De três raças tristes para três reis

A expressão de que o Brasil é formado a partir de três raças tristes, oriunda de um poema de Olavo Bilac e retomada em 1928 no livro Retrato do Brasil, do modernista Paulo Prado, ganhou um viés extremamente negativo a partir deste. Prado chega a dizer que quando tudo está errado, o melhor corretivo é o apagamento de tudo que foi mal feito, deixando no ar a possibilidade de defender a eugenia.

No entanto, uma das coisas que mais gosto hoje de assistir numa Copa do Mundo, e isto desde criança, é a diferença entre a seleção brasileira e as outras. Não falo de futebol. Falo do fato de no time canarinho haver gente de todo tipo, toda cor – e principalmente, todas as gradações. Se vemos o time da França, por exemplo, há um monte de branquelos e um ou outro retinto – fora Zidane, ainda assim de ascendêcia claramente argelina. No japonês, a mesma coisa: muitos amarelos, e um ou outro brasileiro naturalizado. Só no nosso time há brancos, negões, mulatos de todo tipo e índios de mistura com todos. Acho, sempre achei, isso o máximo, e não duvido, pegando uma carona marota com as teorias racialistas e tirando a conclusão contrária de Paulo Prado, que exatamente esta mestiçagem seja a responsável pelo nosso sucesso no futebol.

Claro, não tenho visão utópica sobre o assunto, e percebo a distorção que existe quando o Ronaldo Fenômeno se diz branco. Mas percebo também a grandeza épica de um povo em formação de que falam Caetano e Gil em Haiti. De certo modo, nossas três raças (que nem raças são etc.) foram mesmo tristes: degredados (e às vezes degradados) brancos, escravos negros e dizimados índios – mais de seis milhões, nas contas de Jorge Benjor – tentam há 500 anos mudar o rumo inicial tenebroso desta história. Apenas, hoje parece haver mais perspectiva de se conseguir.

Mas o que isto tem a ver com música? É que, assim como no futebol esta mestiçagem é positiva, também foi, e muito, responsável pela imensa riqueza de nossa música popular. E então, em homenagem ao novo ano e novo governo que se iniciam, etapas de nossa formação a serem percorridas, três canções sensacionais, representando estas três matrizes que continuam se fundindo no laboratório eugênico do Brasil, cada um com sua visão da chegada por aqui. Em comum, a riqueza rítmica fabulosa de cada uma, através de que as tristezas iam e vão tentando ser ressignificadas. E também os trabalhos de pesquisa profundos realizados por cada compositor.

Chegança – Antônio Nóbrega – um caboclinho, ritmo carnavalesco tão acelerado que se aproxima do compasso unário, típico de algumas manifestações indígenas. O caboclinho é talvez a dança mais antiga do Brasil – seu primeiro registro é de 1584. E também uma música de guerra, representada no festejo. Arco e flecha são usados na marcação do tempo. Perfeito para descrever a chegada dos portugueses do ponto de vista dos habitantes originais.

Ganga-Zumbi – Sérgio Santos – A canção é sobre a morte de Zumbi e sua ascenção ao panteão dos mitos. O trabalho de pesquisa de Paulo Cesar Pinheiro para a letra foi tão fundo que precisou de glossário no encarte do álbum Áfrico. Francis Hime comenta, e eu não poderia dizer melhor:

(…) é interessante como Sérgio trabalha o rítmo, um elemento musical que normalmente é associado à alegria, e que aqui se relaciona com vários elementos: de sensualidade, de nostalgia, de tristeza ou até mesmo um clima mais reflexivo. E que às vezes explode numa atmosfera efusiva, dançante! (…) Em Ganga-Zumbi, é interessante o contraste entre a melodia linear e o ritmo frenético, ora em 5/4, ora em 4/4, e também a maneira como este canto liso e expressionista se descola do acompanhamento transbordante do violão, do piano e do sax.

E o próprio Sérgio Santos conta sobre o álbum:

As músicas não têm um ritmo definido. Não seria simples gravá-las. Não poderia entrar no estúdio e dizer: vamos tocar, isso é um samba, ou isso é um baião. As conduções rítmicas eram, em alguns casos, misturas de alguns ritmos. Em outros, uma mesma música podia ser tocada como ritmos diferentes. E algumas outras músicas tinham ritmos que nem existiam, precisamos inventá-los.

Gente que vem de Lisboa – Tavinho Moura – É engraçado como a música portuguesa ficou marcada no Brasil de forma simplista e pitoresca, como se fado e vira fossem suas únicas possibilidades. A influência portuguesa (ou européia, mas via Portugal) se estende pelas modas de viola, toadas, rancheiras e muitas outras possibilidades, que incluem ou permitem os compassos quebrados característicos do Tavinho. Esta é uma cantiga de marujada, festividade de raizes ibéricas misturadas, que celebram as conquistas marítimas, mas aqui servem também a uma ponta de crítica:

Ó meu mestre, contramestre, como posso navegar
Se nós não temos rota nem agulha de marear (bússola)?
(…) Ó meu mestre, contramestre, por aqui nada mudou.

Mas mudou, e segue mudando, embora às vezes tão imperceptivelmente que mal notemos. E vamos nós ao próximo passo. Feliz 2011 para todos.

Mais duas coisas: Sérgio Santos canta no coro da música do Tavinho  Moura, coisa que nunca havia notado até selecionar estas músicas para o blog. Sintonia fina entre eles.

E, como já dito no título, a referência aos que também não eram três, nem reis, talvez nem magos, e que visitaram a criança recém-nascida. Dizem que um era negro. Pois aqui no blog, outro era índio. E tenho dito.

Reis de Janeiro

Em alguns lugares do Brasil, o Natal acontece em 6 de janeiro. Não porque a data de nascimento de Jesus seja outra, mas porque o dia da visitação dos magos é o dia do verdadeiro festejo, quando os grupos de músicos paramentados se reúnem no meio da praça para encerrar o ciclo natalino contando toda a história tradicional em presépio, e fazem a visitação das casas levando a festa de porta em porta. É a Folia de Reis.

Tavinho Moura conhece bem estas tradições, e sua obra musical é profundamente enraizada no folclore, principalmente mineiro. Mas sua pesquisa não é apenas folclórica, mas musical. Reis de Janeiro, composta em parceria com o saxofonista Nivaldo Ornelas, tem todos os elementos de uma canção de Reis, incluindo a identificação dos Reis (somos de muito longe, longe daqui), a conclamação na praça (segredos da divindade, notícias belas, nobres senhores, vinde escutar), a bênção sobre a casa que recebe os celebrantes (Ele fez morada e nessa casa santa o pão é sagrado) numa letra que sabe tirar partido do simbolismo católico de forma inspiradíssima.

A  melodia da canção, embora não seja monocórdica, é baseada num desenho simples que destaca a característica discursiva da letra. A notar, a subida de nota nas frases por cima de seus telhados e nobres senhores, vinde escutar; a descida para o grave em regadas de aguardente; a escanção das sílabas em o pão é sagrado, de certo modo referente à celebração religiosa; enfim, toda uma conformidade de letra e melodia trabalhadas lado-a-lado.

Outro acerto de Tavinho está no ritmo, um cateretê em compasso 5/4 (aliás, compassos alterados são uma especialidade dele, e ninguém pense que não existem na música folclórica. Pelo contrário, é dela mesma que ele os tira), que mesmo complexo e de difícil execução permanece dançante e festivo. Mário de Andrade registra que

Para o caipira paulista todas as danças são invenção diabólica exceto o cateretê, porque esta foi abençoada e até praticada por Jesus, quando em sua peregrinação.

Tavinho gravou Reis de Janeiro duas vezes. A primeira vez no excepcional álbum Engenho Trapizonga, de 1982, com arranjo do parceiro Nivaldo, que tocou sax, acordeão e até violão:

Reis de Janeiro – Tavinho Moura – versão do álbum Engenho Trapizonga

Em 2001, Tavinho gravou Cruzada, um álbum voltado para o repertório de viola caipira e violão, principalmente instrumental, entremeado por algumas canções, quase todas antigas, como a faixa título. Entre elas, Reis de Janeiro, agora num arranjo apenas para dois violões e percussão. Ao contrário do arranjo original, que tenta sublinhar o lirismo da canção, este é cru como todo o álbum, e reforça o seu caráter popular. Tavinho também canta num registro mais grave, que parece menos festivo, mas apenas deixa de lado eventuais excessos de interpretação para fixar-se nos elementos ritmo e letra.

O resultado é que, quanto mais a canção se aproxima de sua matriz de festejo e folia, mais cresce. Pessoalmente, se eu ouço Reis de Janeiro dez vezes seguidas, me emociono em todas. Experimente para ver.

Reis de Janeiro – Tavinho Moura – versão do álbum Cruzada

Acesa sobre as montanhas vejo brilhar a estrela adorada
Iluminando o mistério, incendiando a folia
Que já vai chegar
Seu canto invade a cidade,
Espalha por cima de seus telhados
Nas vozes de seus pastores regadas de aguardente
Segredos da divindade, notícias belas,
Nobres senhores, vinde escutar
Que ele fez morada
E nessa casa santa o pão é sagrado
Somos de muito longe, longe daqui
Vivendo em nossa lembrança, aquela criança que despertou
Naquele lugar, naquele dia,
Canta mais, coração, despertou naquele dia