Os dez mais

Dessas correntes de rede social: Poste seus 10 álbuns favoritos de todos os tempos; que de fato te impactaram e ainda estão na sua lista de audição, mesmo que ocasionalmente. Poste a capa, sem maiores explicações. Postei. Mas quem resiste a dar explicações? O resultado é esta lista bastante pessoal, de dez álbuns que mudaram minha escuta – não necessariamente os melhores nem os que mais escuto, mas aqueles dos quais saí diferente, para o que pode ter contribuído tanto sua qualidade e novidade quanto meu estado à época… De todo modo, continuam para mim extremamente interessantes, em alguns casos depois de décadas, o que quer dizer alguma coisa, e quem sabe servirão também a quem me lê. São eles então:

1- Os Saltimbancos – Chico Buarque. O disco para crianças mais inteligente já feito. Chico (na verdade os autores italianos, mas onde eles dizem mata Chico diz esfola) toma a fábula dos músicos de Bremen, da Floresta Negra alemã, e a põe no cenário da ditadura brasileira, sugerindo mesmo que os militares (o cão) voltem para a caserna (!). Criança, ouvi até furar, decorando as falas e até os pulos da aguulha. Ao longo dos anos, aprendi com ele a fazer segundas e terceiras leituras da obra de arte, desde direitos dos animais até a leitura marxista, de luta de classes. Suas vozes são as de Miucha, Nara Leão e de meio MPB-4, nitidamente se divertindo muito. E ainda ganhou uma espécie de continuação anos depois, na trilha sonora dos Saltimbancos Trapalhões, não por acaso o melhor filme do quarteto.

2- Us – Peter Gabriel. A síntese mais completa do tão desgastado termo world music. Para começar, um time de monstros (para ter uma ideia, Sinead O’Connor faz backing vocal em duas faixas, e o encarte traz uma lista de músicos de cair o queixo cujas gravações não foram aproveitadas na mixagem final) e um festival de texturas inéditas para mim. Peter Gabriel aproveita o aprendizado que teve fazendo a trilha sonora de A última tentação de Cristo, filmaço de Martin Scorcese, e traz para suas canções irrepreensíveis timbres orientais, ritmos africanos e tecnologia de gravação, tudo junto e misturado, sem embolar nem desandar. Mas mais importante é que tudo está a serviço da maravilhosa sonoridade final.

3- Brasil – João Gilberto. O resumo da música brasileira em meia hora. A presença deste álbum como que me desobrigou de colocar quase qualquer outra da chamada MPB, tamanha sua capacidade de sintetizar tanta coisa, está tudo aqui. Tom Zé, no seu livro Tropicalista lenta luta, afirma em um artigo que as canções cantadas por João dobram a esquina da história. E prossegue, comparando João com Einstein – ou mais apropriadamente, a Bossa-Nova à Relatividade:

Esquina onde o que parece um passo passa do ano-luz. Então, João não é nada. Só a esquina. Fiquem com todas as honras. A ele, a esquina. Ele é a gravidade que impõe à reta da luz um ângulo de 90 graus.

E em outro texto, arremata: João abre a porta da quarta dimens��o. Este álbum é um portal para esta dimensão, em que o Brasil da utopia se realiza e é feliz. Além do repertório fabuloso, da orquestração deliciosa, o João está na sua melhor forma. Mas o melhor é que o disco é uma aula, literalmente, e Caetano e Gil (e Bethânia numa faixa) são os alunos, repetindo obedientes as lições que João lhes passa. Inesquecível.

4- [Símbolo] – Prince. Último álbum antes dele trocar o nome pelo símbolo que é o nome do disco, sobreposição dos símbolos masculino e feminino, com uma trompa. Este não é seu álbum mais revolucionário, mas também não é do da maturidade de Musicology, mais homogêneo. Ao contrário, aqui Prince está endiabrado e a New Power Generation Band está em ponto de bala. Ele atira para todo lado e não erra, e na contracapa as canções são chamadas de jams. Tem desde hits radiofônicos até suítes amalucadas, com dois rappers incorporados à banda. E como se não bastasse, é uma aula de orquestração. Até canções singelas de amor terminam com solos de guitarra sobre metais furiosos – e funciona. Sua auto elogio está à toda: Meu nome é Prince, primeiro e único (…) No início, Deus fez o mar / Mas no sétimo dia ele me fez / Ele estava tentando descansar quando ouviu um som / Parecia uma guitarra (…) Deus estava preocupado, até que me ouviu cantar. Entendeu?

5- Õ Blesq Blom – Titãs. Sou legiomaníaco e quase escalei o I ou o V aqui. Mas não dá pra negar que os Titãs foram o que de melhor o rock brasileiro produziu. Hoje são uma sombra do que foram, mas conseguiram levar para a música popular e jovem algumas das vertentes artísticas contemporâneas, sem perder a pegada nem o público. Assisti o show do Rock in Rio II no Maracanã, logo após o lançamento deste álbum, e a comunhão com a platéia era bonita de se ver. Este disco tem de tudo que os Titãs fizeram de melhor: tem poesia concreta, crítica social não óbvia, metalinguagem, nonsense, e é inesperado a cada faixa. Não é um disco de rock, é um disco que deixa o rock para trás.

6- Remain in Ligth – Talking Heads. O encontro entre o David Byrne e o Brian Eno, e deveria ser suficiente dizer isso. Na verdade o terceiro encontro, já que é o terceiro álbum da banda produzido por ele. Mas este é fora do comum, um encontro perfeito também entre forma e conteúdo. Nunca as canções de David, obra primas do estranhamento do mundo (esta não é a minha bela casa. Esta não é a minha bela esposa!), fizeram tanto sentido junto às tessituras sonoras de teclados e levadas inesperadas (haviam conhecido Fela Kuti pouco antes). É um disco para desreconhecer a realidade. Os timbres deste álbum são um mistério para mim até hoje. Ouço, reouço e não consigo decifrar. Que maravilha!

7- Clube da Esquina – Milton Nascimento e Lô Borges. Falta um disco que simbolize a Tropicália nesta lista, por não haver nenhum específico que mudou minha audição (poderia ser Estrangeiro, que talvez fosse o décimo primeiro dela). Mas na falta dele, este aqui passa a ter uma dupla função, por ser aquele que traz o rock para dentro da música brasileira de uma forma ainda mais orgânica que os baianos (e dando a deixa juntamente com eles para os nordestinos logo após). Fora isso, uma coleção de canções atemporais, incluindo a que mais me meteu medo a vida toda (vide abaixo), e ouvir os amigos se revezando nos instrumentos, Beto Guedes no baixo, na guitarra, no bandolim, os outros outro tanto, é também algo para abrir o ouvido. Esqueça o tanto que este disco já tocou e escute-o novamente sem pé atrás. Vai se surpreender.

8- Álbum Branco – Beatles. Sargento Pimenta era minha primeira opção, um tanto óbvia: qual ouvido ele não arrombou? O Branco o venceu por uma cabeça, ou melhor, faixa: Revolution 9 me mostrou até onde pode ir a música popular muito além do que eu nunca imaginara. Mas é claro que não apenas de anticanções vive-se. Fora isso, é um disco em que a maior banda do mundo se leva pouco a sério, o que é genial. “Todo mundo tem algo a esconder, menos eu e meu macaco!” É preciso coragem para dizer isso, a coragem de não ser profundo. E é preciso ter subido muito alto para se dar o direito de não se levar a sério assim, e justamente por isso fazer uma música que realmente diz coisas novas, sem se preocupar em ser revolucionário. Você diz que quer uma revolução / Bem cê sabe, adoraríamos mudar… sua cabeça.

9- The Red Shoes – Kate Bush. OK Computer, do Radiohead, passou perto aqui, assim como Bjork. Mas a coesão alada à inventividade e a variação entre suavidade e potência da Kate são imbatíveis. Este álbum veio depois de um longo hiato e dá pra sentir a gana dela de voltar à ativa. O repertório flui tão redondo que participações do Eric Clapton e do Prince são como visitas de amigos (nada de featuring). As experimentações de álbuns anteriores aqui estão domadas e inteiramente a serviço – o que não as deixa de lado, antes pode potencializá-las. A mulher é uma fada mas também sabe ser uma bruxa quando preciso, e como sabe contar uma história.

10- Chico Buarque (1984) – Chico Buarque. A escolha mais pessoal da lista, talvez um anticlimax para o leitor que esperasse algo muito arrojado como chave de ouro. E realmente não é um disco particularmente inovador, especialmente sendo Chico Buarque antes um mestre de ofício, dos que perfeccionam a forma, que um iconoclasta. Acontece que este é o primeiro LP que comprei, com 13 anos, e nele descobri um mundo, desde os arranjos que nunca ouvira com aquela atenção (algo de maturação dos neurônios na adolescência talvez…), como também pelas participações de outros músicos e cantores, me apresentando pistas que fui seguindo – Pablo Milanés, Francis Hime, Dominguinhos, e perceber as diferenças entre o violão de Toninho Horta e o de João Bosco… e como se não bastasse, em plena redemocratização, canções como Pelas Tabelas e a imortal Vai Passar – para não falar de Brejo da Cruz – foram um ensino médio de política para mim, onde os Saltimbancos tinham sido o fundamental. Foi o álbum a partir de que descobri o mundo. Podia ter sido outro, calhou de eu ouvir JB AM e passar na frente das Lojas Americanas, calhou de ter 13 anos, calhou de ser brasileiro… mas veja se não foi um bom começo.

Um dia na vida, uma vez na vida – Parte 1

Como é difícil falar dos Beatles, de quem tudo parece já ter sido dito! Um amigo costumava defender a tese de que todos os estilos do rock e mesmo de fora dele foram de algum modo estabelecidos pelos Beatles, desde o heavy metal com Helter Skelter até a bossa-nova com… não lembro mais que canção ele dizia que era precursora da bossa, mas de qualquer modo era chiste.

Mas se parece que já se falou tudo dos Beatles, por outro lado eles sempre voltam, e que bom que voltam, porque poucos na história da música partiram de tão pouco e foram tão longe. Me peguei outro dia reouvindo um exemplo que particularmente mostra o quão longe se pode ir na formatação de uma obra de arte tremendamente complexa a partir de uma estrutura tão simples quanto uma canção.

A day in the life

Certo, A day in the life não é uma canção qualquer. É a canção de encerramento daquele que é considerado o álbum mais importante de todos os tempos, Sargent Peppers Lonely Hearts Club Band, em que os Beatles levaram seu experimentalismo além do limites imaginados para a época, aproximando-se da música indiana, da música de vanguarda, flertando com a metalinguagem ao pensarem no álbum como sendo gravado por outra banda etc. Mas não deixa de ser surpreendente para mim que, em seu grand finale, eles tenham escolhido falar sobre nada mais que a vida comum. E ao fazê-lo, conseguem tornar esta vida comum absolutamente insuportável, e conseguem também o grand finale dos grand finales. Sgt. Peppers pode até não ser o melhor álbum da história, mas seu final sem dúvida é o mais impactante de todos os tempos.

As histórias de criação de cada canção dos Beatles são cantadas e decantadas. Esta é formada pelo encontro de duas meias canções improváveis, de dois parceiros que já conheciam bem os caminhos um do outro: John Lennon tinha o início e o fim de uma; Paul McCartney, o meio de outra, ambas incompletas e em tons diferentes. Encaixadas uma na outra, fizeram o contraste perfeito entre a irrealidade cotidiana e a inconsciência trágica desta irrealidade.

Porque é disso que trata A day in the life, fundamentalmente. Que se inicia muito despretensiosa, e esta é uma de suas armas – não se desconfia onde ela pode parar. A formação inicial – baixo, piano, guitarra e maracas na percussão – é acrescida da bateria de Ringo Starr na segunda estrofe, e a bateria é um dos elementos principais do arranjo. Praticamente todo o acompanhamento de Ringo consiste em uma série de viradas de bateria que ameaçam explodir, tornando-se furiosos, mas que acabam sempre melancolicamente numa batida de pratos que devolve tudo ao marasmo. Ao fazer isso repetidas vezes, há um acúmulo de tensão, uma expectativa de que em algum momento a canção vire o jogo, que jogue para o alto a frustação do dia-a-dia, da leitura dos jornais. A história cantada por Lennon nas primeira estrofes é exemplar: um homem ganha na loteria, e pouco tempo depois morre atropelado. I can get no satisfaction, cantaria Mick Jagger.

A letra da canção, embora feita de partes separadas de cada parceiro, tem ao menos um recurso de repetição em comum. Na parte de John, por duas vezes a crowd of people, uma multidão atua: primeiro ficando parada, como que hipnotizada pela tragédia do atropelamento; depois, indo embora em bando do filme que o personagem de John permanece assistindo. Em ambos os casos, reações algo automáticas, de manada, como que inconscientes. Já na segunda parte, o personagem de Paul por duas vezes encontra seu caminho (a letra diz, na primeira pessoa, found my way), primeiro descendo as escadas de casa, depois subindo as escadas do ônibus, num movimento de sobre e desce que também é circular (pois fatalmente se repetirá ao contrário no fim do dia) e que, ao contrário do significado literal da expressão, não parece levar a lugar nenhum.

As relações entre as duas partes da letra vão além: o personagem de John vê o mundo através da leitura de jornais, livros e filmes. Ao final, ele é despertado na frase I’d love to turn you on. Um despertador dá a deixa para então o personagem de Paul acordar e imergir em seu cotidiano que, de tão real, parece não ter nenhum significado. E ao entrar no ônibus e sentar, subitamente ele mergulha em um devaneio (I went into a dream), quando o personagem de John então retorna, fica claro que nenhuma das duas situações é mais real ou significativa que a outra, ambas retratam uma vida vazia de sentido.

Mas afora estes sutis jogos de espelhos, que por si já evidenciam o grau de elaboração de A day in the life , há o que a diferencia definitivamente, levando-a a assumir para si o caráter trágico da morte sem sentido narrada na primeira estrofe, e que no entanto absolutamente não afeta o leitor (pois as notícias dos jornais em geral não nos afetam – uma das muitas irrealidades cotidianas desfiladas na canção): as três intervenções de uma orquestra de 40 membros, que foi multiplicada em estúdio, com os difíceis recursos de 1967, até chegar a 160 integrantes. Uma orquestra que não toca durante a canção propriamente dita, o material original de John e Paul, mas apenas faz pontes entre as partes, criando as passagens entre sonho e realidade, mas sem definir qual é qual, ao contrário, como que convertendo um na outra e vice-versa.

A rigor, são apenas duas intervenções orquestrais, pois a que encerra a canção é a mesma que passou da primeira à segunda parte, cortada e colada, como aponta o crítico Alan W. Pollack neste estudo minucioso da gravação (em inglês). No entanto, estas duas/três participações são o que dá aos dois relatos cotidianos uma gigantesca dimensão trágica. O crescendo da orquestra se inicia em tom de sol maior (que o Alan W. Pollack aponta ter muito mais o espírito de um mi menor, pelo aspecto de desânimo expresso) e caminha para mi maior, tom da segunda parte. Mas o faz de forma propositalmente desorganizada, o que provoca um ambiente de caos absoluto, ao mesmo tempo que uma contagem subjacente de 1 a 20 contribui para aumentar gradativamente a tensão, à medida que as notas da orquestra se tornam mais e mais agudas. O impressionante é que este tumulto sempre maior surge a partir exatamente do cotidiano banal narrado por John. Como se a falta de sentido da realidade por um momento ousasse dizer seu nome, o terremoto subterrâneo viesse à tona, as máscaras caíssem revelando o desespero sob as faces calmas.

A massa orquestral subita e inesperadamente torna-se uníssono na nota mi, um despertador toca – havia sido posto por John na gravação apenas para guiar a entrada da voz de Paul na segunda parte, mas foi mantido por se adequar à perfeição. Todo o desespero era irreal, era pesadelo. “Levanto, pulo da cama, passo uma escova na cabeça”. A realidade chama. Mas, ao se acomodar no ônibus, o transe volta, o sonho volta a invadir a realidade. O tema orquestral agora é mais convencional, de notas reconhecíveis, mas que bastam para marcar sua presença e o retorno à primeira parte.

E então, talvez o final mais famoso da história da música popular. Após mais uma estrofe de John, a orquestra volta exatamente igual à primeira vez, mas agora o terror parece maior, como o retorno de um pesadelo recorrente é mais apavorante do que da primeira vez, até mesmo pela perspectiva de que ele ele passe a retornar indefinidamente. Novo chamado de John para que acordemos, nova espiral ascendente desgovernada, e desta vez a nota mi final não é emendada no piano do acompanhamento da segunda parte, que atenuava em parte o choque, amortecia a queda. Desta vez, após o fortíssimo, apenas o silêncio. Um segundo e meio de suspensão como uma eternidade. Como alguém que tomou distância, correu até chegar ao máximo da velocidade, e pulou. Um segundo de paz.

E então, o choque. Três pianos tocados a quatro mãos – John, Paul, Ringo e Mal Evans(Road manager e amigo dos Beatles) fazem um tremendo acorde de mi maior que impacta como um piano caindo do décimo andar, e ressoa por quase um interminável minuto. Mais potente que o som de 160 músicos, pondo fim ao absurdo da morte do vencedor da loteria, à absurda contagem de centenas de buracos na estrada, às notícias de jornais e filmes sem nenhum significado, ao absurdo e eterno vai e vem escada acima / escada abaixo. Talvez a morte, seguramente algo maior do que a vida. Talvez apenas a própria vida, em pessoa, real, afinal.

Depois do próprio fim, dois adendos, que não entraram em todas as edições do álbum. O último deles, uma montagem de sons em looping da recepção que foi oferecida pelos Beatles no dia da gravação da orquestra para amigos. E um apito para cachorros, um som em frequência inaudível por seres humanos, tocado por John. Como que para ter certeza de que alguém ao menos iria despertar.

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O Sobre a Canção está fazendo três anos de vida. O tempo tem sido mais curto e os artigos mais longos. Por questões pessoais, não tenho conseguido estar aqui tanto quanto gostaria, e com o tempo a gente vai elevando nosso padrão de exigência e só quer publicar algo se realmente tem algo interessante para dizer, e dito como gostaríamos que fosse realmente dito. Não falta assunto, a ponto de este artigo ter acabado dividido em dois. A segunda parte, sobre a canção Once in a lifetime, dos Talking Heads, será o próximo artigo. Só quero reafirmar que o prazer em escrever aqui não diminuiu nem um átomo neste tempo, e que não falta assunto. Obrigado pela presença de todos os que passaram por aqui, e vamos em frente.

E de brinde ao artigo e presente de aniversário, a versão avassaladora de Neil Young para A day in the life, com uma rara compreensão do significado terrível e grandioso desta canção.

Duas despedidas e um campo de morangos

Dia 11 de outubro de 1996 morreu meu irmão mais velho. Meu e de toda uma geração. A Legião Urbana seguramente não foi a melhor banda de rock que já existiu no Brasil, mas foi a que conseguiu uma sintonia mais forte com seu público.

Caetano cantou na trilha do filme Feliz Ano Velho, baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva:

O sonho já tinha acabado quando eu vim
e cinzas do sonho desabam sobre mim
Mil sonhos já foram sonhados quando nós
Perguntamos ao passado – estamos sós?

(Conforme me corrigiram nos comentários, a canção Falou, Amizade é da trilha do Filme Dedé Mamata, do mesmo ano de Feliz Ano Velho. Parte da ligação que sustenta a argumentação a seguir se perdeu, portanto. Mas são de qualquer forma dois filmes que retratam uma geração, o que mantém válido o raciocínio, já que Dedé Mamata fala sobre a alienação durante a época da ditadura militar.)

O livro de Marcelo Rubens Paiva, grande sucesso editorial, tem uma leitura histórica dupla. Marcelo, filho do deputado Rubens Paiva, assassinado pela ditadura brasileira, conta a sua própria experiência pessoal da tetraplegia causada por um acidente ao mergulhar num lago. A história pessoal de Marcelo é a de um duplo trauma que se manifesta fisicamente quase como uma metáfora da falta de liberdade da geração dos pais e do vazio em que mergulharam os filhos desta situação brasileira, de uma redemocratização difícil e uma retomada de liberdade cheia de desconfianças, em que os traumas não se resolviam, como ainda hoje não se resolvem. É esta juventude que Caetano retrata na canção Falou, amizade, de onde saíram estes versos, e da qual Renato se tornou, um bocado a contragosto às vezes, uma espécie de porta-voz.

Em 1996, foi lançado o último álbum da Legião, A tempestade ou O livro dos dias, inicialmente um álbum duplo, mas lançado como simples (as restantes faixas gravadas, acrescidas de algumas gravações esparsas, viriam a público no álbum póstumo Uma outra estação). Um álbum denso, em que as letras foram tratadas como poemas em um encarte em formato de livro, como notou o jornalista Artur Dapieve à época. No sítio da banda se lê:

Não era um disco fácil. Era mais rock do que os anteriores, mas as músicas eram, em sua maioria, lentas, carregadas pelos climas criados nos longos acordes sustentados nos teclados e sintetizadores de Carlos Trilha.

E em meio a esta desolação, Renato cantou uma canção que é ao mesmo tempo uma volta à sua juventude e uma despedida.

Dezesseis – Legião Urbana

Dezesseis é uma canção que conta uma história, com um formato bastante peculiar: duas partes bem diferentes entre si, AB, sem volta ao começo. Na primeira, acontece a apresentação do personagem Johnny, o João Roberto, e é montado um cenário de crescente tensão, calcado num riff muito marcado e numa melodia contida à força numa tessitura média. Já na segunda parte, a tensão é liberada no momento em que o racha de automóveis que é o centro da narrativa se inicia e termina quase imediatamente (e as guitarras fazem as vezes do ronco dos motores), a voz de Renato se lança para o agudo e passa a escandir as sílabas para relatar os acontecimentos posteriores, já misturados com lembranças não tão objetivas, colocando a narrativa num plano de incerteza que é o da formação das lendas.

Uma das questões a ser avaliada em uma canção é o “encaixe” entre melodia e letra. Um desafio para o letrista é colocar uma sílaba em cada nota da canção, de forma a evitar sobras, que levam a se ter que cantas duas sílabas no tempo de uma, ou o contrário, em que a mesma sílaba serve em duas ou mais notas, em melisma. De forma geral, o melisma é usado com economia, justamente por poder dar a impressão de que foi uma solução improvisada para completar o espaço da melodia. Com Renato não era assim, ele usava e abusava do melisma, como parte da elaboração de suas canções, usando as notas alongadas como forma de sublinhar trechos ou aumentar a emotividade. Em Dezesseis, Renato usa os melismas principalmente em dois momentos específicos. Nos versos

Ele só tinha dezesseis
Que isso sirva de aviso pra vocês

em que fica claro que o Johnny idolatrado era apenas um adolescente, e no encerramento,

E o que dizem é que foi tudo por causa
de um coração partido
Um coração

exatamente quando a identificação entre os dois se torna maior.

Não tenho idéia se o João Roberto de Desesseis existiu de alguma forma, ou se a história saiu toda da cabeça do Renato. Não faz diferença. Ainda assim, trata-se de um acerto de contas muito pessoal. Renato revisita fantasmas da sua própria juventude e coloca no personagem da canção um bocado de sua própria falta de adaptação, ao mesmo tempo que o coloca bem à vontade com uma popularidade que para o próprio Renato foi muitas vezes sinônimo de incompreensão. Hipóteses e análises psicológicas à parte, Renato é e não é Johnny. Mas a relação espelhada entre eles é por sua vez refletida na relação de identificação entre o público jovem da Legião e o próprio Renato. Johnny e Renato, por trás de suas grandes popularidades, lutam contra uma tristeza que tem igualmente uma origem dupla, que em Dezesseis não fica explicitada, mas que é tratada em outras canções de Renato: é tão estranho, os bons morrem antes, ou somos pássaro novo longe do ninho. E particularmente em Aloha, do mesmo álbum de Dezesseis:

Será que ninguém vê o caos em que vivemos
Os jovens são tão jovens e fica tudo por isso mesmo
(…)
A juventude está sozinha, não há ninguém para ajudar
A explicar por que é que o mundo é este desastre que aí está

Mas há um momento em que toda esta tristeza parece encontrar uma forma de redenção, logo antes do fim da canção.

E na saída da aula foi estranho e bonito
Todo o mundo cantando baixinho:
Strawberry Fields Forever

A citação de Strawberry fields forever em Desesseis tem um conteúdo de metalinguagem bastante intrincado. Afinal, o verso do refrão da canção dos Beatles é não é exatamente cantado por Renato, o narrador, mas sim por Renato assumindo a voz dos colegas de João Roberto: uma canção dentro da canção, como alguém que assiste um filme dentro de outro filme. Há mesmo uma relação interna da história que explica a citação: Johnny sabia tudo da Janis, do Led Zeppelin, dos Beatles e dos Rolling Stones. Ou seja, a canção devia lembrar Johnny pelo fato de ela já a ter tocado ao violão para os colegas.

Mas há algo além disso. Strawberry fields representa o antídoto, o antípoda, a antítese da tragédia – o idílio. Cantada pelos amigos de Johnny, representa a tentativa de sublimar e superar a perda, numa reação que é parte fuga (viver á fácil de olhos fechados, confundindo tudo o que vê), parte enfrentamento. Cantada por Renato, é a continuação deste esforço, agora aplicado à própria situação de doença e desencanto. E cantado de fora para dentro da narrativa de Dezesseis (no sentido de ser uma composição de Renato numa história inventada), torna idílica a história que é contada; e cantada de dentro para fora (pelos colegas de Johnny na lembrança, falsa ou verdadeira, de Renato), ilumina de volta a vida de quem a canta e quem a ouve.

O fim de Dezesseis é levado ao violão por um coro formado pelos próprios integrantes da Legião, como uma roda em volta da fogueira em que Johnny tocava. Nessa hora, outro caminho metalingúistico é percorrido: a narrativa assume a forma do fato narrado. Tanto Renato, Dado e Bonfá quanto todos os ouvintes se juntam a esta roda. Renato finalmente se despedia de Johnny, nós fazíamos o mesmo com Renato, sem nos darmos conta – ele morreria menos de dois meses depois do lançamento do álbum. O jogo de espelhos se desfaz: somos todos, ainda que na lembrança, a grande geração perdida, os meninos e meninas de que fala a letra da desesperada Natália, que abre este álbum, procurando seu lugar na história e na própria vida como protagonista, como Renato canta em Soul Parsifal: Ninguém vai me dizer o que sentir / E eu vou cantar uma canção pra mim.

P.S. Toda a discografia da Legião Urbana pode ser ouvida aqui em seu sítio.

O Apaulíneo e o Johnisíaco

Terminado o rescaldo do show do Paul McCartney, achei este artigo de Marcelo O. Dantas publicado na revista Piauí há tempos, que tenta decifrar o mistério da interação desta que é a maior dupla de compositores da história da canção popular. É um pouco longo, mas vale a leitura até o fim. Aliás, só o trocadilho nietzscheano já valeria o artigo…

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Ainda outro dia, um amigo me mandou um e-mail contando que havia presenciado uma cena saída diretamente do seriado Túnel do tempo. Encostados no balcão do BB Lanches, no Rio, dois garotos, de no máximo 13 anos, conversavam assim: “Você sabe por que eles fizeram Taxman? Porque na Inglaterra tinha imposto pacas. Eles fizeram uma música de protesto!”. Ao que o outro aquiesceu, acrescentando mais um caminhão de informações sobre o hino antitributário do álbum Revolver.

Meu amigo ficou estupefato. Era como se nós dois estivéssemos ali, 30 anos antes, tomando um suco depois do colégio. Nessas três décadas, o mundo virou do avesso. Acabou a guerra fria, o regime militar, a paz no Leblon. Sérgio Dourado faliu, Star Wars cansou, Joey Ramone morreu. Foi-se tudo e mais um pouco. Mas os garotos ainda estão lá, falando dos Beatles.

Alguns historiadores do rock atribuem o fenômeno às vantagens do pioneirismo – os Beatles foram as pessoas certas no momento certo. Tinham o talento, o visual e a ousadia necessários para ocupar o vazio deixado pelo esgotamento criativo de Elvis, Chuck Berry, Little Richard e companhia. Mal despontaram para o estrelato, entenderam a importância de se posicionarem na vanguarda de uma década revolucionária. E foram assim pavimentando o caminho para a explosão internacional do rock, a difusão da contracultura e a grande revolução musical e comportamental dos anos 60.

Embora sensato, o argumento se refere apenas ao passado. Não explica nada sobre a permanência dos Beatles. Nenhum moleque vai sair da sua casa e ir até o camelô da esquina comprar um CD por conta do papel histórico de uma banda na formação do mundo moderno. Além do quê, sejamos objetivos: os anos 60 terminaram faz tempo. Permanece então a pergunta: como pode alguém se apaixonar pelos cabeludos de Liverpool em meio ao cinismo e à desesperança do século XXI? Como pode um jovem saudável contrair a febre da beatlemania em plena era do hip-hop e da cultura digital? O palpite é simples. A música – tudo se resume à música.

Os quatro nunca foram instrumentistas virtuosos. Ninguém encontrará um solo de 15 minutos num disco dos Beatles. Mas eles tocavam com convicção, com gosto. Num estilo próprio, inigualável. Utilizando até a última gota os recursos técnicos a seu dispor. Quando necessário, sabiam acolher a contribuição de amigos brilhantes. E, como num passe de mágica, o convidado era incorporado ao som da banda, tornando-se o quinto elemento: Clapton arrancando gemidos da sua Les Paul em While My Guitar Gently Weeps, Billy Preston incendiando Get Back com seus teclados endiabrados.

Outra virtude: eles cantavam bem. Talvez sem o virtuosismo de Ray Charles, Sam Cooke ou Aretha Franklin, mas com fabuloso esmero. Cantar não é apenas uma questão de extensão vocal e técnica apurada. É também possuir um bom timbre, e usar a voz com caráter, potência, precisão. Quem pode resistir ao suíngue vigoroso de Lennon em Twist and Shout ou ao charme nostálgico de McCartney em When I’m Sixty-Four? Quem consegue ser mais expressivo que John em I’m So Tired ou mais irado que Paul em Helter Skelter? Mesmo George e Ringo tinham seus momentos. A performance do homem dos anéis em Boys merece figurar em qualquer antologia de rockabilly. Os vocais de Something fizeram a cabeça até do exigente Sinatra.

Eles eram também mestres da harmonia. Sabiam como poucos combinar suas vozes, fazer arranjos, colorir as canções com impecáveis duetos e corinhos. De If I Fell a Because, John, Paul e George fizeram o diabo. Durante seus anos de formação, os três beberam na melhor escola da música negra americana, ouvindo muito rythm’n’blues e soul music. Eles se ligavam mais no som de gravadoras como a Motown, a Stax-Volt e a Atlantic do que propriamente no blues raiz da Chess Records, porém ainda assim curtiram, aprenderam e internalizaram uma música negra legítima. Cheia de balanço, alegre, contagiante. Que os influenciou até o final – especialmente ao blackman McCartney. Let It Be não é outra coisa senão um poderoso hino gospel cantado por um pastor de alma retinta.

Eles tocavam tudo, ouviam tudo. Sabiam aprender e recriar. Poucos grupos, em toda a história do rock, conseguiram ser uma banda cover tão boa como os Beatles. Os quatro tocavam Please Mr. Postman, You Really Got a Hold on Me, Roll over Beethoven, Money (That’s What I Want), Rock and Roll Music ou Kansas City vários furos acima dos originais. Coisa que nenhum dos demais integrantes da invasão inglesa jamais chegou a fazer. Os Stones eram intérpretes sofríveis de Muddy Waters e Howlin’ Wolf. Os Beatles cantavam Smokey Robinson melhor que o próprio.

Eram também ousados, destemidos. Capazes como ninguém de desbravar novas áreas para o avanço da música popular. She Loves You, And I Love Her, Yesterday, Norwegian Wood, Day Tripper, Paperback Writer, Strawberry Fields Forever, Lucy In The Sky With Diamonds, A Day In The Life, All You Need Is Love, Lady Madonna e Here Comes The Sun alargaram o universo de possibilidades da música pop, trazendo novas formas de tocar, novos estilos, novas técnicas de gravação, novas estruturas de composição.

Atribuir tanta inventividade apenas ao produtor George Martin (como o fazem alguns críticos) é uma tolice que só pode ser cometida por quem nunca ouviu Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band – com Peter Frampton e os Bee Gees. Foi o maestro quem produziu o disco. E a genialidade nem passou por perto.

O amadurecimento musical da banda pode corresponder, facilmente, ao amadurecimento natural de qualquer pessoa que vai se descobrindo um amante da música. E, por isso, atrai, conquista, cria vínculos. Além do que, trata-se de um amadurecimento generoso, inclusivo, ponderado, que jamais pretendeu renegar a simplicidade dos primeiros anos. Os Beatles adicionaram novas veredas a sua trilha inicial, sempre com a convicção de que o simples e o complexo são duas formas distintas de se chegar à beleza. Penny Lane nunca será melhor que I Saw Her Standing There. Apenas diferente. Uma forma distinta de se chegar à perfeição.

Adiversidade e a amplitude do som dos Beatles criam várias portas de entrada para quem está começando a se interessar por música. Conheço pessoas que se viram atraídas pelo balanço juvenil de I Should Have Known Better, pela viagem indiana de Within You and Without You, pela elegância clássica de Eleanor Rigby, pela lucidez enérgica de Revolution, pelo sabor folk de Blackbird e pela fantasia sing-along de Yellow Submarine. Cada um chegou ao quarteto por uma via diferente; e, a seu modo, todos acabaram por fazer o circuito completo.

Os Beatles eram um mecanismo de criação. Sempre olhando para a frente, sem jamais se escorar no êxito formulaico. A força propulsora desse mecanismo era (eis a minha tese central) a interação dialética de Lennon & McCartney. Uso a palavra sem pedantismo, em seu sentido mais amplo. Dialética é diálogo, embate, discussão. Mas também o jogo permanente e sem descanso. Adição e contradição; unidade e multiplicidade; identidade e diferença. Movimento e síntese. Dois compositores igualmente geniais, mas com inclinações distintas, por vezes opostas. Dois líderes cheios de idéias e talento. Um levando o outro a permanentemente se superar. Ambos avançando: ora juntos, ora separados. Nenhum permitindo ao outro se acomodar. Nenhum aceitando ser deixado para trás.

Em geral, as grandes parcerias musicais são compostas por um melodista e um letrista, que unem forças, formando uma perfeita unidade: Rodgers e Hart, George e Ira Gershwin, Tom e Vinícius, Lieber e Stoller, Page e Plant, Keith Richards e Mick Jagger, Elton John e Bernie Taupin. No caso de Lennon & McCartney tudo muda. Ambos eram compositores completos, autônomos. Mas entenderam, desde cedo, a importância de buscarem um ao outro. Muitas duplas de compositores somam. John e Paul multiplicam.

As narrativas mais comuns da trajetória dos Beatles levam a crer que a parceria Lennon & McCartney existiu apenas na fase inicial do conjunto, tornando-se mais tarde mera convenção. Trata-se de um engano. Eles foram parceiros até o final. Mesmo quando escreviam separados, John e Paul o faziam um para o outro. Pensavam, sentiam e criavam obcecados com a presença (ou ausência) do parceiro e rival.

Sem a contribuição decisiva de McCartney, jamais teríamos algumas das mais inspiradas canções de Lennon. Deve-se a Paul a abertura de Strawberry Fields Forever, o arranjo grandioso de All You Need Is Love, os efeitos de tape de Tomorrow Never Knows, a alucinação de I Am The Walrus, o ambiente sobrenatural de Come Together. Lennon era um purista musical, apegado a suas raízes, calcadas no rock’n’roll, rythym’n’blues e country & western. Quem embarcou de cabeça na vanguarda musical dos anos 60, quem verdadeiramente viajou na explosão sonora lisérgica foi Paul McCartney, um perfeccionista dado a experimentos, colagens, finais falsos, mudanças tonais e delírios orquestrais.

Em contrapartida, sem o olhar crítico de Lennon, sem sua verve e sua wit britânica, os mais conhecidos standards de McCartney teriam sofrido perdas poéticas. A letra reflexiva de Yesterday (inicialmente intitulada “Scrambled Eggs” – ovos mexidos, quando Macca tinha na cabeça apenas uma melodia sem palavras) foi uma clara resposta de Paul ao amadurecimento da poesia de John em I’m A Loser, Help! e You’ve Got To Hide Your Love Away. Lennon emprestava às baladas e canções pop de McCartney uma lucidez e uma sobriedade fundamentais. Ele sabia reprimir o banal e fomentar o sublime. Foi sentando-se ao lado do companheiro que Paul ganhou confiança para manter na íntegra os versos mais ousados de The Fool On The Hill e Hey Jude. Duas letras de primeira grandeza.

Em algumas canções, um ligeiro toque de Lennon fazia a diferença entre o excelente e o genial. A melhor estrofe de We Can Work It Out é de John: “Life is very short / and there’s no time / for fussing and fighting my friend”. Sem a intervenção cirúrgica do autor de Being For The Benefit of Mr. Kite e Happiness Is A Warm Gun, tampouco haveria em Eleanor Rigby a estranheza surrealista dos versos: “Waits at the window / wearing the face / that she keeps in the jar by the door /Who is it for?”. Do mesmo modo, a entrada em cena de John – na voz dos pais desesperados – é indispensável a She’s Leaving Home, talvez a mais comovente e perene canção sobre o conflito de gerações e a juventude drop-out. Canção que inspirou o nosso Rubem Fonseca a escrever a obraprima Lúcia McCartney.

A sombra ameaçadora de Lennon fornecia ainda combustível para os ímpetos rockeiros de seu parceiro e rival. A visionária Back In The USSR traz o humor irônico de John estampado no rosto. Canções como I’m Down e Why Don’t We Do It In The Road foram feitas por Paul para mostrar a John que conseguia ser ainda mais primitivo que ele. E Get Back – o melhor rocker de toda a obra dos Beatles – nasceu da (compreensível) irritação de Paul com Yoko e do seu desejo de deixar bem claro quem continuava a ser o dono do pedaço.

Mas como a dialética é uma via de mão dupla, também o lado suave de Lennon se nutria da presença benfazeja de Paul. A belíssima melodia de In My Life é puro McCartney e gemas preciosas como Girl, Because ou Julia têm as impressões digitais do parceiro por todos os lados, ainda que tenham sido escritas na mais monástica solidão.

Nietzsche atribui o caráter dionisíaco aos nossos impulsos rebeldes, subjetivos, irracionais, apaixonados, lunares; forças do transe e da intoxicação, que questionam e subvertem a ordem vigente. Em contrapartida, designa como apolíneas as nossas tendências ordenadoras, objetivas, racionais, serenas, solares; forças do sonho e da profecia, que promovem e aprimoram o ordenamento do mundo. Ao se unirem, tais forças teriam criado, a seu ver, a mais nobre forma de arte que jamais existiu.

Como criadores, tanto o metódico Paul McCartney quanto o irrequieto John Lennon expressavam à perfeição a dualidade proposta por Nietzsche, que ouso traduzir pelos termos Apaulíneo e Johnisíaco. Lennon punha o mundo abaixo; McCartney construía novos monumentos. Lennon abria mentes; McCartney aquecia corações. Lennon trazia vigor e energia; McCartney impunha senso estético e coesão. Não raro, os papéis se alternavam, se complementavam, se fundiam.

Quando os Beatles se separaram, essa magia se rompeu. John e Paul se tornaram compositores com altos e baixos; intérpretes com falhas às vezes evidentes. Fizeram coisas boas. Deram material para compilações de peso. Mas raramente se aproximaram da perfeição alcançada pelo quarteto. Sem a presença instigante de Lennon, Paul começou a patinar em letras anódinas e baladas açucaradas. Seus rockers perderam a força vital e muitos arranjos deixaram de ser pautados pelo sentido da boa medida. A alma negra embranqueceu. Não se tornou um compositor ruim. Mas se aproximou perigosamente de Elton John e Burt Bacharach. Mesmo Band On The Run parece por vezes um Abbey Road sem dentes. É música de grande qualidade. Mas os Beatles faziam melhor.

Do mesmo modo, John sofreu com a falta de Paul. Plastic Ono Band, embora genial, é um verdadeiro festival de excessos idiossincráticos. Em Imagine, John ensaia um bem-sucedido retorno à estética Beatle, mas logo em seguida a presença de Yoko irá se impor, destruindo o equivocado Sometime in New York City.

Ironicamente, o grande disco dos ex- Beatles, a verdadeira obra-prima, acabou sendo All Things Must Pass, o álbum triplo em que George Harrison deglutiu os antigos companheiros de banda, abrindo as comportas de sua produção musical, represada durante uma década à sombra de John e Paul. E foi assim, por estranhos caminhos antropofágicos, que a dialética de Lennon & McCartney brilhou pela última vez.

Todos os Beatles em Meia Hora

Essa eu roubei do blog Tramado por Mulheres, que pegou não sei de onde. Imagino que, guardadas as devidas proporções, muitos tablóides sensacionalistas britânicos tenham feito coisa parecida. E a classe operária de lá foi ao paraíso…


A anti-canção Revolution 9

Ouvindo o Álbum Branco, meu preferido dos Beatles. Sei que entro em terreno perigoso aqui, cada um tem seu preferido, as análises divergem, mas assumo o risco de fazer a minha. Fiquei muito tempo entre este e o Sargent Pepers. Hoje, tenho a impressão de que o Sargent Peppers é, digamos, barroco, e o Álbum Branco é clássico. Ou que o Sargent Peppers está para Memórias Póstumas de Brás Cubas como o Álbum Branco está para Dom Casmurro. Ou seja, o primeiro é um rompimento, uma – vá lá – quebra de paradigma, cheio de detalhes que apontam cada um em uma direção. Cada descoberta sonora dos rapazes parece gritar por atenção, sendo quase mais importantes que as músicas que as abrigam.

Já o Álbum Branco me soa o momento em que todas estas novidades se incorporam de verdade ao processo criativo. Não há mais a impressão de “atirar para todos os lados”, ainda que continuem as descobertas. O álbum me parece mais homogêneo musicalmente – de se espantar, já que é duplo -, as peças me parecem estar mais no lugar, a serviço das canções que os garotos eram mestres em fazer, ainda que a avaliação posterior de Lennon seja de que o disco é “John e uma banda de fundo, Paul e uma banda de fundo” etc. Se a cara do Sargent Peppers é ter todas as caras, a do Álbum Branco é não ter cara, como fica explícito em suas capas: uma povoada por uma multidão e com um nome fictício, a outra sem nada, nem mesmo o nome da banda (só mais tarde passou a ter o “The Beatles” em relevo no LP).

(Parêntesis para histórinha: uma vez, numa aula de canto, assisti a alguns alunos que preparavam repertório do compositor inglês John Dowland… do século XVI. Fiquei espantadíssimo ao perceber que trechos inteiros das peças para canto e alaúde tinham uma sonoridade muito próxima dos Beatles. Dei-me conta então de como as canções deles tem a capacidade de ressoar muito, muito fundo, fazendo o amálgama do ritmo “negro” do rock com três séculos de tradição da canção.)

Come Again, de John Dowland, com Sting e Edin Karamazov

For No One, Beatles.

(Imagine os arranjos destas duas canções trocados entre si. Depois, sigamos.)

Mas então, o que faz Revolution 9 quase no fim deste álbum? A primeira audição desta colagem musical dá a impressão de defeito no disco, ou de uma brincadeira de mau gosto. Mesmo sabendo que a faixa não é algo absolutamente inédito e que usa técnicas da música experimental concreta da época (Stockhausen, por exemplo), a música parece um corpo estranho no disco, como um borrão no canto de um quadro de Rembrandt. O que faz a coisa mais distante possível de uma canção no meio de um punhado de canções?

Ora, exatamente isto. John Lennon (seu autor, junto com Yoko Ono. A autoria Lennon/McCartney se deve ao antigo trato dos dois) a colocou ali, contra a vontade de Paul, possivelmente para ser o contraponto do álbum. No entanto, Revolution 9 faz referência em seu título à música que o abre, Revolution 1, e, mesmo se terem nada em comum tematicamente, partiu de um take não aproveitados dela sua construção. Tem também pedaços distorcidos ou tocados de trás para frente de várias outras canções do álbum, misturados e quase indistinguíveis, além de conversas do produtor do grupo George Martin, de Yoko, de George Harisson. Ou seja, é uma não-canção que se alimenta das canções do disco, como um sonho de alguém que vivenciasse sua produção.

Lennon, em 1974, gravou #9 Dream, em que canta o seguinte:

On a river of sound
Thru the mirror go round, round
I thought I could feel
Music touching my soul, something warm, sudden cold
The spirit dance was unfolding

Há controvérsias sobre se #9 Dream teria mesmo relação com Revolution 9 (Lennon, nascido num dia 9, gostava mesmo do número), mas a idéia de “um rio sonoro girando no espelho”  e a atmosfera de sonho explícita em ambas as músicas – de maneiras diferentes, é claro – as aproxima bastante.

Os Beatles foram os criadores de canções por excelência. Até mesmo nos momentos mais experimentais, a arquitetura de suas composições é invejável, a ponto de continuarem até hoje  influenciando bandas (vide Oasis e companhia). Revolution 9 representa uma reação violenta contra as amarras que esta forma lhes impôs ao longo do tempo (talvez também uma reação tardia ao ‘bom-mocismo’), provavelmente a reação mais profunda de todas que tiveram, pois nesta eles subvertem completamente o formato que os consagrou. Usando as canções que criaram, criam a coisa mais distante possível das canções que os eternizaram, como que zombando de si mesmos. Colocada estrategicamente como penúltima faixa do álbum, ela é ao mesmo tempo um clímax e um anti-climax, o ponto de radicalismo extremo e a reversão (ou superação) de todas as expectativas. Por este ponto de vista, ela está exatamente no lugar em que deveria estar.

E esta sensação se confirma para mim na faixa seguinte, a última do álbum. Good Night é, mais que uma canção, um legítimo acalanto composto por Lennon para o filho Julian, então com 5 anos, embalado nas cordas mais suaves que se possa imaginar. Depois do tremendo mergulho no caos, os rapazes foram piedosos com o ouvinte, consolando-o pelo mundo sem sentido que já constatavam na primeira faixa, Revolution 1, em que dizem “Inclua-me fora disso” para partidários de uma ‘Nova Ordem’. Acordando do pesadelo de Revolution 9, não há nada como ouvir Ringo Starr (logo ele!) sussurando: “Good nigth everybody, everywhere”. Em qualquer tempo, acrescento eu, quarenta anos depois.

Revolution 9

Good Nigth

Música para ver

– Ando preocupada com a Luna. Ela não ouve música!

– Como assim? Ela ouve música o dia inteiro!

– Não ouve, não. Ela assiste desenhos que tem música, assiste videoclips, entra no YouTube, mas música mesmo não ouve quase nunca!

Tive este diálogo com minha mulher outro dia. A partir dele, pensando no assunto, fiquei com a impressão de que, na verdade, a separação entre a audição da música e a visão é coisa inventada recentemente, que durou pouco e já está acabando.

Até a virada do século XX, música significava música ao vivo. Não havia nenhuma técnica de gravação, e partitura, além de ser para poucos iniciados, não é a música nem ilustração para ela. Portanto, assistir música era estar presente – e no caso da musica popular, em boa parte dos casos significava também participar de algum modo. Já na música clássica, foi criada uma variação: o fosso da orquestra. Tornando os músicos invisíveis, produziu-se o primeiro divórcio entre a imagem e o som, ainda que a voz cantora permanecesse em cena. Mas no caso de um balé, a separação tornou-se absoluta. Era revolucionário, mas ainda assim a imagem acompanhava o som, de maneira indispensável.

Revolucionário mesmo foi quando as primeiras gravações comerciais apareceram, com seu som roufenho, distorcido, mas ainda assim um milagre. A semelhança com a realidade era quase nenhuma, e nos estúdios era necessário criar toda uma ambiência para possibilitar algum tipo de registro. Mas o divórcio agora se anunciava definitivo. Ou quase.

Isto é Bom, de Xisto Bahia, primeira música gravada no Brasil.

As tecnicas de gravação continuaram a se desenvolver. Surgiu a alta fidelidade, depois a tecnologia digital, até se chegar ao ponto de uma gravação ao vivo soar tão boa quanto uma de estúdio. Mas paralelamente a este caminho, outro foi trilhado em sentido contrário, e se chamou videoclip. Dizem que os Beatles começaram tudo (E o que os Beatles não fizeram primeiro?)

Lucy in the Sky with Diamonds – trecho do filme Yellow Submarine.

I am the Walrus – trecho do fime Magical Mistery Tour.

O resto se sabe. MTV, Michael Jackson… Caetano Veloso, em 1989, publicou um artigo na Folha de São Paulo com o ambíguo título Vendo Canções. Nele, tratava do videoclip como arte (quase) independente da canção, ao mesmo tempo que como peça de publicidade dela. Comentava, por exemplo, que gostava do clip de Radio Gaga do grupo Queen, com referências e trechos do filme Metrópolis, do diretor impressionista alemão Fritz Lang, mas a música em si não o interessava tanto. Era a imagem retomando seu lugar junto ao som, mas agora podendo tomar todas as liberdades possíveis.

Thriller

Radio Gaga

Hoje que a MTV não toca mais quase música, em compensação a Internet abriu as portas da percepção a quem vem chegando agora. Minha filha de cinco anos se vira no computador com grande desenvoltura e emenda um clip atrás do outro. Sim, sendo minha filha, ela ouve música sem imagem também. Mas não posso deixar de pensar que talvez esta seja a última geração a fazer esta diferenciação tão claramente. Será?

Não. Embora a venda de DVDs com shows hoje seja quase superior à de CDs, o formato mp3 associado aos leitores portáteis quase onipresentes permite um fenômeno inverso da visualização da música, que é a sua individualização absoluta e sua escuta em qualquer lugar. Assim, a relação escuta/visão musical vai cumprindo suas indas e vindas simultâneas: da música gravada substituindo a ao vivo, do videoclip na contramão trazendo a imagem de volta, do mp3 na contramão do videoclip privilegiando a pura escuta individual. E me arrisco na futurologia, ao dizer o próximo passo: a tecnologia permitir a participação na música paralelamente e na contramão da individuação do mp3, como antes das gravações, mas diferente, como sempre. A conferir daqui a alguns anos. Ou daqui a pouco. Provavelmente a Luna me manterá informado.