, não mereceu a meia-final, não merece treinar uma das duas supostamente melhores equipas da Europa (que é a condição de um finalista deste torneio), a Inglaterra não joga para ter chegado tão longe e ter um estatuto deste tamanho, mas o futebol não é o que se merece, é o que se obtém - e Southgate obteve a segunda final consecutiva num Europeu porque tem uma coragem bastante singular: aos 81 minutos e com 1-1 tirou Foden e Kane - é mais ou menos como tirar Bernardo e Ronaldo aos 81' com 0-0 diante da França - e pôs Cole Palmer e Ollie Watkins - é como pôr Pedro Neto e Gonçalo Ramos ou por aí. Southgate ouviu assobios aos 81 minutos mas aos 90' Palmer assistiu Watkins, 1-2 para Inglaterra.

Conclusão: há aquela coragem de ter um modelo de jogo que respeita o talento da equipa; há aquela coragem de decidir sem contemplações quem se põe a jogar e quem se tira do jogo - feito o balanço, Southgate tem coragem a 50% e levou com 100% da recompensa desta meia-final. 

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Não há um momento do jogo porque são dois os momentos do jogo

. o momento 1 é este e vale menos para o acesso à final que o momento 2 - mas vale muito para o espetáculo:


o momento 2 é este e vale uma final:

A fealdade do torneio: o pior do jogo

A Inglaterra rematou duas vezes na segunda parte e os Países Baixos três - este Euro é definitivamente feio, também só assim é que esta Inglaterra chegava à final.

O modelo do Euro: a má surpresa do jogo

A primeira parte dos Países Baixos é fraca - o mérito inglês é evidente nisso mas há aqui antecedentes: os neerlandeses já tinham sido assim contra França - tiveram 42% de posse, sete remates para 16 franceses, 26 ataques para 57 de França, etc; os Países Baixos só foram fortes contra equipas acessíveis (contra a Roménia, por exemplo: fizeram 63 ataques para 34 romenos, 24 remates contra cinco romenos) e nem contra a Turquia foram impositivamente melhores (os turcos tiveram mais cantos, mais remates). Estes Países Baixos chegaram aqui sendo terceiros do seu grupo e depois de terem jogado a eliminar contra Roménia e Turquia - e no outro lado há uma Espanha a jogar contra Alemanha e França. O modelo a eliminar do Euro não está bem feito.

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