…na beira do mar

Há quem concorde com a tese de que a arte é tão melhor quanto mais peias se lhe coloque. Que é indispensável à produção artística o estipular de certas regras formais, arbitrárias que sejam, justamente para serem desafiadas – não necessariamente desrespeitadas, mas para que, apesar das limitações auto-impostas, e ao mesmo tempo apoiando-se nelas como tomando impulso para ir mais alto, é que a arte pode avançar. Não há outro motivo para que o soneto – ou a sonata – sejam formas consagradas há tantos anos, repudiados por uma geração apenas para que a seguinte volte a se interessar por elas, ainda que num novo patamar de criação.

O Galope à beira mar é um formato de repente derivado do martelo agalopado, modalidade do martelo, que por sua vez é uma variante do decassílabo heróico, que foi usado por Camões para escrever os Lusíadas. Dito isto, expliquemos. No site Nos domínios do Cordel conta-se que:

Foi criado pelo violeiro cearense José Pretinho (não o da peleja do cego Aderaldo), filho de Morada Nova, vaqueiro do “coronel” José Ambrósio, falecido em Lavras da Mangabeira. Contam que José Pretinho, após levar uma surra, em Martelo, de Manoel Vieira Machado, Cantador piauiense, veio a Fortaleza e, na Praia de Iracema, observou o mar, cujo movimento das ondas se parecia com o galope dos cavalos da fazenda do “coronel” Ambrósio. Criado o estilo, procurou o adversário para a desforra. Deixou-o aniquilado.

A diferença fundamental do galope à beira mar para o martelo agalopado é simples: uma sílaba métrica a mais. Enquanto martelo é em décimas, o galope é hendecassílabo. Ora, este acrescentamento muda toda a estrutura de acentuação tônica dos versos. Vejam a diferença do martelo (marquei as tônicas em negrito)

Atirei meu casaco sobre a mala,
e me pus novamente a caminhar

para o galope:

Cantor das coivaras queimando o horizonte,
das brancas raízes expostas à lua

Ou seja, enquanto o martelo tem as tônicas do verso nas sílabas 3, 6 e 10, o galope as tem nas sílabas 2, 5, 8 e 11, estabelecendo um ritmo regular de duas sílabas curtas e uma longa, assemelhada exatamente com um cavalo a galope, de forma ainda mais precisa do que o martelo agalopado já o fazia. O decassílabo heróico, que originou o martelo, tem acentuações obrigatórias nas sílabas 6 e 10, mas permancece livre na primeira.

O martelo, por sua vez, foi criado pelo professor Jaime Pedro Martelo (1665 – 1727), a partir das oitavas camonianas, mas ainda sem estrutura de estrofe. Até que em 1898, José Galdino da Silva Duda estabeleceu o formato que se tornou o martelo agalopado, e do qual o galope derivou, com rimas do tipo ABBAACCDDC, ou seja: o primeiro verso rimando com o quarto e o quinto; o segundo com o terceiro; o oitavo com o nono; e o sexto com o sétimo e com o último, numa estrutura simétrica chamada décima espinela, criada pelo poeta espanhol Vicente Espinel (mas usada em outras métricas) e batizada em homenagem a este por Lope de Vega. O galope à beira marsegue esta forma, mas neste ainda é obrigatório que o último verso termine com o verso cantando galope na beira do mar ou uma variante, ou no mínimo com a palavra mar.

Toda esta intrincada descrição tem um propósito: deixar claro como uma manifestação popular, chamada folclórica, tem origens históricas que não apenas vão fundo na cultura erudita, como também não representam nenhum tipo de diluição desta cultura, mas sim um desenvolvimento dela (e por vezes uma sofisticação), que por sua vez influencia e determina outras formas de cultura. A armadura rígida destes formatos inspira e desafia o cancioneiro popular a variações diversas, e por sobre o formato original uma enorme diversidade pode surgir. Três exemplos:

Beira mar – Zé Ramalho – 1979 (letra aqui)

Zé Ramalho mistura em suas influências tanto a cultura nordestina tradicional quanto o rock dos anos 1960 e 70 e os poetas americanos e ingleses da virada do século XX, como Yeats, Ezra Pound e T. S. Eliot. O resultado é um clima entre a letra algo impressionista e o arranjo épico de metais e cordas, que juntamente com a percussão pintam o quadro de um cavalo galopando no vento e nas ondas de uma praia – ou talvez avançando num campo de batalha.

O Vaqueiro e o pescador – Antônio Nóbrega e Wilson Freire – 1997 (letra aqui)

Antônio Nóbrega escolhe outro caminho, o narrativo direto, contando uma história. Promove também uma interessante inversão do ponto de vista, já que é o vaqueiro o narrador, viajando na direção do mar, num encontro de forte carga simbólica.

Cantando ciranda na beira do mar – Siba – 2011 (letra aqui)

Siba faz duas mudanças mudanças importantes, e mais relacionadas entre si do que pode parecer, no formato original do Galope: troca este na letra pela ciranda, meclando os dois ritmos na condução da canção; e se faz acompanhar por uma guitarra elétrica, característica fundamental do álbum Avante, de onde a faixa veio. Em parte ele compartiha a poética de Zé Ramalho, em sua descrição da beira mar como uma batalha ininterrupta e imemorial – o que combina com a aspereza da guitarra, e acaba dando o tom épico por outro caminho, muito diverso, que o próprio Siba reconhece (e aí ele fala em Homero numa entrevista, mas a ligação com os Lusíadas se faz mais direta pela tradição do formato).

Mas, mais que isso, o ritmo da ciranda se presta também a uma ligação com o rock diferente da realizada por Zé Ramalho, pois se este traz Rolling Stones e Bob Dylan para seu universo, Siba mostra-se filho do manguebeat e de vertentes mais recentes do rock e da música eletrônica. Assim, aglutina as sonoridades da guitarra e dos teclados com a tuba no lugar do baixo elétrico, com um resultado sonoro que, embora pareça a princípio ir na direção oposta a trabalhos anteriores como os realizados com a banda Fuloresta, na verdade apresenta-se como uma outra modalidade da fusão ancestral/moderno que sempre buscou.

Cada uma das três canções, ao longo de mais de três décadas, propõe soluções totalmente diferentes ao mesmo problema, partindo das mesmas condições para alçar voos em direções variadas. Assim como cada repentista e cordelista desafia não apenas eventuais oponentes, mas a própria tradição, diariamente, no seu ofício cotidiano. Nenhum dos três cai na armadilha fácil de tratar de temas manifestamente atuais e criar um anacronismo de forma e conteúdo – até porque o repente nunca se vexou de tratar dos assuntos do jornal do dia, prova de sua enorme vitalidade. Em vez disso, atualizam a poética, trazem novos elementos aos arranjos, criam novas relações melódicas e rítmicas, pluralizando a tradição, ao seguir suas regras fielmente e ao mesmo tempo traí-las – eis o segredo para a reinvenção diária da arte.

Em tempo: para uma análise do manguebeat centrada nas trajetórias de Chico Science e Siba, veja este ótimo texto de Carlos Sandroni.

Repente contemporâneo e outros desafios

O repente nordestino e de seu pai na tradição, o cordel, inspiraram obras não apenas musicais, como O Auto da Compadecida e Morte e Vida Severina. Mas quando se trata de passar o repente para o formato da canção popular, é interessante ver como as características de ambas se amalgamam nas necessárias adaptações.

O repente nordestino se caracteriza pelo improviso, muitas vezes facilitado pelo uso de um mote, ou seja, uma frase que é repetida no fim do verso e que serve de guia na construção. Geralmente o improviso se dá sobre um tema dado com antecedência e que é desenvolvido de forma mais ou menos imprevista, pela óbvia dificuldade de fazer isso improvisando com rima, dificuldade minorada quando é contada uma história com começo, meio e fim conhecidos. Por outro lado, um repente é necessariamente longo, e a capacidade de estendê-lo (mantendo-o interessante, claro) é uma das medidas do talento do cantador.

Com a canção a história é outra. Sua estrutura é muito mais organizada, mesmo sem a presença de um refrão – que até pode existir no repente, como uma folga para o improvisador. Uma canção precisa ser concisa, e portanto não há nela espaço para o lento e elíptico desenvolvimento do cordel. Para compensar, o fato de ser previamente composta dá a ela a vantagem de poder se aprofundar muito mais no que diz, mesmo utilizando a sintaxe poética tradicional.

Um repente pode falar de qualquer coisa, e é muito comum que se fale de assuntos do noticiário. Da última vez que fui à Feira de São Cristóvão, há poucas semanas, encontrei histórias de cordel à venda narrando a história do goleiro Bruno, do Flamengo, e de Elisa Samúdio. E há também os repentes satíricos, em que algo ou alguém é ridicularizado, e descendente talvez das cantigas de escárnio medievais. Bienal, de Zeca Baleiro, escolhe este caminho, e consegue uma junção impressionante: adapta o formato folclórico em música popular para falar de arte erudita – só que, no caso, artes plásticas. Na verdade, sua crítica não se volta contra a arte, mas contra certos artistas mais preocupados com concepção que com composição, e que se descolam da possibilidade de comunicação em prol de experimentalismos. Mas faz isso se colocando como o próprio artista/repentista, e sua crítica ao mesmo tempo devastadora e hilariante e vem bem a propósito no blog, já que a Bienal de São Paulo está acontecendo (mas vem sendo bastante elogiada, ao contrário da do ano passado).

Bienal, de Zeca Baleiro, com ele e Zé Ramalho

Desmaterializando a obra de arte do fim do milênio
Faço um quadro com moléculas de hidrogênio
Fios de pentelho de um velho armênio
Cuspe de mosca, pão dormido, asa de barata torta

Meu conceito parece, à primeira vista,
Um barrococó figurativo neo-expressionista
Com pitadas de arte nouveau pós-surrealista
calcado da revalorização da natureza morta

Minha mãe certa vez disse-me um dia,
Vendo minha obra exposta na galeria,
“Meu filho, isso é mais estranho que o cu da jia
E muito mais feio que um hipopótamo insone”

Pra entender um trabalho tão moderno
É preciso ler o segundo caderno,
Calcular o produto bruto interno,
Multiplicar pelo valor das contas de água, luz e telefone,
Rodopiando na fúria do ciclone,
Reinvento o céu e o inferno

Minha mãe não entendeu o subtexto
Da arte desmaterializada no presente contexto
Reciclando o lixo lá do cesto
Chego a um resultado estético bacana

Com a graça de Deus e Basquiat
Nova York, me espere que eu vou já
Picharei com dendê de vatapá
Uma psicodélica baiana

Misturarei anáguas de viúva
Com tampinhas de pepsi e fanta uva
Um penico com água da última chuva,
Ampolas de injeção de penicilina

Desmaterializando a matéria
Com a arte pulsando na artéria
Boto fogo no gelo da Sibéria
Faço até cair neve em Teresina
Com o clarão do raio da silibrina
Desintegro o poder da bactéria

Zeca Baleiro aproveita bastante das características do repente, inclusive o uso de um vocabulário empolado que normalmente surpreende nos cantadores populares, e que aqui é usado para realçar a inteligibilidade do trabalho do artista plástico/personagem. Mas outra possibilidade da transcrição repente-canção é seguida por Zé Ramalho em seu próprio trabalho, ao cruzá-lo com a poética de compositores do rock como Bob Dylan, ao mesmo tempo se apropriando do formato da peleja, o enfrentamento entre dois personagens que é tema recorrente do cordel, e da temática religiosa e apocalíptica disseminada no Nordeste, conseguindo da síntese destes elementos uma poética coalhada de simbolismos e cheia de desdobramentos inclusive políticos – aliás, uma leitura desta letra tendo em mente as eleições próximas �� algo que recomendo fortemente. Não para tentar identificar representantes de Deus e do Diabo entre os candidatos, já que estes são igualados no fim da segunda estrofe, mas para pensar nos “vaqueiros que tangem a humanidade” – tema de Admirável Gado Novo, do mesmo álbum – e no “tom da conversa” que ouvimos nos últimos tempos. E quem tiver ouvidos de ouvir, que ouça.

A Peleja do Diabo com o Dono do Céu – Zé Ramalho

Com tanto dinheiro girando no mundo
Quem tem pede muito quem não tem pede mais
Cobiçam a terra e toda a riqueza
Do reino dos homens e dos animais
Cobiçam até a planície dos sonhos
Lugares eternos para descansar
A terra do verde que foi prometido
Até que se canse de tanto esperar
Que eu não vim de longe para me enganar

O tempo do homem, a mulher, o filho
O gado novilho urra no curral
Vaqueiros que tangem a humanidade
Em cada cidade e em cada capital
Em cada pessoa de procedimento
Em cada lamento palavras de sal
A nau que flutua no leito do rio
Conduz à velhice, conduz à moral
Assim como deus, parabéns o mal

Já que tudo depende da boa vontade
É de caridade que eu quero falar
Daquela esmola da cuia tremendo
Ou mato ou me rendo é lei natural
Num muro de cal espirrado de sangue
De lama, de mangue, de rouge e batom
O tom da conversa que ouço me criva
De setas e facas e favos de mel
É a peleja do diabo com o dono do céu