Canções de guerra, canções de amor

Não é suficientemente difundida, mas deveria, a história de como a canção Novo Tempo, de Ivan Lins e Vitor Martins, por muito pouco não foi gravada por Michael Jackson no álbum Thriller. Eles foram contatados pela produção, negociaram os termos do contrato, mas quando este foi enviado, não respeitava nada do acertado, tinha termos draconianos. Ele mesmo conta, em entrevistas à revista Época e ao jornal O Globo:

– E a história de que o Quincy (Jones, produtor de Thriller) tinha selecionado uma música sua para o disco Thriller, do Michael Jackson? É verdade?
Ivan – Sim, é verdade mesmo! Assim como Quincy , me deu uma ajuda inestimável (Quincy deu um grande impulso na carreira internacional de Ivan), o advogado dele conseguiu tirar minha música do Thriller (risos). Eles haviam escolhido Novo Tempo, minha e do Vitor Martins. Mas, quando chegou o contrato, não teve acordo. O advogado queria que a gente cedesse todos os direitos. Eu não podia assinar aquilo. A gente sonhava em fazer um grande sucesso internacional, mas não a esse preço. Na verdade, eu e o Vitor, quando recusamos o contrato, não sabíamos que a música já estava incluída no Thriller.

– Você sabe se ela chegou a ser gravada?
Ivan – Há alguns meses, me disseram que existe uma gravação do ensaio do disco. Mas, até agora, essa gravação não apareceu. Não sei se é verdade. Mas também não posso querer tudo, né? Hoje, eu faço piada disso. Se o Michael tivesse gravado Novo tempo, eu estaria morando nas Ilhas Fiji e vocês não teriam o prazer de ouvir minhas músicas (risos).

Enquanto os advogados se digladiavam, o Quincy chegou a me mostrar, por telefone, umas ideias que estavam tendo para nossa música. E o letrista ia ser Rod Temperton, que me ligou um dia para saber o que dizia a letra em português. Falei que era sobre esperança de um mundo melhor, e me lembro muito bem da frase que ele disse: “Oh, Michael is gonna love that!” (O Michael vai adorar!”)

O que é que tornou a obra de Ivan Lins o sucesso internacional que é hoje, querida e gravada por cantoras como Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Carmen MacRae, entre outras? Para além da inegável qualidade, da relação harmonia/melodia e da estruturação sólida de suas canções, há algo mais, que talvez possa ser definido como um sotaque específico que, sem perder a referência brasileira, torna-se palatável e mesmo traduzível facilmente. Isto se dá sem dúvida pela influência jazzística que Ivan carrega desde o começo de sua carreira. Mas há algo mais, que envolve mesmo as letras de Vitor Martins. Não se trata tanto das referências à cultura brasileira. Estas são tão encontráveis na obra de Ivan quanto nas de Caetano Veloso ou Chico Buarque. O que as faz diferentes e permite uma abordagem mais fácil por parte do estrangeiro é a forma destas referências. Boa parte das canções de Caetano, por exemplo, exige do ouvinte um mergulho aprofundado no universo que as alimenta, sem o qual perdem bastante em termos de leitura.

Tomemos uma canção como O Estrangeiro, de que já tratei aqui, há tempos. Mesmo que a canção possa ser ouvida sem se ter em mente questões específicas do Brasil, sem dúvida perde-se muito ao não levá-las em consideração. Nas canções de Ivan, obviamente isto também ocorre, mas de modo diferente, e mesmo em menor grau. Numa palavra, e correndo o risco de fazer uma generalização, elas sobrevivem melhor à desreferencialização. Permanecem muito mais íntegras que as de outros compositores, mesmo quando recebem versões. Sua ênfase composicional está na construção da canção, mais do que na construção de diversas camadas de leituras. ou estas leituras atuam de forma muito mais independente umas das outras.

Isto também não significa que Ivan tenha se descolado da realidade brasileira, muito ao contrário, já que ele é um militante político desde o início de sua carreira, e nunca se furtou de tratar do assunto em suas canções. A própria Novo tempo é fundamentalmente um balanço da abertura política em curso no ano de seu lançamento, 1980, logo após a aprovação da Lei da Anistia. No entanto, isto não teria impedido que Michael Jackson a tivesse gravado com a intenção determinada por Ivan no telefonema de Rod Temperton: uma canção sobre a esperança de um mundo melhor. A significação política brasileira não a diminui, mas o caráter universal se superpõe e, dependendo da circunstância, se impõe. Uma canção do mesmo período de Chico Buarque dificilmente teria a possibilidade de ser lida desta forma, o que não a torna nem mais nem menos datada. É de diferenças no ponto de partida da criação artística que estamos tratando.

Os álbuns e as canções de Ivan na segunda metade dos anos 1970, primeiros anos de sua parceria com Vitor, são ao mesmo tempo os momentos de amadurecimento da forma composicional de Ivan, que o levaram a ser descoberto pelo produtor Quincy Jones (através do percussionista brasileiro radicado nos EUA Paulinho da Costa), que apresentou sua música a inúmeros músicos norteamericanos, e uma etapa de participação política muito intensa. Neste período, enquanto seu som se tornava mais internacional, ele fazia um inventário e um balanço particulares do Brasil, revendo o passado e apontando o futuro. Novo tempo é como que a conclusão deste processo, que se inicia muito antes.

Aos Nossos filhos – 1978

O anti-acalanto que encerra o álbum Nos dias de hoje é um acerto de contas com o passado, na forma de uma carta para o futuro. Ivan e Vitor rememoram os anos de chumbo, que então aproximavam-se vagarosamente do fim, e expressam a tênue esperança de dias melhores, ainda que não para eles próprios. Nas canções de Ivan, um elemento interessante de ser analisado é a terminação das frases musicais. Assim como os saltos melódicos amplos, um dos elementos que o torna preferido dos intérpretes, a terminação ascendente é quase uma marca registrada dele, expressando de certa forma um otimismo implícito, quase sempre traduzido em versos correspondentes por Vitor Martins. Em Aos nossos filhos, no entanto, os versos finais da primeira e da segunda estrofes (o ciclo de três estrofes se repete na segunda parte) terminam descendentes, como a expressão de um cansaço, um desânimo após uma luta intensa, ao passo que a terceira estrofe, de melodia repetida na última, termina ascendente, mas por sua vez carregada de tensão, como que num esforço sobre-humano de otimismo, num rasgo de esperança quase forçado.

Aos nossos filhos é o retrato de um tempo sombrio e de sua herança. Mas no álbum seguinte, Ivan e Vitor trariam uma canção que seria como que a demostração do caminho da mudança a ser trilhado.

Começar de Novo – 1979 (em gravação mais recente)

Começar de novo é a demostração cabal da dicotomia política/amorosa de Ivan Lins. Em seu sítio eletrônico, o próprio Ivan conta que ela foi composta com a intenção de ter uma dupla leitura:

A letra, que não traz definição de gênero (não fala nem no feminino nem no masculino), na verdade era uma profunda e muito criativa crítica à ditadura militar, com menções inclusive ao presidente Figueiredo, mas elaborada de maneira que a ambigüidade não prejudica nem a crítica política e nem o sentido amoroso da canção, além de ter conseguido driblar a terrível censura que sofriam os artistas da época.

(A menção a Figueiredo está nas esporas, já que ele era um entusiasta de esportes hípicos, e chegou a declarar que preferia cheiro de cavalo ao de povo.)

O uso deste duplo vínculo político/amoroso não era novidade na MPB que driblava a censura pra se manifestar contra o totalitarismo. Entre muitas outras, Apesar de você, de Chico Buarque, usava este mesmo expediente. A diferença é que a canção de Chico mal disfarçava sua índole, mantendo as duas leituras geminadas, interdependentes – o que não a impede de se perenizar para além do contexto específico para o qual foi feita. Prova disso é justamente a reação da censura, ao finalmente se dar conta do caráter subversivo da canção – os compactos à venda foram recolhidos e a Apesar de você foi peremptoriamente proibida. Começar de novo, por sua vez, tornou-se abertura de uma série de sucesso da Rede Globo, Malu Mulher. Embora esta série tenha sido considerada avançada para a época pelo viés feminista, por retratar uma mulher descasada e com vida profissional, ainda assim, nela a leitura da canção de Ivan Lins é predominantemente da relação a dois, e isto se dá porque as duas leituras possíveis permanecem independentes. Isto permitiu, por exemplo, a versão em inglês de Alan & Marilyn Bergman cantada por Barbra Streisand, com o estranho título de The island (!)

De qualquer forma, Começar de novo representa um passo adiante em relação a Aos nossos filhos. Diferentemente desta, tem todos os versos terminados em curva ascendente. Permanece a tônica da avaliação do passado versus apontamento de possibilidades de futuro, mas desta vez a visão é eminentemente otimista, e as benesses que virão serão aproveitadas não pela geração segunte, mas pelo próprio eu lírico. Retomada pessoal/coletiva que abre caminho para

Novo tempo (o título está errado no vídeo) – 1980

Novo tempo é uma das canções mais otimistas que se pode imaginar, uma trilha sonora da abertura política, com a anistia no ano anterior, e que desembocaria na redemocratização poucos anos depois. O furação parecia ter passado. Ao contrário das baladas precedentes, Novo tempo tem um andamento apropriado para uma caminhada, o que pode trazer a associação com uma manifestação popular, reforçada pelos versos a gente se encontra / cantando na praça (particularmente, me lembra Penny Lane, com o piano bem ritmado dando o tom da atmosfera otimista de ambas – impressão reforçada especialmente quando um trompete faz frases de ligação entre as estrofes, assim como na canção dos Beatles.)

Ivan usa aqui um recurso recorrente em suas melodias: a frase que vai sendo repetida cada vez mais aguda, como em Estamos crescidos / estamos atentos / estamos mais vivos e no refrão (agora frases descendentes, mas sempre com um salto para o agudo na última sílaba, como que não admitindo o menor traço de desânimo) Pra que nossa esperança / seja mais que a vingança / seja sempre um caminho / que se deixa de herança. Porém, desta vez o agudo final não soa como um esforço, mas como uma consequência natural, uma conclusão, uma reafirmação: dias melhores já estão vindo.

Dois termos usados por Vitor Martins em Novo tempo traçam a continuidade com as canções anteriores: Pra nos socorrer, verso repetido várias vezes ao longo da canção, com o verbo aplicado de forma pouco usual, assim como em Começar de novo (no verso Ter me socorrido); e, de forma mais sutil, os versos finais, citados logo acima, todos eles uma resposta a Aos nossos filhos. Apenas dois anos antes Ivan e Vitor pareciam mal enxergar um legado a ser deixado, a ponto de pedirem uma espécie de herança às avessas: Quando colherem os frutos / digam o gosto pra mim. Apesar de tudo, havia sementes plantadas, mas a realidade só justificava o canto acabrunhado de um pedido de perdão. Novo tempo é o panorama oposto: as sementes estão frutificando, não há porque pedir perdão. De certa forma, é a canção dos filhos: apesar dos castigos / estamos crescidos.

E no entanto, Michael Jackson (ou melhor, Rod Temperton, ou a síntese de Ivan para ele) não estava errado. Novo tempo é, sim, uma canção sobre a esperança de um mundo melhor, nada menos. Assim como Aos nossos filhos pode ser a carta de toda geração à seguinte, desde o início dos tempos. As canções de Ivan Lins e Vitor Martins tem esta capacidade de permitirem leituras sobrepostas porém estanques, e o fazem sem perder um pingo de sua densidade. Se o sucesso no exterior se dá em detrimento de uma das possibilidades de entendimento, pior para os gringos, e se Novo tempo não entrou em Thriller unicamente por desentendimentos jurídicos – e falo muito sério agora – pior para o Michael, que perdeu a oportunidade de trazer para seu universo (vide canções posteriores dele como Heal the world) e universalizar uma tremenda canção. Oportunidade que Elis Regina fez questão de não desperdiçar, e cuja inacreditável interpretação de Aos nossos filhos em um especial de TV em 1980 fica como brinde.

O voto – e o que vale agora?

Forró do Largo, de Ivan Lins e Vitor Martins, é do álbum Nos Dias de Hoje, de 1978, um momento em que uma tímida abertura começava a ser vislumbrada no país. É quase toda ela um xote despretensioso, narrando pela centésima vez a história do sujeito que do forró vai para o mato com a menina (Só Luiz Gonzaga deve ter uma dez dessas). E daí acorda dia seguinte sem pai nem mãe. Até que chegamos à última estrofe:

Do forró do largo, o que lhe restou
Foi o “tito” d’eleitor, que ninguém quis lhe roubar
E que naquela hora lhe valeu o que vale agora.
(E o que vale agora?)

Sempre achei engraçado esta crítica política enfiada à força no fim da música. Era uma época em que isto soava justificado, assim como a foto fake de Ivan fichado pela polícia que ilustra a capa do álbum. Mas não custa perguntar de que dias de hoje falamos, afinal, quando manifestos pró-candidatos estão sendo divulgados com nomes igualmente enfiados à força (o de Ivan Lins estava no do Serra, sem autorização).

Mas o que me interessa mesmo é a pergunta final que Ivan repete no fim da canção. Em 1978, Figueiredo foi “eleito” presidente indiretamente pelo Congresso, Congresso este eleito nas circunstâncias que se pode ler aqui. A sensação – correta, em sua maior parte – de que o voto não valia nada, pareceu desfazer-se com a redemocratização, para hoje ameaçar voltar em grande parte da população.

Então, sem a pretensão de fazer uma tese acadêmica, acho que cabe fazer novamente a pergunta da letra de Vitor Martins. E pensar no que o voto de cada um pode contribuir para uma construção de país, se o voto é eficaz, se é suficiente, o que mais se pode e precisa fazer, e como novas formas de manifestação – como as redes sociais, que serviram tanto para propagar a histeria sobre o aborto quanto para ridicularizar a farsa da bolinha de papel – são, ou poderão ser, instrumentos de democracia válidos à medida em que estejam acessíveis a todos, tanto quanto o voto. Pois que o voto é algo que deve ser instrumentalizado por acesso à informação não manipulada por interesses corporativos, coisa que, creio eu, tende a se democratizar, assim como a produção e distribuição de música se democratizou com a derrocada da indústria de disco e as possibilidades da Internet. Algo que talvez não dependa tanto de ações políticas e de controles sociais da mídia (ao qual sou favorável dentro da democracia, mas é outra discussão), e sim de um processo histórico de descentralização da informação que enxergo, para bem e para mal,  inevitável, um anti-1984, anti-anti-utopia.

Enfim, era isso. A meditar para este domingo. E todos os próximos.

Forró do Largo – Ivan Lins