Sobre um procedimento de Thiago Amud

Este artigo é um estudo sobre os possíveis significados da resolução deceptiva. Sendo um termo técnico de música, é justo iniciar explicando do que se trata. Aos que já conhecem o termo, podem pular o próximo parágrafo. Aos que não conhecem, não se assustem e sigam, afianço que o que vem adiante compensará.

A resolução deceptiva acontece quando melodia e harmonia se encaminham para uma direção conhecida e, quando estão a ponto de se resolverem, decepcionam – como seu nome sugere. Quando tudo parece indicar que chegarão ao estado de repouso – dominante em direção à tônica, por exemplo, com a melodia atingindo a nota fundamental – elas são uma guinada algo brusca, e um outro acorde, uma outra nota surgem, mantendo a tensão, conduzindo a continuações inesperadas ou a algum trecho anterior, indicando repetições. O artifício é usado para surpreender o ouvinte e está presente em inúmeras peças do cancioneiro popular, com diferentes graus de radicalidade – às vezes trata-se apenas da substituição do acorde esperado por um de função análoga – ou pode puxar o tapete do ouvinte e levá-lo para outro universo tonal e/ou conceitual.

Dito isto, passemos a Thiago Amud, um compositor que nunca fez questão de trilhar o caminho mais fácil ou mais óbvio, sendo tanto um ourives de canções extremamente elaboradas quanto um pensador dos caminhos do Brasil, seu tema recorrente – e um país que também parece se recusar a escolher o caminho mais fácil… A trajetória de Thiago é a de uma busca tanto estética quanto ética, e o conduziu de críticas ferozes e temas angustiados (angusThiago é como ele se define, entre múltiplos outros termos amalgamados de Autorretrete) a possibilidades de redenção, às vezes apenas entrevistas, às vezes francamente anunciadas. E dentre estas canções, duas, entre muitas, usam o recurso da resolução deceptiva de forma extremamente eficiente, com resultados opostos, mas em ambos os casos refletindo nossas vertigens e esperanças de nação.

Ambas as canções escolhidas são as que abrem álbuns de Thiago, respectivamente o terceiro e o quarto. A mais bela cena é a primeira de O cinema que o Sol não apaga – este por sua vez um verso da canção destacado para nomear o álbum. A cena referida está no filme Rio, Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos, e nela o personagem Espírito da Luz, interpretado por Grande Otelo, apresenta seu samba (na verdade de autoria de Zé Kéti) Malvadeza Durão a Ângela Maria, que interpreta a si mesma. As lágrimas de Grande Otelo/Espírito da Luz ao receber elogios por seu samba motivaram Thiago a escrever ele próprio seu samba, em que a sina de Espírito da Luz, morto ao cair do trem da Central do Brasil, se confunde com a de um país que vislumbra a saída para em seguida voltar e mergulhar na escuridão.

No entanto, o samba de Thiago tem uma letra que se poderia considerar otimista, se lida separadamente da melodia. Ou quase, já que sua principal afirmação não é feita de forma direta: O Brasil tem que ter jeito é o centro do refrão e da própria canção, repetido por Thiago e pelo coro insistentemente, como quem tenta se convencer. A afirmação não é que o Brasil tem jeito, e sim que ele tem que ter algum jeito, ao menos uma vez acrescida de um ai, caramba! que revela o tragicômico da situação. E neste refrão onde está contido o verso, chegamos à resolução deceptiva, usada de forma magistral.

Pois justamente o verso que insiste que o Brasil se resolve, que tem de se resolver, este verso… não se resolve. A harmonia que o acompanha conduz a melodia descendente a girar em falso, sempre procurando um ponto de apoio que não chega (Onde foi que deu defeito?, pergunta ele em contraponto). O Brasil tem que ter jeito, o Brasil tem que ter jeito, repete-se febrilmente sem que este jeito se anuncie, e o samba, ao invés de um caráter festivo, revela-se aflitivo. Assim como o Brasil, assim como Espírito da Luz, a canção está sempre quase lá, quase a se completar, quase a alcançar o que almeja.., mas eis que chega Roda Viva, e carrega o destino pra lá.

(Aliás, não se pode dizer que A mais bela cena não tenha resolução. Ela está lá, cantada quase de passagem, uma única vez. O verso Entenda o que este samba lhe diz se encerra numa resolução clássica, harmonia na tônica, nota na fundamental. O que no entanto passa quase despercebido, pois a canção tem pressa de voltar ao refrão e seu carrossel infinito. Este verso, posicionado tão estrategicamente por Thiago, não deixa de ser uma piscadela dele para o ouvinte, sobre como nos perdemos nas discussões desimportantes deixando escapar o que está à frente do nariz. E Thiago insta, roga: Entenda, amigo, o que este samba lhe diz.)

E daí passamos à canção de abertura do álbum seguinte de Thiago, Graça – o álbum chama-se simplesmente São.

Graça é uma canção de índole muito diversa de A mais bela cena. É uma canção pacificada, e é a retomada de uma promessa de felicidade, que já se revelou falsa tantas, tantas vezes. Aqui, não há condicional, não há nada que tenha de ser ou ter jeito. O verbo é o futuro do presente, direto, seguro do que diz. Se A mais bela cena pinta a cena propriamente de Ângela Maria e Grande Otelo como uma estrela inalcançável (como a própria Ângela Maria para Espírito da Luz, atentemos para os nomes), aqui a graça já está efetivamente caindo sobre todos, e ele garante sete estrelas de guiar. A formação católica e interesses no esoterismo por parte de Thiago alimentam de simbologias boa parte de suas composições, e aqui a cena retratada é nada menos que a de uma redenção.

Mas onde uma resolução deceptiva teria lugar nesta canção? Está justamente em seu final, mas, embora tendo função análoga à da canção anterior, provoca o efeito inverso. Os últimos versos de Graça, E o meu filho nascerá / por você são cantados numa cadência típica de dominante/tônica, em que a melodia pousa suavemente na nota fundamental para encerrar a trajetória melódica e de pensamento, a epopeia da canção. Mas Thiago recusa este final, e na última nota, ao invés da fundamental, ele desliza para a sexta do acorde – uma substituta muito inconsistente da fundamental. Mas o que o leva a isto?

Pois o que o leva é justamente a perpetuação da graça. Pois Graça é repetida cinco vezes integralmente ao longo de sete minutos, numa atitude que é simultaneamente mântrica e joãogilbertiana. Não se trata mais de repetir para compensar a insegurança com relação ao que é afirmado (insegurança que, em A mais bela cena, é desvelada pela própria estrutura da canção, pelo ferramental de Thiago, de forma calculada e proposital – não se vá pensar que estou fazendo análise psicanalítica do autor), e sim de garantir a perpetuação da bem aventurança, já que esta resolução deceptiva reconduz a melodia ao verso inicial, assim como o verso final, ao relatar a chegada do filho tanto como o corolário desta bem-aventurança como seu continuador ativo, aquele que receberá o carisma (aqui em sua acepção cristã) e o levará adiante. Assim como Graça se encerra não com o ajuste da melodia que lhe dê um fim típico, mas com a retomada do primeiro verso ainda uma vez, indicando uma nova retomada. Não se trata de um Fim dos Tempos, mas sempre de um recomeço.

A análise destas duas canções isoladamente pode dar uma impressão imprecisa de Thiago como se de uma a outra ele tivesse dado uma guinada repentina – uma resolução deceptiva, por assim dizer. Na verdade, Graça é um passo adiante num itinerário, e sua existência não exclui a companhia de outro samba como E a galera ria, um retrato cáustico da naturalização do fascismo e até certo ponto uma resposta à Marcha dos Desacontecimentos, canção do primeiro álbum de Thiago em que a crítica (justa, por sinal) era voltada para a esquerda – e assim como na faixa de encerramento do álbum, História da Revolução Caraíba, ele soma a crítica à busca desta sanidade tanto existencial quanto política para narrar um levante popular que ponha o fascismo para correr, sem excluir a violência (em parte atenuada pelo humor) de surras de tacape por parte dos índios e um certo tom de Bacurau, aliás citado na letra.

Em suma, em São, Thiago não tira os pés do chão – apenas talvez erga um pouco mais a cabeça, e, desde o título, procure novas formas de conciliar suas inquietudes com a visão de um futuro menos sombrio e uma confiança ser humano, longe de clichê porque construída duramente, tanto estética quanto eticamente. Pero – se me permitem aqui minha própria resolução deceptiva – sin perder la ternura.

O estranhamento íntimo de Luiza Brina

O segundo álbum de Luiza Brina, Tão tá. teve sua versão em vídeo no Youtube não com imagens da capa, mas sim em movimento. Todas as músicas mereceram uma espécie de clipe contínuo em que Luiza e os músicos de sua banda O Liquidificador, vestidos de astronauta, se movem em paisagens diversas, quase sempre inóspitas, como terrenos baldios e casas em ruínas. Os vídeos acompanhavam o projeto gráfico do próprio álbum, e eram uma tradução fiel em imagens da música de Luiza: um estranhamento do conhecido.

A primeira vez que ouvi Luiza foi num sarau promovido por Luiz Gabriel Lopes, na época seu companheiro na banda Graveola e o Lixo Polifônico (ele saiu, ela não) e produtor de seu primeiro álbum A toada vem é pelo vento, em que os presentes se revesavam a um violão mostrando suas composições. Não lembro que músicas ela tocou, mas lembro bem de minha reação: o que é isto? Eram canções, reconhecíveis como tal, mas tomavam caminhos que me surpreendiam a cada estrofe, a cada cadência. Não eram simplesmente estranhas, mas inesperadas, desde a escolha das notas dos acordes que soariam na melodia, até as ideias expressas nas letras – que frequentemente não são dela, mas parecem se contagiar pela estética e se ajustarem a seu modus operandi. Fiquei deveras impressionado.

Depois disso, ainda assim e meio inexplicavelmente, não fui ouvir as gravações de Luiza. Uma explicação possível pode ter sido o medo de me decepcionar: medo de que as versões em estúdio, com arranjos, tirassem a estranheza daquelas canções, as convencionalizassem, banalizassem, as fizessem comuns. O tempo passou, até que tomei vergonha na cara, ao saber do lançamento do seu terceiro álbum, Tenho saudade mas já passou, e lá fui eu tirar o atraso do dever de casa, ouvindo os três álbuns em sequência. E tive duas surpresas: primeiro, que o estranhamento, que eu temia não estar, está lá, desde os primeiros álbuns; e segundo… é do que trataremos agora.

Tenho saudade mas já passou tem a direção musical do músico César Lacerda, mineiro como Luiza, mas com um percurso um bocado diferente – que o levou no entanto a ir parar em São Paulo ao mesmo tempo que ela e dividirem apartamento, que a vida de músico não é fácil. Acontece que César tem uma visão particular de seu trabalho, expressa nesta resposta que deu à revista digital portuguesa Caliban, a propósito de seu álbum Tudo tudo tudo tudo:

A gente (ele e Marcos Preto, diretor artístico do álbum) entendeu que havia um vício na produção nacional, um vício estético, uma necessidade de borrar a canção. Você pode por exemplo compor uma canção, sei lá, “Parabéns para você”… A escolha de como você veste essa canção, se a guitarra toca os acordes ou se ela tem uma distorção que suja e torna aquilo estranho, se você coloca a voz mais à frente ou mais atrás na engenharia de áudio, enfim, a gente começou a notar que havia um tipo de estética que começava a dominar a música indie brasileira, que já não alcançava mais o público médio, que havia voltado os seus ouvidos para a música que não é a grande música popular brasileira, não no sentido de melhor, mas no sentido da tradição. Era necessário compreender esse movimento. Esse Tudo Tudo Tudo Tudo é um disco que reflete, primeiro, eu diria politicamente, uma necessidade de fazer uma canção que conseguisse furar a bolha, ou seja, furar esses degraus sociais que foram aparecendo no país, que foram crescendo, se fortalecendo. Já não faz mais sentido algum que eu produza uma canção para uma bolha. É daí que vem esse disco, politicamente.

Independente de concordar-se ou não (há muitas variáveis na equação que ele propõe da popularização dos repertórios da geração musical independente, como a mudança radical do papel das gravadoras e os nichos de mercado formados após 2000), a visão de César é sem dúvida respeitável, embora tenha causado furor no universo da música independente por conter implícita a semente de uma crítica generalizada. E a audição de Tudo tudo tudo tudo deixa claro que o que ele propõe está longe de ser uma mera simplificação de linguagem, uma diluição. Ainda assim, a uma primeira leitura, a direção que César toma em sua música corre o sério risco de se tornar conflituosa com a de Luiza. Pois se o estranhamento da realidade é o grande trunfo dela, como tornar seu som palatável para um público mais amplo sem perder esta característica? É um desafio que Luiza assumiu depois de muitas conversas com César, e que enfrenta em seu álbum.

Uma outra diferença salta aos olhos também de cara: Luiza não é acompanhada desta vez pelo Liquidificador. As formações e arranjos de Tenho saudade mas já passou ganham um sutil gosto pop em diversos momentos, ou simplesmente menos regional, como em Acorda para ver o sol, com participação de Fernanda Takai, ou De cara, com o próprio César. A variação de registros do álbum é bem maior que nos dois anteriores, como o retrato de um momento de transição, em que múltiplas possibilidades são testadas. Mas possibilidades de caminhos para chegar a um lugar que é pensado e determinado – não se trata de uma exploração às cegas, e isto dá ao álbum a unidade de que ele precisaria.

Assim como a imagem do astronauta pousando na Terra ilustra magistralmente o trabalho de Luiza até então. a capa deste também é exemplar deste momento: ela se equilibra sobre uma escada, com um pé de cada lado. Um equilíbrio precário para ganhar altura, sem se decidir necessariamente por um dos dois. E os dois caminhos, se puderem ser nomeados, são, respectivamente, a apresentação do comum sob um novo prisma, de um lado; e do outro, a apresentação do novo e diferente sob a embalagem do simples e não pretensioso. Ou: uma forma arrojada de olhar as coisas simples e uma maneira suave de ser arrojada. Ou: o estranhamento da realidade, e a apresentação do estranho de forma familiar. E o desafio de realizar estes dois movimentos simultaneamente, que Luiza – e César – alcançam de formas variadas.

A canção de abertura, desde o título/primeiro verso faz uma inesperada declaração de intenções: Como será que a música começa?, pergunta ela enquanto começa a música. Onde será que a música me leva?, pergunta enquanto avança. A parceria com Ceumar transita da incerteza para a certeza e vice-versa: Já faz tempo eu sei / Que conheço esse mistério / O som vai e vem / Mas só vibra no profundo em mim. Um mistério antigo, conhecido, mas ainda mistério; familiar, mas mistério. Mas um mistério que vibra no profundo em mim, mistério íntimo. A contradição implícita nos versos não se resolve. Hoje sei bem mais  / A canção é onde estou em paz. Um mistério que traz paz. Esta é a conciliação possível entre as visões de Cesar e Luiza. A canção termina com a melodia firmemente apoiada no acorde da tônica, numa afirmação tranquilizante após a interrogação desestabilizante do início. Mas o recado está dado: a pergunta é o modo de afirmação de Luiza. Desestabilizar, para dar o passo à frente, é disso que falamos.

O repertório segue com suas diversas soluções para atingir este equilíbrio e uma multiplicidade de parceiros – Luiza não repete parceria no álbum, incluindo uma com Ronaldo Bastos e uma composição inteiramente dela. A variedade não prejudica a unidade, antes acrescenta-lhe sabores, mas a sonoridade da canção que ela divide com César, De cara, está mais próxima da do álbum de Cesar que dos anteriores dela. Em outros momentos, como a primeira faixa já citada ou Esmeralda, parceria com Gustavito Amaral, o equilíbrio ocorre mais fluido. Porque é bom lembrar que a estranheza do mundo de Luiza nunca chegou a excluir a possibilidade de cantar junto com o público, haja vista a canção título e que encerra seu primeiro álbum, A toada vem é pelo vento, cantada mantricamente por um coro contagiante. Neste ponto, é preciso nuançar a oposição que está sendo pintada entre diretor musical e artista – oposição que frequentemente é necessária e profícua, pois se o diretor apenas referendar o pensamento do artista, qual será sua função? Porém aqui o que se trata é de fortalecer um aspecto do trabalho de Luiza que estava talvez em segundo plano e equipará-lo aos demais. E duas canções do álbum se destacam neste processo.

A primeira é a regravação para o clássico de Gilberto Gil Queremos Saber. O destaque se dá não pela originalidade da versão de Brina, feita ao violão e voz e seguindo muito proximamente o desenho conferido a ela por Cassia Eller no seu Acústico (e passando ao largo da personalíssima versão de Erasmo Carlos, por exemplo). Em termos estritamente musicais, a gravação de Luiza acrescenta pouco à canção, mas sua presença no álbum é muito fácil de se compreender, uma vez que a letra de Gil estabelece os parâmetros gerais que César se propõe a seguir esteticamente:

Queremos saber,
O que vão fazer
Com as novas invenções
(…)
Queremos saber,
Quando vamos ter
Raio laser mais barato

Futuro para todos. Um futurismo naturalizado na linguagem, acessível, cristalino. Gil conta que quando, anos depois, trabalhava no álbum Quanta, tratando das questões espinhosas da relação entre arte, ciência e religião, decidiu-se por composições menos experimentais que em outros trabalhos, não apenas permitindo-se um certo didatismo, mas também em termos formais, dando preferências a rimas em ão… esta consciência da comunicação dentro da exploração estética e vice-versa é o modelo para César e Luiza, e por isso esta canção vem tão a propósito no repertório do álbum.

E a outra é, paradoxalmente, a que Luiza considera a faixa mais diferente do disco, com relação a instrumentação e arranjo. Mas deixemos que Luiza fale dela (os comentários completos dela faixa a faixa estão aqui):

Primeiro de janeiro de 2016, às 4h19 da manhã recebo um email com esta letra do Thiago Amud para uma melodia que havia enviado a ele. (…) Nos reunimos uma tarde eu, o Thiago Amud, a Joana Queiroz e o César Lacerda, e concebemos juntos as linhas gravadas. Criamos este arranjo pensando em cinema, em imagens. O barco, a clarinetista na praia ninando a criança, o mar, a areia…

Estrela cega da Turquia – pois é desta canção que Luiza fala – tem como tema e fato disparador a fotografia que ganhou mundo de um menino sírio morto numa praia turca, vítima da tentativa baldada de sua família de refugiados de alcançar a Europa e escapar da guerra civil em seu país. Uma terrível canção de ninar, tornada ainda mais atroz pelas referências bíblicas e a visão de uma estrela de belém incapaz de guiar as novas sagradas famílias em segurança.

Os primeiros acordes ao clarone e clarineta de Joana, sem esconder o som do ar soprado, são como as ondas estourando na praia. Os contracantos de Thiago ao longo da canção são como coros de anjos numa antianunciação. Os harmônicos e guinchos dos sopros se incorporam ao arranjo, como a divisão irregular de versos e compassos, a traduzir o incômodo deste acalanto tardio e inútil. Uma realidade estranha, em que, dois mil anos depois, famílias e crianças continuam sem refúgio, sem paradeiro. A divisão dos compassos e a irregularidade dos versos impedem o ouvinte de se esquecer do que estamos falando. E no entanto, a canção transpira carinho. Incômoda e singela.

Luiza tem razão em considerar esta a gravação mais diferente do álbum, mas é talvez também a que mais aponta caminhos, talvez por ser também a que corre mais riscos, ao tratar de um assunto tão difícil, com uma instrumentação menos convencional, em contraste com o baixo/bateria/teclado ou piano de outras faixas, e com uma aposta amorosa no ouvinte, uma aposta mais alta que em outras faixas do álbum, mas não menos factível. Ela realiza em si os dois movimentos, ao tratar de uma realidade que é simultaneamente comum – pois trata-se de uma família como poderia ser a minha ou a sua – e imensamente estranha em sua tragédia. E dá a este tema um tratamento digno, que também é ao mesmo tempo estranho, com os sons dos sopros e a estrutura harmônica, e íntimo, com dois violões e o canto sotto voce de Luiza e Thiago. E ao final, o vocalize de ambos embalando não apenas o menino à beira-mar, mas também o ouvinte. A aproximação se dá pela via do afeto, sem abrir mão um milímetro da densidade estética. Sem desdouro das demais faixas, que buscam o mesmo por diversas vias, Estrela cega da Turquia é o ponto alto de um álbum que mantém o interesse do início ao fim, e a que me permitiu enxergar possibilidades de desenvolvimento do som de Luiza com mais clareza, onde a proposta política de César se resolve mais naturalmente e pode vir a ser um guia para o que ele virá a ser em suas transformações.

Quando decidi escrever este artigo, fui ouvir os três álbuns de Luiza Brina na ordem, para tirar o atraso de anos sem conhecer a fundo o trabalho que me encantara tanto à primeira escuta. Depois de ouvir os dois primeiros, arquitetei chamar o artigo que já decidira escrever de A música regional cubista de Luiza Brina. Mas ao ouvir o terceiro, percebi que este título estava desatualizado, ou mais precisamente, não abarcava tudo o que eu consideraria importante para dizer. Ainda termino em dúvida sobre ele. O futurismo íntimo de Luiza Brina? O estranhamento familiar? A suavidade arrojada ou o arrojo suave? Todos eles servem, são intercambiáveis. Use o que achar melhor. Assim como Luiza está continuamente procurando novos caminhos e equilíbrios, cada um destes títulos pode em algum momento ser útil.

Ilessi e a meada evolutiva da música brasileira

Este texto se inicia falando não do álbum Mundo afora: meada, de Ilessi, mas da recente destruição do Museu Nacional pelo fogo e pelo descaso com o passado. Muitos lembraram, entre as muitas lamentações, o quanto o passado e seu conhecimento é determinante para o futuro. O antropólogo Viveiros de Castro chamou o Museu Nacional de ground zero, o lugar central que era o símbolo da gênese do país como nação independente e continha um acervo inestimável, não só do ponto de vista da história da cultura e da natureza brasileiras mas com peças de significado mundial. O ponto de partida e de referência invisível do país, a partir do qual se estabelece sua caminhada como nação, a partir de onde ele se expande.  O entendimento desta noção se tornou ainda mais urgente após a hecatombe, e tem íntima relação com o trabalho de Ilessi. Dito isto, vamos a ele.

Quando conheci Ilessi, sua carreira já estava em vias de começar pela segunda vez,ou mais propriamente já recomeçara e eu pegava o bonde andando. Assisti seu show com Thiago Amud, a voz dela e o violão e quase exclusivamente as canções dele, na segunda encarnação do já saudoso Semente, na Lapa. Não sabia de seu primeiro álbum Brigador, de 2009, todo de parcerias de Pedro Amorim e Paulo Cesar Pinheiro, e também não sabia da profusão de repertórios e shows e autores que ela tem a fome de apresentar ao público. Amud é um dos principais destes, mas está longe de ser o único. Ilessi tem uma variedade de shows prontos para apresentar, além de participações aqui e ali. Alguns exemplos são o show Dama de espadas, com repertório diverso do álbum, e a participação no espetáculo Selva Lírica, com Thiago Thiago de Mello, Demarca e Claudia Castelo Branco, entre outros.

Digo que sua carreira recomeçava porque está implícito o interregno entre este álbum e o que ela então começava a preparar, Mundo afora: meada, lançado este ano, mas também as diferenças fundamentais entre estes dois projetos. Nestes nove anos, Ilessi progrediu num nível diferente do meramente musical. Progrediu principalmente em sua visão de Brasil, da função da música e de seu lugar no Brasil. O projeto Mundo afora, de que Meada é a primeira parte, é um fragmento de retrato de país sob uma ótica de futuro.

Porém, preciso confessar o que mais me deixou mais imediatamente impressionado neste pocket show de Ilessi e Thiago. Não foram as composições dele, que eu já conhecia. Foi a semelhança vocal entre Ilessi e Elis Regina que me deixou estupefato. E antes que alguém tenha a mais leve ilação de que eu esteja colocando em Ilessi o absurdo rótulo de sucessora da Elis, não, não é nada disso. E sim, não deixa de ser. Não, ela não é a nova Elis, ninguém é a nova Elis. Mas a comparação com Elis, por mais perigosa que seja, se impõe aqui por vários motivos: tanto pelo timbre e a forma desabrida e corajosa de cantar quanto pela escolha do repertório, apostando decididamente em autores de sua geração.

Os momentos em que Ilessi solta a voz no agudo, em especial, abrindo um timbre metálico e ampliando o volume destemidamente, não têm como não lembrar Elis, em especial pelo equilíbrio entre o a expansão emocional e controle da melodia, este particularmente evidente diante do repertório do álbum. Já a principal diferença está no grau de liberdade interpretativa tomado. Enquanto Elis eventualmente se arvorava, algo egoisticamente (mas este egoismo também é da profissão do artista) quase em co-autora do que cantava, Ilessi tem de alguma forma o compromisso de levar ao público a criação dos autores de forma mais próxima ao pensado por eles, uma generosidade talvez. Nenhuma das duas posturas é melhor ou pior, mas faz com que Ilessi solte um pouco menos a interpretação vocal, antes, preocupando-se com o apresentar a canção ao público, com a fidelidade ao autor, trata de estabelecer uma parceria de igual para igual com ele, e simbolicamente o traz para a ribalta com ela. Elis parecia dizer, ao apresentar um compositor ao público: Vejam quem eu descobri! Ilessi parece dizer: Vejam como ele é ótimo!

E o que Ilessi faz em Mundo afora: meada é justamente a primeira parte de um mapeamento da produção cancioneira de uma geração, e assim traçar nele a sua própria trajetória. O nome do álbum segue a estrutura sintática de Grande sertão: veredas, a obra-prima de Guimarães Rosa traça um itinerário que é simultaneamente geográfico e íntimo. Ilessi segue seus passos, não literalmente, mas na  tentativa de estabelecer novas formas de relação entre a tradição popular e a composição erudita, como uma atualização da MPB, um passo adiante, o retomar do fio de uma… meada. Ilessi procura a próxima retomada da linha evolutiva da MPB como unificadora de um Brasil e capaz de ligá-lo ao mundo.

Os exemplos neste sentido pululam no álbum, desde suas temáticas. A culpa é do saci atualiza o mito para nossas disputas políticas recentes, quase o jogando na Operação Lava Jato; A rede social trata o tema contemporâneo na forma tradicional do repente, com seus procedimentos e a harmonização modal típica, mas ainda assim esteticamente transformada, (e se inicia com uma flauta emulando um tema de Villa-Lobos); Marginal da 381 (rodovia que liga São Mateus, no Espírito Santo, a São Paulo atravessando Minas Gerais) é uma road song parada retratando uma mulher grávida que se vê de relance, um Brasil por quem se passa à toda de automóvel, e que remete a filmes como Bye bye Brasil e Central do Brasil. A intenção inicial de Ilessi era contemplar todas as regiões brasileiras. Mas por trás disto é audível em cada nota o desejo de encontrar o Brasil em cada lugar que se vai, e ver e retratar aonde está indo este Brasil.

Mas é bom lembrar que esta é a primeira parada, o início de uma viagem. Ilessi também pretendia fazer um álbum duplo, que acabou se transformando no projeto de lançar a segunda parte de Mundo afora, com o complemento Do caminhar, mais adiante, onde pretende também abarcar as regiões não alcançadas neste. Não sei se por saber disso de antemão, a mim realmente o álbum pareceu de alguma forma incompleto, no sentido de não ter dito tudo o que tinha a dizer. Mas isto também se deve certamente à avidez de Ilessi em dizer muitas coisas, a premência de dar ao mundo toda esta produção de tantos nomes que ela admira. Embora tenha seus 38  minutos, a sensação que o álbum passa é de um arco estético mais curto do que ele mereceria. Mesmo as letras das canções são frequentemente extensas. Ilessi tem muito a dizer, e ao final da escuta do álbum, fica uma certa impressão de que havia mesmo muito mais.

Contribuem para esta impressão certamente os arranjos, a cargo de Thiago Amud. A mente de Thiago é uma ebulição musical, e ele se recusa terminantemente a entregar ao ouvinte algo de significado pronto, acabado e de entendimento imediato. Os arranjos de Thiago são mutifacetados, cubistas, frequentemente suas diversas partes exigem do ouvinte um esforço ativo de recomposição da gestalt para terem sua harmonia, seu sentido geral reconhecidos. Cada aparição súbita do acorde parece uma miragem., diz Thiago em dado momento do minidocumentário produzido sobre a gravação do álbum, ao explicar a concepção do arranjo da música de mesmo nome. Há em seus arranjos uma espécie de recusa à dança estrito senso, a dança física, o que poderia causar um estranhamento com relação às escolhas de Ilessi, frequentemente ligadas a tradiç��es brasileiras – mas não ocorre porque as escolhas de Ilessi também não são óbvias. Embora praticamente todas as canções do álbum tenham relação com alguma tradição brasileira, nem todas têm um estilo definido: entre elas, além do repente já citado de A rede social, Negro Sangue é um baião e A culpa é do saci é um coco – e a eles Amud não nega o suingue requisitado, mas também os transfigura com guitarras e instrumentos distantes das respectivas tradições.

Mas em outras o ritmo quebrado parece sabotar o corpo, e mesmo nesta o instrumental se interrompe, timbres se sucedem e se substituem às vezes dentro da mesma frase musical, pois seu objetivo não é fazer uma moldura para a melodia ou a letra, mas dialogar ativamente com elas, interferir diretamente no processo. E aqui é que se estabelece a co-autoria falada e necessária a um trabalho de intérprete como este. Ou por outra: ao dialogar com as vertentes musicais brasileiras que alimentam o repertório escolhido por Ilessi e decompor os acompanhamentos para serem refeitos na mente do ouvinte, Thiago substitui a dança do corpo pela dança da mente, ou da memória, inclusive na canção de mesmo nome – Dança. Nossa memória atávica de Brasil dança com as desestruturações e reestruturações de Thiago e Ilessi, desconstruindo e reconstruindo-o em nós. A escolha cuidadosa de timbres a cargo de Thiago dá ao álbum a dimensão mundo afora a que ele se propõe: Reconhecer o Brasil no mundo e elementos do mundo no Brasil, como Ilessi afirma no minidocumentário.

Uma das formas usuais de um músico situar o ouvinte em um álbum de músicas inéditas é entremear uma regravação de algo conhecido. A escolha desta peça e o tratamento dado a ela trazendo-a para dentro do restante do repertório funciona como uma ligação entre o passado e o futuro, situando o músico em uma determinada tradição. Porem, Ilessi escolhe fazer esta ligação de forma inesperada e muito mais pessoal. A canção Miragem é de autoria do pai de Ilessi, o compositor Gonzaga da Silva. Trazer para a estética do álbum, em meio a uma coleção de canções que aponta para o futuro, uma da geração anterior, é por si uma escolha de força simbólica tão forte quanto escolher um clássico da MPB a ser repaginado, mas com uma potência de ligação com a tradição diversa, ao trazer de certa forma um pedaço inédito da tradição. Ilesssi escolheu esta forma de fazer o passado apontar para diante e ressaltar sua trajetória, menos no sentido estético que histórico – mas haverá uma outra forma similar de fazer isto ainda mais direta, como veremos adiante.

Mas, à parte isto, conhecer a trajetória artística de Ilessi também ajuda a entender onde ela pretende ir. O contraste entre seu álbum de 2009, basicamente de samba e choro tradicionais e suas variações (afro-sambas, por exemplo), e Meada é um abismo, quase como se Ilessi recomeçasse do zero. Mas em vez disso ela começa já de um patamar muito alto, e isto só é possível pelo mergulho na tradição feito antes. O samba é o ponto zero de onde a meada de Ilessi se desenrola. A ampliação de olhar é proporcional à segurança e ao entendimento de suas raízes, que lhe permite abrir horizontes sendo intrinsecamente brasileira e sabendo onde pisa ao caminhar. De certa forma, Ilessi repete sumariamente, como um embrião repete em sua gestação toda a evolução da espécie, o procedimento de nascimento da MPB, que ampliou o procedimento estético da bossa-nova com relação ao samba para as demais manifestações musicais brasileiras. Ilessi queima a etapa de estilização do samba, e expande seu raio de ação para o país e o mundo, já incorporando novos procedimentos estéticos inovadores. E quanto maior o recuo na catapulta, maior a distância à frente. Mundo afora: meada é se propõe a ser um museu de grandes novidades em que a tradição aponta decididamente para novíssimas tradições, nas obras de Renato Frazão, Edu Kneip, Milena Tiburcio, Paulo Rocha e os demais autores trazidos à luz por Ilessi.

Meada, última faixa do álbum, de Marcelo Fedrá e Thiago Amud, é um pequeno manifesto. Repetindo a simbologia de gravar uma canção de seu pai, Ilessi aqui conta com as participações imensamente expressivas de Novelli e Nelson Ângelo, membros menos lembrados do que deveriam do Clube da Esquina. A presença destes dois nomes laterais a um movimento inovador como foi o Clube, capaz de uma fusão entre as tradições brasileiras e um som de reconhecimento mundial (Sou do mundo, sou Minas Gerais) e seu sentido tão particular de utopia vai em linha com todas as decisões tomadas até aqui e as sublinha e completa, como algo que prenuncia o país que se quer. As vozes marcadas pelo tempo de Nelson Angelo e Novelli estão impregnadas de história, são história, e ao se unirem à de Ilessi neste libelo em zigue-zague ajudam a dar impulso no passado para o salto adiante, para Mundo afora: do caminhar. Para colonizar o porvir / e se apossar do que já passou.

E nos propõe um desafio
Maior
E que não foi sonhado jamais
Votar às Mães a terra, o suor
Pra que elas gerem o povo que saiba negar Barrabás
Que faça a Paz, mel do melhor.

 

Discoteca Brasílica – Praia-Palma, De ponta a ponta tudo é

discoteca brasílica Lá pelo meio de Terra em transe, uma das obras primas de Glauber Rocha, uma tomada de câmera mostra, visto de lado, um palanque vazio, pronto para ser ocupado para um comício. A câmera gira para a esquerda, e então é vista uma imensa multidão expectante. Uma tomada rápida, de apenas alguns segundos, e que não volta a se repetir. O que é bastante estranho, pois é sabido que Glauber, autor da famosa frase-definição do Cinema Novo (tanto de sua riqueza conceitual quanto de sua pobreza financeira), uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, não teria como contratar uma quantidade de pessoas como aquela apenas para uma cena tão curta. Dá para desconfiar que esta tomada não foi feita para este filme. E não foi mesmo. A origem desta curta cena, preparativa da campanha política a governador do estado do Alecrim na república de Eldorado, é o documentário feito por Glauber no mesmo ano, logo antes, Maranhão 66, em que é retratada a posse para seu primeiro mandato do então jovem governador do Maranhão, José Sarney (aliás, a bandeira do Maranhão é visível à direita da tela logo no princípio da tomada). Segundo conta o próprio Sarney, ele convidou Glauber para fazer o registro do acontecimento (outra versão, mais plausível, diz que ele teria convidado Luiz Carlos Barreto, que por sua vez chamou Glauber). Glauber, porém, em vez do esperado vídeo laudatório, publicitário convencional, alterna as imagens do palanque com outras retratando a miséria do estado, sob o fundo do discurso otimista e populista de Sarney. O resultado é inesperadamente dúbio: será um filme em que o discurso de Sarney, que cita as misérias retratadas, é levado a sério, e portanto positivo para o político? Ou será um filme denúncia, em que o discurso de Sarney é desmascarado pelas imagens? Impossível decidir com absoluta certeza. As imagens corroboram e contradizem uma e outra possibilidade, mas esta indefinição é mais destruidora que qualquer certeza panfletária. Sarney o elogiou vivamente, mas depois sabotou sua distribuição. No fim, por mais que registro do nascimento de uma dinastia quase feudal que ainda permanece dominando grande parte do estado, ainda que tendo perdido as últimas eleições, valesse por si historicamente, a leitura aberta que Glauber faz torna Maranhão 66 um filme de valor inestimável – e que de resto serviu como laboratório para Terra em transe, onde estas questões foram levadas muito adiante. (aqui, uma boa crítica de Maranhão 66). E aqui, o próprio.

Este continua a ser um blog de análise musical voltado para a canção. Mas a menção a Glauber e, mais precisamente, a estes dois filmes, se justifica porque eles – e mais particularmente Terra em transe, de que ainda falaremos – vieram à minha mente imediatamente ao ouvir as canções de Thiago Amud. Antes ainda de tratar da que dá título a este texto, e que nomeia seu segundo álbum, é preciso falar da canção de seu primeiro álbum, Sacradança, e que me despertou primeiro esta questão: A marcha dos desacontecimentos.

A marcha dos desacontecimentos é uma marretada. E o mais surpreendente é que seja uma marretada voltada para a esquerda do espectro político, mas sem por isso se identificar plenamente com o outro extremo deste espectro. Neste sentido, parafraseando e invertendo a famosa frase de Fernando Collor, ela deixa a esquerda indignada e a a direita perplexa. Sua crítica terrível a grande parte das estratégias de pensamento e ação da esquerda (em especial talvez a chamada esquerda festiva, citada quase nominalmente nos abraços à Lagoa), denuncia o que esta tem de inócuo e inútil, o que nelas não passa de tentativa vã e egoísta de tranquilizar a própria consciência. Não por acaso, aproveita o formato festivo da marcha carnavalesca (que no entanto foi e é meio de crítica política) e transfigura-o num arranjo de guitarras cheio de tensão, não bastasse a melodia de curvas inesperadas característica de Thiago, e de que falaremos adiante. E não à toa o clipe gravado no meio do Cordão do Boitatá, bloco carnavalesco carioca. O próprio Thiago explica em entrevista, falando de sua subversão do termo MPB em Música Purgatorial Brasileira:

Às vezes escrevo canções diabólicas, não como adesão a potências disruptivas, mas, ao contrário, para exibir em tons sinistros o avesso da bondade, a fim de que esta ressalte como absolutamente necessária. É uma máscara, um jogo dramático (N. do T. Notar as máscaras alegre/triste do clip da Marcha). Foi assim que fiz Sal Insípido, A Marcha dos Desacontecimentos, mais tarde A Marcha do Grande Lider (…) E é assim que tramo diversos arranjos: sinto que eles são a metade agônica de um silêncio luminoso que ainda virá.

A posição de advogado do Diabo, porém, não deve ser confundida com a de franco atirador. A produção de Thiago não se presta a ser uma metralhadora giratória, e Thiago recusa o papel de enfant terrible. O que não a torna mais confortável, não apenas para ele, mas para seus alvos principalmente. Como em Glauber, o fato de Thiago recusar-se à tentação de tomar partido amplifica a virulência de sua crítica. E a Marcha dos desacontecimentos não deixa de ser uma boa porta de entrada para compreendermos os procedimentos musicais de Thiago, e os caminhos tomados por sua música. E aí tenho de passar a um relato pessoal, que foi o que me permitiu entendê-los melhor. Conheci Thiago pessoalmente neste carnaval, não no Cordão do Boitatá, mas num semi-retiro no interior. Passei uma tarde em companhia dele, seu pai, músico amador de diversas e divertidas composições, e o violonista Luís Carlos Barbieri. Uma tarde agradável falando de música e fazendo um quadrado de violão (uma roda com quatro…), revezando-nos em canções próprias ou de autores que admiramos. Thiago então tocou, reproduzindo harmonias e arranjos em nível de detalhe reverente e delicado, composições de Tom Jobim (As praias desertas, Derradeira Primavera), Dorival Caymmi (Sargaço mar) e Edu Lobo (não lembro ao certo, talvez Choro Bandido), entre outras, que se inscrevem na linha principal da tradição da MPB. A demostração do conhecimento aprofundado de Thiago de algumas das composições mais arrojadas destes compositores, serviu então a meus ouvidos como uma ponte perfeitamente trafegável para suas próprias. E ficou claro para mim que, embora a uma audição apressada as melodias enviezadas de Thiago possam soar como uma negação do cânone, são justamente o contrário, o seu corolário, a demostração do quão longe ele pode chegar. Thiago não é um iconoclasta. O que ele faz é desenvolver o lado obscuro da tradição, mas com a intenção nítida de levá-la adiante. Num certo sentido, até um conservador. Porém, um conservador que leva corajosamente a tradição às últimas consequências, a ponto de não conservá-la – contradição que se resolve na prática. Assim também, a letra da Marcha dos desacontecimentos combate com fúria o relativismo pós-moderno – na medida em que este se torna um bom pretexto para o imobilismo, ou para a ação meramente mimética. Seguimos então para Terra em Transe. Glauber Rocha com a palavra:

Eu detestava todas as coisas apresentadas em Terra em Transe, filmei com certa repulsão. Lembro-me do que dizia ao montador: estou enojado porque não acho que haja um único plano bonito neste filme. Todos os planos são feios, porque se trata de pessoas prejudiciais, de uma paisagem podre, de um falso barroco. O roteiro me impedia de chegar à espécie de fascinação plástica que se encontra em Deus e o Diabo. Às vezes, pode ser que eu tenha tentado escapar a este ambiente, mas o perigo consistia em atribuir valores aos elementos alienados.

Terra em Transe é certamente um filme inovador. Caetano Veloso chega a afirmar no livro Verdade Tropical que se o tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas idéias, temos então de considerar como deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme Terra em transe. Porém, antes de cairmos na dicotomia inovador / conservador, notemos o que há em comum entre ele e boa parte da música de Thiago, a busca pelo lado obscuro, mesmo feio, de uma estética. Aliás, Caetano mesmo, falando da Tropicália mais tarde, afirma que, enquanto compositores tradicionais como Tom e Chico continuavam buscando uma arte do belo, ele, Gil, Tom Zé procuravam uma que fosse de alguma forma feia. A divisão apolíneo / dionisíaco pode soar dicotômica aqui – e não deixa de ser. Mas é possível pensar que Thiago, tendo seguido o caminho de Tom e Chico, tenha tomado mais tarde a bifurcação, permitindo esta decisão uma infinidade de possibilidades – inclusive o trânsito entre estes dois caminhos. Além disso, Terra em Transe é o marco da filmografia brasileira que é por sua capacidade de captar o zeitgeist de sua época. Há nele o retrato de uma busca identitária, mas uma busca ferozmente crítica. Nada, ninguém se salva. Nem o político reacionário e golpista, nem o populista de esquerda, nem o dono dos meios de comunicação, nem mesmo o intelectual/artista perdido em meio à barafunda de relações perigosas, imaginando-se capaz de influenciar o rumo dos acontecimentos, mas apenas servindo de joguete de forças maiores. Há muito em comum entre o teor crítico da Marcha dos Desacontecimentos e o de Terra em Transe; porém este, pela envergadura da obra, alcança um círculo muito mais vasto. E então chegamos finalmente à canção título do segundo álbum de Thiago e deste texto.

Por que lembrei quase imediatamente de Terra em transe ao ouvir De ponta a ponta, a canção? O título do filme é citado na letra, entre muitas outras obras, e já falarei desta sequência de citações. Mas antes fala Thiago, em entrevista ao Brasil Post.

Minha relação com o Brasil é conflituosa justamente porque, embora eu leve em conta que os ‘gerentes’ do Estado e os ‘engenheiros comportamentais’ da Mídia de massas vivem agenciando certos mitos culturais para que o país se mantenha docilmente administrável, sei que nem todos esses mitos são fabricados a partir do nada. Creio que existe uma latência, uma vida especificamente brasileira. Se sua manipulação rende dividendos políticos e econômicos para os agentes do poder, eis um excelente motivo pelo qual precisamos estar aptos a reconhecer onde a sociedade é ela mesma: que modos originais de convívio, trocas e valorações foram formando sua singularidade. Somente assim poderemos identificar as possíveis pretensões totalizadoras e manipuladoras do Estado, dos mega-agentes econômicos e da grande mídia. (e complementando o aforismo de Simone Weil que está no encarte do álbum, “Mas uma nação como tal não pode ser objeto de amor sobrenatural. Ela não tem alma. É um grande animal.”): “A caridade pode e deve amar, em todos os países, tudo o que é condição do desenvolvimento espiritual dos indivíduos”. É preciso que saibamos amar o que nesse país deve ser amado.

O que Thiago fala poderia ser aplicado com pouquíssimas adaptações a Terra em transe, inclusive a enumeração dos agentes do poder. De formas diversas, Terra em transe e De ponta a ponta são alegorias de Brasil. Se Glauber sintetiza em personalidades as grandes correntes de poder e suas relações, pintando um quadro expressionista, Thiago faz em sua canção uma espécie de inventário do imaginário brasileiro, via obras que ajudaram a forjá-lo. A lista de referências sutis em sua letra é significativa: Além da carta de Caminha no título e o filme de Glauber, Mário de Andrade em Macunaíma (Muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são.); Asa Branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira; Sei lá, Mangueira , de Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho; Canção do exílio, de Gonçalves Dias; Maracangalha, de Dorival Caymmi; Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; e possivelmente deixei passar outras. Mas a paisagem pintada por Thiago não tem apenas elementos na letra. Desde o pandeiro melancolicamente solitário que a introduz e encerra, num uso da percussão que é muito bem apontado por Pedro Cazes em seu magnífico ensaio sobre o álbum, substituindo a costumeira levada que facilmente identifica o estilo por arranjos de acompanhamento com uma dinâmica rítmica fragmentada, recortada, recusando estereótipos e idiossincrasias neste reconhecimento de terra estranha (uma cena do filme de Glauber traz o senador golpista, ao assumir o poder, aportando numa praia deserta. Avança com uma bandeira negra, acompanhado por um sacerdote e um homem com uma fantasia de carnaval em que logo reconhecemos uma estilização da corte portuguesa. É recebido por um índio, também estilizado, sob um cruzeiro. A cena é acompanhada por um canto de terreiro de candomblé, talvez sinalizando o elemento ainda ausente neste momento do descobrimento redivivo. Mas a canção de Thiago me soa como uma trilha sonora perfeita para esta cena). Assim também, ao iniciar a parte B, que faz as vezes de refrão, enquanto o acompanhamento rítmico passa a soar dobrado, a divisão da voz de Thiago, em estrofes que culminarão falando do inferno no céu ou do Grande Sertão, segue sempre propositalmente atrasada em relação a ele, numa sucessão de tempos acéfalos que chega ao desconfortável, como algo que avança aos trancos, que avança sempre na direção de um anticlímax, terminando numa cadência harmônica que se estende sem se resolver. Como em Glauber, não é possível classificar o discurso em direita e esquerda. É algo além. Glauber faz a crítica não sistemática e simultânea de todas as tendências políticas brasileiras ao retratá-las imbricadas e ao mesmo tempo costuradas numa espécie de imperativo cultural maior. Este retrato emaranhado é o que Thiago faz. Mas Thiago deixa para trás as disputas políticas para abarcar – ou talvez a palavra correta seja apenas vislumbrar – o fenômeno de formação e destruição contínua de um país – aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína, disse Caetano Veloso. O pandeiro que termina a canção, após a repetição do verso inicial, é o mesmo que iniciou? A praia deserta do início dá lugar a um cenário de devastação? E no entanto, De Ponta a ponta é, ao fim e ao cabo, uma canção de amor, que se recusa a um olhar distanciado, mas, ao contrário, aproxima-se desmesuradamente de seu objeto, até mostrar a quantidade de fios e ligações internas e antigas entre aparentes forças opostas, o retrato detalhado de um nó inextrincável – o que não deixa de trazer o tempero de uma certa desesperança. Porém, ai, porém, assim como a construção se torna ruína, da ruína pode surgir o imponderável. Ou, nas palavras de Glauber:

Terra em Transe é um filme sobre o que existe de grotesco, horroroso e pobre na América Latina. (…) Temos que afrontar nossa realidade com profunda dor, como um estudo da dor. Não existe nada de positivo na América Latina a não ser a dor, a miséria, isto é, o positivo é justamente o que se considera negativo. Porque é a partir daí que se pode construir uma civilização que tem um caminho enorme a seguir.

Ou nas palavras de Thiago, respondendo à pergunta Por que compor?

Compor para conduzir os impulsos inventivos por entre fantasmas, espelhos, antepassados. Assim talvez possamos esconjurar o desespero, que é a vitória do ‘sem sentido’.

E lembro imediata e novamente de Paulo Martins, personagem de Jardel Filho em Terra em transe, o jornalista e poeta que se arvora em tentar influenciar os destinos de seu país e perde-se na rede de intrigas que ajuda a tecer, abdicando da poesia por um fazer que o destrói. Thiago procura o outro caminho, tornando seu fazer artístico sua própria forma de atuar na construção do imaginário que reúne em si. Em seu álbum De ponta a ponta tudo é praia-palma, centralizado na canção que o nomina, realiza um ambicioso mas não exaustivo inventário do imaginário de um país que se constrói pela imagem de si mesmo, para se demolir ali adiante e recomeçar. Devastação, a canção seguinte, é aberta pelo violoncelo fazendo a frase inicial de Matita Perê, de Tom Jobim e Paulo Cesar Pinheiro, mas estendendo-a para o agudo, como que tomando-lhe o bastão. Passos seguintes no inventário que nunca termina.