Torquatos, direções e sentidos

Era um pacato cidadão
Sem documento
Não tinha nome profissão
Não teve tempo

Mas certo dia deu-se um caso
E ele embarcou num disco
E foi levado pra bem longe
Do asterisco em que vivemos

Ele partiu e não voltou
E não voltou porque não quis
Quero dizer ficou por lá
Já que por lá se é mais feliz

E um espaçograma ele enviou
Pra quem quisesse compreender
Mas ninguém nunca decifrou
O que ele nos mandou dizer

Terramarear atenção
O futuro é hoje
e cabe na mão
Viet vista visão
Para azar de quem não sabe
e não crê
Que se pode sempre a sorte escolher
E enterrar qualquer estrela no chão

Viet vista visão
Terramarear atenção
Fica a morte por medida
Fica a vida por prisão

Daqui pra lá, de lá pra cá é um poema de Torquato Neto. Está no livro Torquatália, livro organizado pelo escritor e jornalista Paulo Roberto Pires em dois volumes – Do lado de dentro e Geléia Geral. E foi musicado duas vezes, de maneiras e com olhares muito diferentes lançados sobre si: por Sergio Brito, dos Titãs, e gravado pela banda em 2001; e por Fagner e Zeca Baleiro, no álbum conjunto de 2003.

Torquato foi uma chama que ardeu rapidamente no cenário da Tropicália. Membro ativo do movimento e com uma produção intensa e difusa, ele não deixou nada publicado em vida além de colaborações esparsas e letras de canções gravadas por Caetano, Gil, Jards Macalé e outros. Das diversas publicações póstumas, a única mais ou menos projetada por ele é o livro Os últimos dias de Paupéria – todas as demais são coletâneas organizadas por estudiosos de sua obra. Em alguns casos, há divergências entre versões dos mesmos poemas e textos – a divisão de estrofes que usei aqui é a de Torquato Neto – Melhores Poemas, seleção do jornalista e crítico literário Claudio Portela

Torquato suicidou-se aos 28 anos, em 1972. Caetano dedicou-lhe, anos depois, a canção Cajuína, em que se refere à sina do menino infeliz e indireta e delicadamente a sua morte: apenas a matéria vida era tão fina. Hoje é difícil resistir à tentação do arquiteto de obra pronta, do crítico que comete o clichê de procurar na obra do artista os prenúncios de sua morte. Mas Daqui pra lá, de lá pra cá traz indisfarçavelmente os indícios da angústia, da inquietude, do inconformismo, da inadaptação de Torquato. A metáfora do pacato cidadão sem documento, sem profissão, que é abduzido por alienígenas e vai-se sem olhar para trás poderia ter sua interpretação acusada de reducionismos psicanalíticos, mas os versos finais Fica a morte por medida / Fica a vida por prisão deixam pouca margem para dúvida: ainda que não se tratasse de uma morte anunciada, Torquato flertou sempre com sua possibilidade, não como uma contingência, mas como um alternativa.

E se Torquato escreveu letras para diversas canções, como cancionistas tão diversos como Titãs e Fagner/Zeca Baleiro tratarão seu poema? As soluções encontradas por cada um deles são mesmo bem diferentes e conduzem, a partir das decisões técnicas tomadas cada um, a escrita de Torquato a lugares quase opostos.

Raimundo Fagner e Zeca Baleiro – 2003, disco do mesmo nome, ambos musicaram o poema.

Comecemos pela mais tardia. A versão de Fagner e Zeca Baleiro é, das duas, a com um formato menos evidente de canção tradicional. Sua escolha é adaptar a melodia à história contada quase verso a verso sob uma harmonia que se repete, num crescendo gradual desembocando num refrão duplo que abarca toda a mensagem enviada pelo protagonista – o espaçograma -, quando, enfim, ela ganha empuxo. Nesta versão, a história da abdução, que toma a maior parte do poema, soa quase como uma introdução alongada para a canção em si. Não obstante, a opção por uma balada realça uma certa melancolia já presente na letra.

Fagner e Zeca também são mais fiéis ao formato do poema, ao seguir suas estrofes com poucas modificações. Uma digna de nota é a mudança do verso não teve tempo por não tinha tempo, o que muda muito seu significado, de alguém que não chegou a realizar o que pretendia para alguém, talvez, ocupado demais para viver. A troca, mesmo que não diminua o alcance do verso. muda sua acepção. Além disso, a versão não é isenta de dificuldades técnicas. A melodia escolhida para o verso terra mar e ar atenção deixa-se levar pela emenda das palavras escritas feita por Torquato, mas com isso torna o verso ouvido em terra mar e atenção, engolindo a palavra ar e reduzindo seu sentido. Já a inclusão da palavra palma no verso o futuro é hoje e cabe na (palma da) mão tem pouca consequência além de ajustá-lo à melodia escolhida.

Mas há méritos também, claro. A repetição do verso algo enigmático viet vista visão de um acorde maior para menor evidencia seu paralelismo com o terra mar e ar atenção que inicia ambos os refrões, como chamados para uma ampliação dos sentidos; aliás, a própria variação entre tom menor e maior da canção permite mudanças de clima como o fim do verso enterrar qualquer estrela no chão, que ganha amplitude sobreposto à harmonia. Por fim, o trunfo do refrão duplo com versos internos que vão em direções contrárias, um otimista (o futuro é hoje e cabe na palma da mão) e outro pessimista (fica a morte por medida, fica a vida por prisão) também amplia a gama de significações do poema, recusando-se a apontar numa direção definida apenas e fazendo jus a seu título.

Titãs – musicado por Sergio Brito – 2001 – A melhor banda de todos os tempos da última semana

Em contraste com a versão algo sombria de Zeca e Fagner, a dos Titãs é solar. Seu formato também é muito mais direto, a começar pela apresentação de um refrão curto e impactante, logo na abertura. Por sinal que vale a pena fazer uma comparação entre as formas das duas gravações:

ZB & F: A1 B A2 C1 C2 A3 R R1’ (D E R2 R2’)

Titãs: R A1 A1 B1 A2 A2 B2 R C1 C2 R

As diferenças são flagrantes. Ancorados na harmonia circular (como Am Am/G Am/F# Am/F), Fagner e Zeca adotam diversas variações melódicas, enquanto os Titãs (na verdade Sergio Brito, autor da melodia) optam por estabelecer um contraste firme entre estrofes e refrão, alternando melodias mais planas e de maior amplitude entre as estrofes, num formato bem mais ajustado ao da canção tradicional. A decisão de pinçar um verso específico para torná-lo o refrão não prejudica a história a ser contada, mas estabelece uma nova hierarquia entre os versos: ao deslocar este para a abertura da canção, ele passa a dar o tom de tudo o que será dito depois. E, por sua característica, ele dá à visão dos Titãs um otimismo que contrasta com a visão bem mais sóbria de Zeca e Fagner.

Porém, além desta, Sergio Britto toma poucas outras liberdades com a letra. A principal é uma leve reorganização das estrofes, suprimindo a primeira aparição do verso terra mar e ar atenção, mas mantendo a divisão em dois que na versão de Zeca e Fagner originou o refrão duplo. Porém, e não só pela escolha do refrão mas também pela levada muito mais vigorosa do arranjo, com direito a batucada na introdução, os versos de Torquato, mesmo os que poderiam induzir a associações ou prenúncios de seu suicídio, ganham uma espécie de visão mais benévola sobre si.

De resto, os Titãs têm experiência tanto no lidar com mensagens indigestas – é bom lembrar que Flores narra uma tentativa de suicídio – quanto com discursos contraditórios – e aqui podemos lembrar Diversão, cujo refrão contradiz propositadamente toda  letra anterior, e Go back, esta outro poema de Torquato musicado por Sergio Brito, que em seus versos recitados finais diz: Adeus, amor, adeus / E vem. A abertura de significação não torna o texto impreciso, antes abre-lhe leituras. Mas no caso da gravação dos Titãs para Daqui pra lá, sua abordagem é francamente positiva – o que de certa forma se reflete até mesmo no título, que escolhe retirar metade do enunciado original, eliminando uma das duas vias de linguagem sugeridas. O que por sua vez talvez seja mais apropriado num sentido imediato, já que nosso espaçonauta se vai para não voltar…

Ao final, embora tecnicamente a versão de Sergio Brito possa ser considerada melhor acabada nos detalhes, não se trata exatamente de definir mais ou menos qualidade artística aqui. Ao contrário, é mesmo possível considerar estas duas interpretações – ou melhor ainda, interpenetrações da obra de Torquato como complementares ao abrirem juntas um leque de possibilidades de escuta. Torquato foi e sentiu-se um inadequado neste mundo por toda a vida, chegou a ser um dos internos no Instituto Municipal Nise da Silveira, no Engenho de Dentro, – e, compulsivo na escrita e na produção artística, fez um diário da estada. Sua obra reflete esta inadequação como uma crítica justa e feroz a este mundo, desafinando o coro dos contentes, como ele diz em Let’s play that, musicada por Jards Macalé. Torquato não coube na sua Teresina natal, não coube em Salvador com os tropicalistas, não coube no Rio de Janeiro, onde decidiu em certo ponto deixar este mundo para traz. Pois a obra de Torquato hoje, em seus diversos formatos, ganha mundo, e vão sendo continuamente desdobrados e decifrados os espaçogramas que ele nos deixou ao voltar para casa.

Humor, pastiche e canção

O artigo de maior audiência deste blog hoje é um que fala sobre trocadilhos e expressões de duplo sentido em canções. Por aí se vê que um dos meios mais fáceis e diretos para se chegar ao ouvido do público é o humor. Isto é verdade desde as cantigas de escárnio e maldizer, ainda na Idade Média. Embora seus objetivos fossem criticar pessoas, a técnica era sempre ridicularizá-la, fazer piadas sobre ela.

Mas como é que uma canção sobrevive ao humor? Pois a piada na canção é também uma armadilha. Assim como não costuma haver muita graça em ouvir a mesma piada várias vezes, se uma canção não tiver algo a oferecer além da graça da primeira audição, dificilmente sobreviverá. E diga-se de passagem que às vezes ela não é mesmo feita para sobreviver.

Florentina – Tiririca

Um piadista sempre poderá dizer que a graça desta piada continuou na eleição de seu autor como deputado… Mas é fato que a canção em si, em sua simplicidade elementar, tende ao esquecimento, o que não lhe tira o valor, pois cumpriu aquilo a que se propôs. Mas e quando ela se propõe a algo mais? Ou melhor, como saber se ela se propõe a algo mais?

Jumento Celestino – Mamonas Assassinas

Lá vem o Alemão – Mamonas Assassinas

Os Mamonas foram um fenômeno de popularidade impressionante. Sua história é conhecida: começaram como um grupo de rock tradicional, influenciado por Legião Urbana, com letras sérias e até atormentadas, sem conseguir nenhuma popularidade. Então, viraram a mesa, assumiram um repertório totalmente humorístico, e somando-se isso a uma série de circunstâncias como caírem nas graças (com trocadilho) do filho de um diretor de gravadora que também tinha um grupo de rock humorístico (este sem graça nenhuma), gravaram seu álbum etc.

Reouvindo-se os Mamonas, porém, percebe-se que o humor que eles faziam não era apenas de letras engraçadas sobre uma base musical, mas envolviam toda a composição. A melhor caracterização para as canções dos Mamonas é a de pastiche – imitação, em geral caricata, de um estilo, seja específico de um autor ou mais geral. O álbum dos Mamonas é exatamente isto: havia uma canção em que se imitava Belchior, uma que, toda vez que eu ouvia, pensava que era dos Titãs, um vira de araque… Em todos os casos, as características de gênero eram exacerbadas – nos exemplos acima, dois estilos em voga à época: um forrocore, espécie de sub-música dos Raimundos, e um chamado pagode paulista como os do Negritude Jr., que de repente se torna rock, voltando ao estilo em que os Mamonas se sentiam mais à vontade, e ao mesmo tempo aumentando o contraste com a imitação barata de um gênero que já era barato. Este raciocínio do pastiche também guiou os caras do Casseta e Planeta ao gravarem seu primeiro álbum, Preto com um buraco no meio.

Mama austria – Casseta e Planeta

Aqui acontece um contraste entre o ritmo funkeado tipicamente “negro” e o discurso politicamente muito incorreto, invertendo todas as premissas de afirmação do movimento negro e correndo mesmo o risco de ser confundido com algum tipo de supremacismo ariano – e no entanto, aproveitando para ridicularizar também este discurso supremacista, ou seja, atirando para os dois lados sem poupar ninguém, como um humorista deve fazer.

Porém, a mesma arma do pastiche que permite à canção engraçada uma profundidade maior no seu humor pode vir a limitá-la. A canção pastiche, em geral, não tem como ir longe na exploração estética, pois tem de ser um estilo imediatamente reconhecível, o que a faz cair nos clichês de gênero, sua narrativa tende a se tornar rasa, e aí voltamos ao problema da piada que perde a graça nas audições seguintes.

Outra possibilidade é o autor já ser consagrado a um estilo, e aí não há a preocupação de reconhecimento, o que permite até uma certa liberdade – mas isso se o autor quiser, e geralmente ele não faz questão, justamente por ser cultor do gênero. Mas isso dá ao menos uma fluência bem maior, que se distancia do pastiche então.

Praia de Ramos – Dicró

No caso do Dicró, a própria figura dele era uma espécie de pastiche de gênero, do sambista malandro consagrado por Moreira e Bezerra da Silva – e não por acaso Dicró foi o responsável pela reunião dos três em outro pastiche, o álbum os Três Sambistas, brincadeira com a reunião dos Três Tenores de ópera Pavarotti, Domingo e Carreras.

Mas então não é possível ultrapassar a superficialidade da piada na canção? Ora, é claro que é. Se o humor da letra vai além da simples piada e contém uma narrativa que se sustente a ponto de ser interessante por si, a parte musical também ganha a chance de mostrar fôlego.

Parque da Juraci – Zeca Baleiro

Nem todo o trabalho de Zeca Baleiro se volta para o humor, mas ele não tem o menos pudor em recorrer ao pastiche – como aliás escancara numa canção com este título, em cujo primeiro verso afirma: eu gosto mesmo é de fazer pastiche. Em Parque da Juraci, o ritmo é tecnoxaxado, por si só uma brincadeira com a tendência de eletronificação dos ritmos regionais, reforçado pela participação de Genival Lacerda, cujo trabalho, a exemplo de Dicró, sempre primou pelo humor. E ele aproveita para tirar onda com Steven Spielberg, nos versos que confesso que não canso de escutar e rir: Juraci, que parque, Juraci, que parque é esse que eu nunca vi?

Mamãe no Face – Zeca Baleiro

Mamãe no Face investe na revalorização atual da música brega entre muitos músicos valorizados pela crítica. Sua letra investe no aparente contraste entre esta configuração musical popular e a afirmação reiterada de sucesso entre todos os formadores de opinião – Caetano Veloso, Nelson Motta, Hermano Vianna, revistas Piauí e Rolling Stone, jornal Folha de São Paulo… O brega é hype, demonstra Baleiro, e sua crítica se volta menos para o fato de o brega ser hype, e sim para só agora seu valor ter sido reconhecido, ou os motivos deste reconhecimento tardio – serão associados a um real entendimento, ou são só moda de antenados?

Mamãe no Face é decididamente uma canção engraçada em suas referências intelectualóides. Mas também se presta a leituras bem mais aprofundadas, vide o artigo que Leonardo Davino escreve a partir dela em seu blog. E é a prova de que o humor pode ser um instrumento precioso no jogo de significados de uma canção, desde que o humor não seja o objetivo último da canção. Para Zeca, o humor é tijolo, é argamassa na construção, dando-lhe profundidade, acrescentando possibilidades de leitura em vez de tirá-las.

Davino afirma em seu artigo: Ao artista cabe sair (ou não) da sombra dos antecessores e desestabilizar a verdade, as certezas. Zeca paira o tempo todo entre a graça de primeira escuta (em forma de piada) e as posteriores (em forma de crítica, provocação, discurso estético etc.). Permanecendo nesta zona nebulosa, indefinida, ele abre o leque de interpretações e impede que a canção caia na vala comum da piada – mas também impede que ela perca a graça, desarmando de antemão polemicistas baratos de plantão. Zeca faz (e mostra como é perfeitamente viável fazer) humor e música sem abandonar nenhum dos dois pelo caminho, ou como termina seu artigo o Davino, e eu assino embaixo:

Homenagem ou puro sarcasmo, pouco importa. Mamãe no face mexe com os afetos (agrados e desagrados) da crítica cancional. E isso é muito bom. Melhor para a canção

Repente contemporâneo e outros desafios

O repente nordestino e de seu pai na tradição, o cordel, inspiraram obras não apenas musicais, como O Auto da Compadecida e Morte e Vida Severina. Mas quando se trata de passar o repente para o formato da canção popular, é interessante ver como as características de ambas se amalgamam nas necessárias adaptações.

O repente nordestino se caracteriza pelo improviso, muitas vezes facilitado pelo uso de um mote, ou seja, uma frase que é repetida no fim do verso e que serve de guia na construção. Geralmente o improviso se dá sobre um tema dado com antecedência e que é desenvolvido de forma mais ou menos imprevista, pela óbvia dificuldade de fazer isso improvisando com rima, dificuldade minorada quando é contada uma história com começo, meio e fim conhecidos. Por outro lado, um repente é necessariamente longo, e a capacidade de estendê-lo (mantendo-o interessante, claro) é uma das medidas do talento do cantador.

Com a canção a história é outra. Sua estrutura é muito mais organizada, mesmo sem a presença de um refrão – que até pode existir no repente, como uma folga para o improvisador. Uma canção precisa ser concisa, e portanto não há nela espaço para o lento e elíptico desenvolvimento do cordel. Para compensar, o fato de ser previamente composta dá a ela a vantagem de poder se aprofundar muito mais no que diz, mesmo utilizando a sintaxe poética tradicional.

Um repente pode falar de qualquer coisa, e é muito comum que se fale de assuntos do noticiário. Da última vez que fui à Feira de São Cristóvão, há poucas semanas, encontrei histórias de cordel à venda narrando a história do goleiro Bruno, do Flamengo, e de Elisa Samúdio. E há também os repentes satíricos, em que algo ou alguém é ridicularizado, e descendente talvez das cantigas de escárnio medievais. Bienal, de Zeca Baleiro, escolhe este caminho, e consegue uma junção impressionante: adapta o formato folclórico em música popular para falar de arte erudita – só que, no caso, artes plásticas. Na verdade, sua crítica não se volta contra a arte, mas contra certos artistas mais preocupados com concepção que com composição, e que se descolam da possibilidade de comunicação em prol de experimentalismos. Mas faz isso se colocando como o próprio artista/repentista, e sua crítica ao mesmo tempo devastadora e hilariante e vem bem a propósito no blog, já que a Bienal de São Paulo está acontecendo (mas vem sendo bastante elogiada, ao contrário da do ano passado).

Bienal, de Zeca Baleiro, com ele e Zé Ramalho

Desmaterializando a obra de arte do fim do milênio
Faço um quadro com moléculas de hidrogênio
Fios de pentelho de um velho armênio
Cuspe de mosca, pão dormido, asa de barata torta

Meu conceito parece, à primeira vista,
Um barrococó figurativo neo-expressionista
Com pitadas de arte nouveau pós-surrealista
calcado da revalorização da natureza morta

Minha mãe certa vez disse-me um dia,
Vendo minha obra exposta na galeria,
“Meu filho, isso é mais estranho que o cu da jia
E muito mais feio que um hipopótamo insone”

Pra entender um trabalho tão moderno
É preciso ler o segundo caderno,
Calcular o produto bruto interno,
Multiplicar pelo valor das contas de água, luz e telefone,
Rodopiando na fúria do ciclone,
Reinvento o céu e o inferno

Minha mãe não entendeu o subtexto
Da arte desmaterializada no presente contexto
Reciclando o lixo lá do cesto
Chego a um resultado estético bacana

Com a graça de Deus e Basquiat
Nova York, me espere que eu vou já
Picharei com dendê de vatapá
Uma psicodélica baiana

Misturarei anáguas de viúva
Com tampinhas de pepsi e fanta uva
Um penico com água da última chuva,
Ampolas de injeção de penicilina

Desmaterializando a matéria
Com a arte pulsando na artéria
Boto fogo no gelo da Sibéria
Faço até cair neve em Teresina
Com o clarão do raio da silibrina
Desintegro o poder da bactéria

Zeca Baleiro aproveita bastante das características do repente, inclusive o uso de um vocabulário empolado que normalmente surpreende nos cantadores populares, e que aqui é usado para realçar a inteligibilidade do trabalho do artista plástico/personagem. Mas outra possibilidade da transcrição repente-canção é seguida por Zé Ramalho em seu próprio trabalho, ao cruzá-lo com a poética de compositores do rock como Bob Dylan, ao mesmo tempo se apropriando do formato da peleja, o enfrentamento entre dois personagens que é tema recorrente do cordel, e da temática religiosa e apocalíptica disseminada no Nordeste, conseguindo da síntese destes elementos uma poética coalhada de simbolismos e cheia de desdobramentos inclusive políticos – aliás, uma leitura desta letra tendo em mente as eleições próximas é algo que recomendo fortemente. Não para tentar identificar representantes de Deus e do Diabo entre os candidatos, já que estes são igualados no fim da segunda estrofe, mas para pensar nos “vaqueiros que tangem a humanidade” – tema de Admirável Gado Novo, do mesmo álbum – e no “tom da conversa” que ouvimos nos últimos tempos. E quem tiver ouvidos de ouvir, que ouça.

A Peleja do Diabo com o Dono do Céu – Zé Ramalho

Com tanto dinheiro girando no mundo
Quem tem pede muito quem não tem pede mais
Cobiçam a terra e toda a riqueza
Do reino dos homens e dos animais
Cobiçam até a planície dos sonhos
Lugares eternos para descansar
A terra do verde que foi prometido
Até que se canse de tanto esperar
Que eu não vim de longe para me enganar

O tempo do homem, a mulher, o filho
O gado novilho urra no curral
Vaqueiros que tangem a humanidade
Em cada cidade e em cada capital
Em cada pessoa de procedimento
Em cada lamento palavras de sal
A nau que flutua no leito do rio
Conduz à velhice, conduz à moral
Assim como deus, parabéns o mal

Já que tudo depende da boa vontade
É de caridade que eu quero falar
Daquela esmola da cuia tremendo
Ou mato ou me rendo �� lei natural
Num muro de cal espirrado de sangue
De lama, de mangue, de rouge e batom
O tom da conversa que ouço me criva
De setas e facas e favos de mel
É a peleja do diabo com o dono do céu