A trajetória de Tom Zé é conhecida, mas ainda assim espantosa. Tendo integrado ativamente o grupo que forjou a Tropicália, uma das vertentes mais importantes da história da música brasileira, em seu trabalho posterior ele foi se afastando progressivamente até cair em um ostracismo que durou mais de uma década, e este até ter sua produção descoberta por David Byrne e ter seu reconhecimento de volta, e amplificado. Tom Zé já declarou mais de uma vez ter descoberto em sua análise um processo de auto-sabotagem que o levou a quase acabar com a própria carreira.
Em 2003, Tom Zé lançou o livro Tropicalista Lenta Luta, (teria o título muito melhor Tropicália jacta est, de que Tom Zé abdicou por modéstia, para que não pensassem que ele reivindicava ter lançado a Tropicália) que, entre tratar de sua infância e reunir textos diversos, traz também uma entrevista dele a Luiz Tatit e Arthur Nestrovsli. E nela Tatit apresenta a Tom Zé uma teoria sobre sua obra recente que merece ser lida e explorada.
Luiz Tatit – Queria levantar com você uma coisa. Mais para levantar uma lebre, mas acho que seria interessante se a gente explicitasse isso. é uma leitura que faço da sua trajetória, com esse texto que você escreveu (“Tropicalista lenta luta”), foi muito mais fácil chegar a uma conclusão. Diz respeito ao Tropicalismo. Vem a ser o seguinte: você vai repetindo aí muitas vezes a ideia do “isso se deve ao meu analfabetismo musical”…
Tom Zé – Certo.
LT – Seu estilo de “plágio”, a estética do “arrastão” (o uso de outros compositores na sua própria música), que você já elaborou e tal. Ao mesmo tempo, naquele texto você fala de uma coisa que me pareceu muito reveladora, que é a questão do contrato implícito, contrato tácito…
TZ- Acordo tácito.
LT – Acordo tácito que haveria entre ouvintes e cantores de uma determinada época. Você percebeu aquilo, subjacente em todos os lugares e sentia que jamais poderia participar daquele acordo – não daria certo, você mostraria sempre certa insuficiência, às vezes na voz, às vezes na maneira de compor, às vezes…
TZ – …na [falta de] coragem para fazer um negócio tão…
LT – Exatamente. Por outro lado, você começou a produzir nesse intervalo mesmo das coisas que não chegam lá, mas ao mesmo tempo estão. Assim, pelo menos, você conseguia tomar a peito, tomar controle daqueles elementos que não chegava a fazer parte do contrato; ao mesmo tempo, você começou a desvendar um novo contrato possível, um novo acordo…
TZ – Acordo tácito.
LT – O acordo tácito. Então, essa ideia toda começou. Depois você chegou nos anos 90, com o disco Com defeito de fabricação. Quer dizer, as insuficiências do começo, depois parece que resultam nos “defeitos” dos anos 90 – com o maior sucesso. Você teve que ir para fora, até voltar coroado e tal. Acabou de certa forma impingindo os defeitos lá fora. Foram aceitos por lá; depois voltou com os defeitos já como uma espécie de recurso de composição extraordinário. Que então deu origem aos Jogos de armar.
Se são jogos de armar, são peças para se montar; portanto, incompletos. E essa ideia de incompletude é uma ideia de imperfeição, não é? Uma imperfeição o tempo inteiro. A ideia do perfeito é a coisa acabada; o imperfeito é a coisa pela metade, que está chegando lá. E na nossa tradição temos a ideia de que o imperfeito faz parte do nosso cotidiano, não é?
TZ – O imperfeito?
LT – O imperfeito é nosso cotidiano. Já as obras de arte, quando se consegue chegar a um produto interessante, a gente considera aquilo perfeito.
TZ – Certo.
LT – A estética é perfeita. Mas você parece que está extraindo sua estética de algo que é imperfeito, algo que é tipicamente cotidiano, não é?
TZ – É.
LT -E a grande questão é a seguinte: a leitura que eu faço, Tom Zé, o que acho interessante de a gente pensar é que a Tropicália, o Tropicalismo como um todo é algo quase contingente na sua trajetória. Uma contingência de propósitos, naquele momento. Seu projeto sempre foi outro: um projeto ligado a essas coisas, essas insuficiências, esses defeitos. O gesto inicial já está nessa direção, não? E não era esse o projeto do Tropicalismo: pelo contrário, era a canção dos anos 70, a canção popular, a canção pop dos anos 70. Seu projeto nunca foi esse.
TZ – Não.
LT – Naquele momento, houve uma confluência de fatores, claro; o Tropicalismo e você tinham interesse em música nova, tinham pontos em comum. Tinham tido a informação de vanguarda e tudo isso. Mas não tinham os mesmos propósitos, os projetos era diferentes. Então, não creio que seja interessante esse vínculo tão crucial entre Tom Zé e Tropicalismo.
TZ – É verdade.
LT – Seu projeto era outro, tanto que apareceu depois. Teve uma fase de incubação mais longa, mas apareceu depois. O que você acha?
TZ – Acho perfeito; e nunca tinha pensado assim. Até para minha psicanálise vai ajudar muito. É o que ela dizia – agora estou me lembrando que ela dizia coisa parecida: “Não é que lhe tiraram alguma coisa em certa ocasião (quando você se viu ‘exilado’ do Tropicalismo); é que você não tinha pronta a coisa, nem sua capacidade moral de tomar posse da coisa.” E você está me dizendo, por outro viés, que eu não tinha a coisa pronta. Não tinha mesmo. E aquele desvio para tentar fazer algo na bitola da música popular – vamos dizer que a direção era essa; se tivesse continuado naquilo, eu tinha me enterrado.
LT – Também acho. Não era ao seu projeto.
TZ – Não era. (…)
Esta teoria de Tatit tem inúmeros desdobramentos, e seu ponto central está teorizado de certa forma pelo próprio Tom Zé naquela que é a canção-manifesto do álbum Com defeito de fabricação (tanto que em sua descrição ganha o comentário: Espinha dorsal) e um nome que já entrega sua intenções: Esteticar.
Com defeito de fabricação, de 1998, é o segundo álbum de Tom Zé após sua ressurreição. No primeiro, The hips of tradition, ele atira para todo lado trazendo um material represado por anos. Neste, começa a esboçar-se a teoria que vai desembocar numa metodologia e num novo estilo, que vem norteando sua produção desde o álbum seguinte, Jogos de armar. Todas as faixas do álbum trazem uma pequena consideração que identifica o arrastão usado na faixa, a influência / plágio usada em sua construção, indo de Tchaikovsky e poesia concreta a Alfred Nobel e a dinamite. Nesta, informa: Arrastão dos baiões da roça. A disparidade de influências e origens evidenciada aqui vai se expressar tanto estética quanto politica e ideologicamente. Ao prenúncio do procedimento de criação por linhas de contraponto que ele passou a usar, soma-se aqui uma afirmação vigorosa do mestiço e da diferença, como que antevendo a ascensão de uma intelectualidade disposta a coibir a variedade e que se dispõe a transformar em moda o anti-humanismo, e contrapondo a ele a noção fundadora do nosso Modernismo de 22 e influenciadora direta da Tropicália: a Antropofagia.
Aqui cabe explicitar não exatamente uma discordância, mas um adendo à tese explanada por Tatit, e que contou com a concordância imediata de Tom Zé, vinda de um auto-reconhecimento de sua trajetória. Se Tatit explica com louvor o motivo por que Tom Zé se distanciou da Tropicália, não se detém no o levou a ela. Fala apenas numa contingência, numa confluência – a palavra mais adequada talvez seja convergência – de fatores e interesses que puseram lado a lado Tom Zé, Caetano e Gil, Bethânia e Gal. Pois a Antropofagia era o fator de união entre eles naquele momento, o que aglutinou seus esforços conjuntos para virarem de ponta cabeça a música brasileira, e que continua conduzindo o pensamento de Tom Zé desde então, para não dizer desde sempre.
Caetano Veloso já contou em várias ocasiões a epifania que permitiu a ele estabelecer na mente os fundamentos do que seria a Tropicália, definida por ele próprio como um neo-antropofagismo. A epifania se deu assistindo à montagem do Grupo Oficina para o Rei da Vela, de Oswald de Andrade. Se a MPB quase recém-nascida estendia a Bossa-Nova a todo o Brasil levando seus procedimentos estéticos ao baião, ao frevo, a Tropicália fazia movimento inverso e mais amplo, trazendo os procedimentos da música pop e contemporânea para cá. Estas forças centrípetas e centrífugas fatalmente entraram em choque. E no entanto, no texto de contracapa do álbum Tropicália, Caetano psicografa marotamente João Gilberto e coloca em sua boca a frase (em NY, conversando com Augusto de Campos): Diga que eu estou aqui, olhando para eles.
Como diz Tatit, a Tropicália trazia para si as influências, mas com a intenção de colocá-las no formato da canção popular, subversiva dentro de parâmetros da indústria (o que é uma contradição dialética a ser resolvida, e justamente este é o cerne da Tropicália, resolver esta questão. Ainda na contracapa do álbum Tropicália, Caetano também psicografa Rogério Duprat: Como receberão [os baianos] a notícia de que o disco é feito para vender? Compare-se a frase com a de Oswald de Andrade, O povo ainda comerá do biscoito fino que fabrico, do Oswald de Andrade.) Porém, onde a Tropicália dizia mata, Tom Zé queria esfolar. Passando a outro paralelo, assim como o dodecafonismo se propôs a quebrar e reorganizar a escala tonal e o serialismo o sucedeu estendendo seus procedimentos de não-repetição ao ritmo e radicalizando ainda mais sua estética, Tom Zé se propôs a radicalizar a proposta tropicalista levando seu procedimento antropofágico à forma de maneira ainda mais profunda. E este foi o momento de partir.
Porém, voltemos a Esteticar. A letra da canção, na primeira pessoa, é dirigida a um interlocutor imaginário, que é tratado ironicamente de milord a única vez em que é nomeado, indicando a princípio tratar-se de um estrangeiro. Já o restante quase todo da letra trata da auto-identificação do eu-lírico, mas pelo ponto de vista do interlocutor: Pensa que eu sou…isso e aquilo, para afinal mandá-lo lamber, não sabão, mas tradução intersemiótica. Ou seja, Esteticar trata fundamentalmente de identidade, e da recusa em aceitar uma identidade imposta. Imposta por quem?
E aí há uma pista sutil que define melhor o personagem, permitindo-nos concluir que não se trata de um estrangeiro. Pois se é estrangeiro, para que precisaria de uma tradução? Define-se o interlocutor não como o estrangeiro de fato, mas de espírito, que tem como referência exclusiva ou principal, e subserviente, o estrangeiro. Mas há mais, e o restante da descrição deste a quem o baião é dirigido virá da forma como ele próprio enxerga o eu-lírico. Que é inteiramente de desprezo. Mas quem é o eu-lírico? Ora, é o próprio Tom Zé, oferecendo a própria pele como defensora dos valores que exaltará.
Pois a lista de palavras autodefinidoras é grande, mas três chamam a atenção de cara: caboclo, mulato, mameluco. Mestiço. Misturado. Ajuntadas a estas, uma enorme série de adjetivos pejorativos, boa parte deles aglutináveis no Jeca Tatu, personagem criado por Monteiro Lobato para definir o brasileiro do interior, abandonado pelo poder público, indigente cultural e social. Embora Lobato tenha destacado que o Jeca não é assim, ele está assim, sua figura lastimável – de caboclo – tornou-se preconceituosamente a um símbolo negativo de brasilidade. Assim, a mestiçagem é associada na canção – como é realmente – à indolência, à ignorância, à insignificância.
E aqui começa a se definir a real contraposição realizada por Tom Zé. O que inicialmente poderia parecer uma oposição entre brasileiro e estrangeiro se mostra na verdade entre misturado e… puro? Ou talvez pretensamente puro, assim como pretensamente estrangeiro. Ou mais definidamente, quem nega a mistura, quem nega a diferença ou atribui a ela a fonte do mal. Podemos esperar um pouco mais para nomeá-lo, mas há ainda outra pista: a tradução intersemiótica indica sarcasticamente uma intelectualidade vazia, porém que se opõe arrogantemente ao cabeça-oca, pateta, mongo, a imagem do populacho, da reles e rala ralé. Uma auto-nomeada elite, certamente não democrática e sim demofóbica, autoritária portanto, e baseada em teorias irreais ou distorcidas para exercer seu poder. Aficionada de valores estrangeiros, pode ainda assim se declarar ou ter a aparência de patriota, mas mal disfarçando seu desprezo pelo que não se enquadra no seu conceito particular de nação, não misturada, pura. Acho que agora há elementos suficientes. Trata-se do fascista, ou melhor, do fascismo.
Forte? Pois reveja as características, todas elas dedutíveis das poucas mas precisas indicações dadas por Tom Zé, sejam diretas ou por oposição ao personagem narrador. Mas a defesa do imperfeito, do insuficiente, do Com defeito de fabricação como virtude, como possibilidade de invenção e de um novo acordo com o ouvinte, e o ato de trazer esta atitude da vida comum para dentro do fazer artístico vai na exata contra-mão do pensamento que pretende levar uma pretensa perfeição artística para o dia-a-dia e enquadrar a realidade num ideal particular de beleza. Caetano Veloso, a respeito do surgimento do Tropicalismo, certa vez afirmou que a diferenciação com a linha mestra da MPB que se afirmava era porque eles buscavam o belo, enquanto os tropicalistas se interessavam de alguma maneira também pelo feio. Inversamente, o nazismo ascendente na Alemanha primeiro tratou de delimitar rigidamente a estética demonizando a arte contemporânea, para mais tarde aplicar estes critérios na população, eliminando deficientes, judeus e todos que não se enquadrassem no padrão étnico ariano – os mestiços.
De certa forma nego aqui a conclusão de Tatit, ao afirmar um forte ponto em comum entre o projeto de Tom Zé e a Tropicália. Mas não, em vez disso, entendendo o que os separou, enxergo algo mais aprofundado, um tronco comum entre ambos e que ainda os une hoje em suas diferenças. A Antropofagia, a capacidade de trazer a influência esterna, na filosofia de Tom Zé transmutou-se na Estética do Arrastão, no elogio da pluralidade e a capacidade de fazer ouvir diferentes vozes dentro do mesmo discurso, ou abrigar discursos diversos em seu trabalho. É possível mesmo, como chega a esboçar Tatit em outro ponto da entrevista, associar esta visão com o processo composicional que Tom Zé passou a utilizar a partir daí. A técnica do contraponto (não o de Bach, mas o de Stravinski, ele destaca), em que diferentes vozes, diferentes linhas melódicas instrumentais independentes se sobrepõem formando um emaranhado que serve de suporte para a melodia cantada/letra recitada, faz por sua vez um contraponto à noção de pluralidade e convivência de vozes e diferenças, tanto quanto a mistura de estilos e informações resultam em algo maior que a soma das partes em cada canção. A Estética do Arrastão é também a estética do mestiço, cuja maior força vem da própria impureza.
A letra de Esteticar tem ainda dois detalhesdignos de nota. Um deles é a apresentação da expressão estética do plágio, sucedânea da do arrastão e centro do refrão, por um jogo de armar silábico: Ca esteti ca estetu / Ca estética do plágio-iê, antecipando o processo de decomposição do álbum seguinte, Jogos de armar. Nele, a noção de pluralidade de vozes seria levada ao extremo pela possibilidade de desmontar e remontar as estruturas musicais, que são apresentadas separadamente em um CD extra. O próprio ouvinte passa a ter a possibilidade de interferir no discurso de Tom Zé e criar a partir dele, incorporando-se ao processo criativo, que não termina no CD gravado e vendido. O refrão de Esteticar alinha-se a este pensamento na estruturação da linguagem, como num ensaio para ampliá-lo à estruturação da própria linguagem musical. Assim também o pensamento de Tom Zé vai se refletindo em diferentes níveis linguísticos e estéticos, em cada um deles apresentando consequências diversas e alinhadas entre si.
Finalmente, duas frases de Tom Zé entremeando os versos colocam cores finais na sua tomada de posição. Help Tinhorão! Help Suassuna! O apelo aos dois maiores defensores da soberania cultural brasileira tem um teor dúbio, quase indecifrável: será sério ou irônico? Pois Tom Zé consegue um drible fabuloso, sendo simultaneamente sério e irônico, ao apelar para eles tanto em estrito senso quando manifestar suas insuficiências. Sim, Suassuna era um homem de esquerda. Tinhorão idem, marxista ortodoxo e convicto. Prato cheio para um desavisado ou mal intencionado concluir que o fascismo é de esquerda. Sorte nossa que podemos nos aprofundar um pouco mais na questão.
Suassuna e Tinhorão dividem a mesma concepção de cultura brasileira, uma concepção que passa de fruto de uma mistura de influências e povos diversos para um purismo que a desqualifica totalmente. Tinhorão é profundo conhecedor de nossas raízes populares, da formação do samba e tradições regionais, e da produção cancioneira pré-Bossa-Nova. A partir daí, ele considera que a influência externa – americana em particular – corrompeu irremediavelmente nossa música. Porém, releva ou mesmo louva a mescla do lundu com a polca e a música de Chopin, que influenciaram decisivamente o nascimento do choro. Já Suassuna, criador do Movimento Armorial, que vai muito além da música, criou uma orquestra para tocar com instrumentos europeus (não só, mas muitos também derivados destes como a rabeca) as harmonias tonais da música nordestina, mas torceu o nariz quando o Mangue Beat trouxe suas guitarras para o maracatu.
Uma vez assisti um debate entre José Miguel Wisnik e Tinhorão, em um congresso sobre música popular. Claro que os dois nomes foram convidados exatamente por terem posturas publicamente opostas quanto a nossa produção atual. Em dado momento, com a elegância que lhe é peculiar, Wisnik não hesitou em apontar a incongruência do nacionalismo de Tinhorão e a característica autoritária de seu discurso. Ele e Suassuna trazem o mesmo fundamentalismo que admite e admira a mestiçagem cultural formadora de nossa identidade, mas considera esta identidade formada em determinado ponto, a partir do qual tora interferência torna-se deletéria. Há nisto uma falta de confiança implícita na capacidade de absorver novas influências. Claro que há aqui também uma crítica a indústria cultural, e sua influência avassaladora. Mas também subestima-se a imposição cultural do colonizador em nossa formação, à custa de muito sofrimento, e a capacidade não apenas de resistência, mas principalmente de absorção e transformação destas influências em algo novo e essencialmente brasileiro. Em suma, Tinhorão e Suassuna não incluem em suas equações a Antropofagia. Daí a duplicidade dialética do pedido de socorro. Tom Zé quer deles a exaltação desta identidade mulata, mas segue confiando nela e dispensa o autoritarismo posterior. O uso de uma palavra em inglês para formular este pedido torna-o especialmente sarcástico, ao trazer à baila a influência posterior sem mencioná-la.
Espantei-me outro dia desses ao saber que Olavo de Carvalho, o mentor espiritual da onda fascista atualmente quebrando nas nossas praias, era um admirador de Suassuna. Fui buscar sua real opinião.
O segredo da brasilidade autêntica do teatro de Ariano Suassuna não está nos temas, comuns a tantas obras epidermicamente nacionalistas, nem na imitação da linguagem popular, obrigação dogmática que se tornou cacoete: está em que a fórmula estrutural de suas peças não se inspirou em Sartre ou Brecht, e sim nos autos medievais lusitanos. Suassuna não é brasileiro porque come coco, mas porque digere a fruta local no estômago da tradição lusa. A forma é tudo.
O trecho, aparentemente lúcido e exaltador da brasilidade, é mesmo perfeitamente alinhado com a visão de Suassuna: a influência portuguesa arcaica é admissível e benéfica para formatar e domar os temas nacionais, ao contrário da influência de autores modernos (e ainda por cima comunistas). Suassuna é bom para Olavo na medida em que é um autor português medieval. Esta é sua medida de nacionalismo. Trata-se do antípoda da Antropofagia: que os saberes brasileiros sejam controlados pelo saber colonizador mais antigo, a desvalorização total . Que os índios sejam evangelizados, e os mulatos embranquecidos. Neste parágrafo quase aleatório de Olavo, está a essência holográfica do pensamento fascista espalhado em toda sua obra. E é contra este pensamento que Tom Zé se insurge em sua canção e sua obra, afirmando peremptoriamente seu inverso.
A ação de Olavo de Carvalho fomentando o fascismo no Brasil se deu principalmente pela brecha da crítica cultural. Ele percebeu que a a estética pode ser dominante sobre a política, mesmo sobre a economia. Tom Zé sabe disso como todo grande artista, e sabe o quanto a obra de arte tem o poder de refletir e amplificar uma visão de mundo. Penso dispenso a mula da sua ótica, ele canta para alguém que, em que pese o anacronismo de duas décadas, poderia perfeitamente ser Olavo de Carvalho – pois a arte frequentemente prevê em si os paradigmas futuros. Uma canção como Esteticar traz afirmações extremamente necessárias ao país atualmente, afirmações de diversidade e inclusão, da identidade cultural brasileira, mas principalmente de seu valor intrínseco, sua capacidade de entendimento à margem ou para além do saber que o queira domar. Uma cultura capaz de rechaçar a ameaça totalizante deglutindo-a e devolvendo-a desmoralizada. A Estética do Arrastão, inclusiva e plural, é a versão tomzeana e pós-tropicalista da Antropofagia. E, como disse Oswald: Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Que ela seja mais forte que o fascismo. Que nós sejamos.
Meus agradecimentos ao Thiago Amud.