Espanto, calamidade e milagre – Duas canções pagãs

Trago a segunda parte do artigo de Maria Rita Kehl sobre O imaginário da chuva na canção popular do nordeste. A primeira parte – Duas canções piedosas – está neste post

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Depois de Luiz Gonzaga, outras gerações de compositores e poetas continuaram a alimentar as tradições do sertão nordestino. Aos poucos, a lírica da melancolia foi cedendo lugar a uma poesia mais irônica; o comentário sobre as misérias da seca começa a ser enunciado a partir de certa distância instituída pela própria consciência dos efeitos de linguagem. Algumas referências religiosas vem sendo substituídas por metáforas da violência da vida no sertão. O paraibano Chico César chama seu Catolé do Rocha de “praça de guerra/ onde o homem e o bode berra”, e o pernambucano Chico Science, falecido aos trinta e dois anos em 1997, faz seu maracatu chafurdar na lama do mangue de Recife.

Já no século 21, o grupo Cordel do fogo encantado mistura influências tradicionais da música e da poesia populares do nordeste com elementos imaginários inovadores. O compositor e poeta Lirinha, que é também cantor do grupo, retoma o tema da chuva com um espírito anárquico e dionisíaco Chover é um maracatu desenfreado, cuja força rítmica e a riqueza da percussão simulam a grandeza da chegada das primeiras tempestades no sertão. As batidas do surdo, das congas, do gonguê e do bombo de macaíba simulam o ribombar a chuva e o estouro dos trovões. A música é a mesma nas duas fases da letra – antes e depois da chuva – e as palavras “chover” e “choveu” são entoadas pelo coro, enquanto a voz de Lirinha reza os outros versos.

Choveu (Invocação para um dia líquido)
Lirinha e Clayton Barros

1. Chover, chover, valei-me Ciço, que posso fazer
Chover, chover, terço pesado pra chuva descer
Chover, chover, até Maria deixou de moer
Chover, chover, banzo, Batista, bagaço e Bangüê.
Chover, chover, cego Aderaldo peleja pra ver
Chover, chover, já que seu olho cansou de chover
Chover, chover, até Maria deixou de moer… etc.
(Falado): Meu povo, não vá embora pela Itapemirim
Pois mesmo perto do fim, o meu sertão tem melhora.
O céu ta parado agora, mais vai dar cada trovão
De escapulir torrão de paredão de tapera. (João Paraibano)

2. Choveu, choveu, Lula Calixto virando Mateus
Choveu, choveu, o bucho cheio de tudo que deu
Choveu, choveu, suor e canseira depois que comeu
Choveu, choveu, zabumba zunindo no colo de Deus.
Choveu, choveu, Inácio e Romano, meu verso e o teu,
Choveu, choveu, água dos olhos que a seca bebeu.
(Falado) Quando chove no sertão, o sol deita e a água rola
O sapo vomita espuma, onde um boi pisa se atola
E a fartura esconde o saco que a fome pedia esmola. (João Paraibano)

(Refrão) Seu boiadeiro, por aqui choveu (bis),
Choveu que amarrotou,
foi tanta água que meu boi nadou. (Toque pra boiadeiro).

Na composição de Lirinha e Clayton Barros, a cheia tem o sentido poético de uma saturação. Na primeira parte, o sertanejo invoca a chuva: o coro pede incessantemente – “chover, chover” – enquanto o poeta descreve a desgraça da seca. Por causa dela, Maria não tem mais nada que moer. Cego Aderaldo, figura mítica do folclore sertanejo, cansou das lágrimas inúteis a vazar dos olhos que não vêem, mas choram a desgraça de seu povo. O desamparo do nordestino diante da seca é o mesmo que se expressa em Súplica Cearense: diante dela, o que se pode fazer? Rezar um “terço pesado pra chuva descer”… e esperar, sempre. Na voz de Lirinha, os versos de João Paraibano pedem ao povo ainda um pouco mais de paciência, de esperança. A mesma esperança resignada, a mesma fé cega na chuva que ainda há de chegar, abundante. O céu que ainda está parado há de mandar “melhora” para o sertão. Nem que seja uma melhora catastrófica, as paredes das taperas se desmanchando ao estouro dos trovões, os bois atolando no barro ou nadando na correnteza.

Na segunda parte da música, há uma mudança no tempo verbal do verbo chover. Do infinito para o passado, agora já choveu e “Lula Calixto” traz o bucho cheio, sente suor e canseira depois de tudo o que comeu. A fome deu lugar à saciedade: na outra quadra de João Paraibano, a fartura “esconde o saco em que a fome pedia esmola”. O saco da fome, no entanto, continua ligado ao balaio da fartura: na próxima estação, só a esmola salvará o sertanejo de morrer de fome.

A chegada da chuva, mesmo que seja uma tempestade, é uma alegoria festiva. As imagens do sapo que “vomita espuma”, do boi nadador, dos torrões que escapolem das paredes das taperas, não são catastróficas. O poeta não se lamenta do excesso de água, não pede perdão a Deus por uma suposta ofensa que provocou a ira divina e trouxe a cheia para o sertão.

Invocação para um dia líquido é poeticamente superior às duas canções anteriores. Aqui, a chuva excessiva funciona como alegoria de uma explosão da força reprimida no imaginário sertanejo. Deus surge apenas como imagem estética da força do trovão, num verso onde a repetição da letra z (“zabumba zunindo no colo de Deus”) invoca a rapidez e o chicotear do relâmpago. A chuva não é benção nem castigo: é fúria e surpresa, tão violenta quanto a seca com a qual contrasta. Em sua enchente que não é de água, é de imagens, Lirinha inclui poetas da tradição sertaneja, como João Paraibano, ou o anônimo toque para boiadeiros – “choveu que amarrotou”… Neste, o boi não se afoga: nada.

Talvez a força desta canção revele que a criação estética é tão potente quanto a ação política no sentido de sacudir os corações tomados pela melancolia e pelo fatalismo. Na criação poética o sujeito também se afirma como criador, tanto de seu destino quanto de um mundo fantástico – e possível – onde os homens possam viver com o bucho cheio de tudo o que a terra deu.

A imagem da tempestade como espetáculo estético tem uma força própria na tradição recuperada (como pedaços de objetos encontrados na correnteza) nas canções de Lirinha. No segundo CD do Cordel do fogo encantado, cujo título é O palhaço do circo sem futuro (2003), há duas canções que evocam este tema. Devastação da calma (ou A Tempestade) e Tempestade (ou A Dança dos Trovões). Em ambas, a descrição da tormenta empresta força estética ao desespero e à fúria, insinuados na voz do cantor que parece dividido entre o desejo da chuva, o medo da destruição, ou entre a atração que lhe provoca a violência da vida e o desejo da paz. Reproduzo a primeira delas.

Devastação da Calma
(Clayton Barros e Cancão)

As nuvens surgiam densas
Por todo lado da serra
Como montanhas suspensas
Com fímbrias da cor da terra
A terrível saraivada
Caía tão arrojada
Parecia um desespero
O zigue-zague em seu jogo
Fingiam cobras de fogo
Brigando no nevoeiro.

Fortes colunas de vento
Vinham desequilibradas
Num grande deslocamento
Em ondas desencontradas
As árvores se retorciam
Línguas de fogo desciam
Com toda brutalidade
Parecendo que fugia
Aos sopros da tempestade.

Este poema é praticamente declamado, com acompanhamento musical ao fundo. O que se segue é cantado.

A Tempestade
(Cordel do Fogo Encantado, Lirinha e Emerson Calado)

Quando o vento bate forte
Que aspira o ar castigado
Estremece o pulmão da seca
Tempestade, tempestade.

Pai, estou nessa terra
Querendo plantar
Querendo colher
Homens do ar não descem
Mulheres do ar não descem
Crianças do ar
Velhos do ar
Sempre mandam recado

É de Relampiê, é de Relampiê, é de Relampiá (domínio popular)

A alma a água o alvo
Pela variação instintiva
Para não virar carvão
Tempestade, tempestade

Pai, estou tão sozinho
Querendo plantar
Querendo comer
Homens do ar não descem (etc).
É de Relampiê (etc).

Se eu pudesse parar os elementos
Se eu pudesse trazer paz ao mau tempo
Mas eu não posso
Não devo
Não quero
Tempestade, tempestade…

Cordel ao vivo em estúdio

Aqui, escutamos a voz de Lirinha em segundo plano, esforçando-se para se fazer ouvir através do clamor dos instrumentos de percussão que, sempre em ritmo de maracatu, parecem ribombar como os trovões e martelar como os grossos pingos de água sobre telhados de zinco.

Há, em ambas as composições, uma agressividade e como que um desejo de violência: “se eu pudesse trazer paz ao mau tempo/ mas eu não posso/ não devo/ não quero” (grifo meu). Este evoca, a meu ver, a violência recalcada de gerações e gerações de homens, mulheres, crianças e velhos que sofreram passivamente as conseqüências da seca e da cheia, pedindo as bênçãos de Deus e implorando perdão por seus supostos pecados. Homens do ar (e mulheres, e crianças, e velhos do ar) – seriam os mortos buscando redenção? Seriam os antepassados sofridos dos meninos desta nova geração de artistas? Só se sabe que eles “não descem”, mas mandam seu recado. Que recado? No verso seguinte, um coro de vozes libertas repete a expressão de domínio popular, evocando a tradição nordestina: é de relampiê, é de relampiá. O recado é um raio no céu? O outro nome do relâmpago (que “relampeia”) é corisco. É o nome também do personagem de Glauber Rocha, o valente cangaceiro de Deus e o diabo na terra do sol. O mesmo cuja música-tema é a conhecida composição de Sérgio Ricardo:

Tá contada a minha história, verdade e imaginação,
Eu espero que o senhor tenha tirado a lição
Que assim mal dividido este mundo anda errado
Que a terra é do homem, não é de Deus nem do diabo.

“Verdade e imaginação”: mais do que em nenhum outro lugar do Brasil, no sertão nordestino a verdade se revela através das obras da imaginação e com elas se confunde. Para René Gardies, estas duas dimensões da realidade formam um par antitético. Par no verdadeiro sentido do termo: unidade dialética, fusão que dá nascimento a uma nova unidade. O pensamento brasileiro é sincrético, próximo do mágico. O conceito não existe fora de sua ganga concreta. A alma brasileira alia poesia e verdade, sonho e realidade. Desconhecer essa característica significa ignorar o fundamento de sua cultura popular .

Às vezes, do seio das nuvens da imaginação – como de dentro do “bolo d’água” do verso do repentista Manoel Chudu, citado na epígrafe deste texto – relampeja um corisco aceso que ilumina toda a realidade com a força de um desejo de transformação. Se alguma possibilidade de redenção se anuncia na “verdade e imaginação” da canção popular produzida no sertão nordestino, esta não virá da bondade de Deus por força de intermediação de frei Damião ou do padre Cícero. Virá, se vier, da determinação popular.

Ao comentar as Teses sobre o conceito de história de Walter Benjamin, o filósofo Michael Löwy escreve que:

O único Messias possível é coletivo: é a própria humanidade, mais precisamente, (…) a humanidade oprimida. Não se trata de esperar o Messias, ou de calcular o dia de sua chegada (…) mas de agir coletivamente. A redenção é uma auto-redenção, cujo equivalente profano pode ser encontrado em Marx: os homens fazem sua própria história, a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores .

Tal emancipação talvez não esteja contida no projeto explícito dos artistas do “Cordel do fogo encantado”. Ainda assim, as canções e os poemas que recolhem, não tanto ao acaso, belíssimos trechos da produção perdida de poetas, cantadores e repentistas, têm o efeito de devolver ao Brasil uma parte de sua melhor tradição. “Homens do ar” não descem na tempestade, mas na retomada criativa da tradição. Neste caminho de volta a força da imaginação da geração atual, renovada pelos inventivos recursos interpretativos de Lirinha e dos percussionistas, soma-se à torrente criativa das gerações passadas e com isso, de certa forma, as redime. Isto porque, retomando ainda o comentário de Löwy, “não haverá redenção para a geração presente se ela fizer pouco caso da reivindicação das vítimas da história”.

Wisnik recorda

Volta e meia cito o José Miguel Wisnik aqui. Não é por acaso. A formação dele, que é professor de literatura, tem a ver com a minha em comunicação. Isto faz com que a leitura musical dele extrapole para questões de história, semiótica, sociologia e até psicologia, exatamente como almejo fazer neste blog. Wisnik escreve aos sábados no jornal O Globo. Transcrevo seu último artigo, sobre o documentário Uma noite em 67 – e sobre a noite propriamente dita, da final um festival que ajudou a moldar a produção da música brasileira nos 20 anos seguintes, no mínimo.
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Não me lembro exatamente porque fui sozinho ao Teatro Paramount naquela noite de 1967. Certamente nenhum dos meus amigos se animou a tomar a iniciativa de ir à final do Festival da Record, que aliás não era nada mais do que um momentoso programa de televisão, como frisam os próprios organizadores no comovente e empolgante documentário Uma noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil (que só agora consegui ver). Talvez eu estivesse acostumado demais a ver o Santos de Pelé na Vila Belmiro, nos anos imediatamente anteriores, e continuasse buscando a faisca do acontecimento ao vivo. Mas, além de tudo, eram mudanças decisivas na minha vida que estavam em jogo ali.

De 66 para 67 a importância pública e notória da canção no Brasil deu um salto exponencial, no olho do ciclone que vinha se armando para 68. Garotos de classe média em torno dos 25 anos, formados pela escola pública e pela Bossa-Nova, chegados à universidade na onda do movimento estudantil e da canção de protesto, ocupavam o horário nobre quase todos os dias da semana na emissora cuja audiência chegava com facilidade a 80%. Estavam ligados ao samba e também à poesia de Vinícius de Moraes e, com ela, também à de Drummond e Cabral, aos Violões de Rua e ao CPC, a Clarice e ao Cinema Novo.

Eu, que estudava piano clássico e que fazia o primeiro ano do curso de Letras numa faculdade em ebulição política, sem saber como juntar as pontas de tudo isso, fui atraído para o turbilhão do festival como quem vai ao mesmo tempo para o abismo e para a salvação. É que nele a música, a literatura, a arte, a vida, a política estavam todas cozinhando no calor da hora. Eu, que acabava de mudar da província para a metrópole (província em termos, porque Santos era, em música de vanguarda e em futebol, completamente cosmopolita), acabaria por abandonar pouco depois o estudo de piano de concerto no qual eu tinha apostado muito e mergulhar na literatura, embora mirando na promessa da canção. Era nela que meus dilemas se resolviam.

Acho que foi com muitos desses sentimentos que os meus 18 anos se posicionaram naquele mezanino frenético do Teatro Paramount que meus olhos agora veem no filme, mas de onde meus olhos continuam vendo o filme daquela noite em 67. Por que ela dura? Em conversas com pessoas que viveram a época, motivadas pelo documentário, vejo a facilidade com que todos voltam a discutir acaloradamente as suas preferências como se o festival tivesse acontecido ontem (e como se fosse um jogo de futebol). Como no futebol, todo mundo tem um testemunho, todo mundo sente o festival como seu. Por que não? O documentário deixa que isso continue transparecendo para quem vem depois. Descartando a voz narrativa em off e a voz explicativa dos críticos e historiadores da música, apenas deixando falar a posteriori os diretamente envolvidos, que nos devolvem às imagens da época, o filme coloca o espectador de hoje e de qualquer idade num tempo e num lugar análogos ao de quem estava exposto ao som e à fúria do momento.

Mil vezes expliquei depois em aulas e palestras o consenso difuso que deu contexto aos primeiros festivais da canção, as contradições estéticas, ideológicas, comportamentais, que emergiram neles, a euforia compartilhada do Festival de 66 (da Banda e da Disparada), o ambiente caótico dos festivais de 68 (já próximos ao AI-5), e o lugar intermediário do Festival de 67 entre a euforia e a convulsão. Mas toda esta aula se cala diante dos minutos que antecedem a famigerada quebra do violão por Sérgio Ricardo, apresentados na íntegra. A imagem genérica bebe de novo na fonte feroz. Escuto, quase asculto, com curiosidade e certa repugnância, o rumor minucioso das vaias, que vai sendo realimentado pelos apelos inábeis ou inúteis do compositor, suas dúvidas estampadas no rosto a cada segundo, os aplausos impotentes que só aumentam o ruído, o clamor indistinto da disputa ideológica já descolada de seus alvos, a pulsão latente por um bode expiatório que afinal se dá em explosão.

A noite é cheia de infernos e céus, como as viradas de Roberto Carlos cantando Maria, carnaval e cinzas e de Caetano Veloso cantando Alegria, alegria. Passado o episódio de Sérgio Ricardo, Uma noite em 67 opta por focar os cinco premiados, seguindo por Roda viva, de Chico Buarque, Domingo no parque de Gilberto Gil e Ponteio de Edu Lobo, que abre e fecha o filme. Essas canções são hinos de uma época ainda suficientemente fechada no seu repertório estético e social para poder nos parecer totalizante, como se toda a sociedade e a nação estivessem implicadas ali, contrastadas com o Grande Outro da ditadura – e, de muitas maneiras, estavam. Há épocas sem grandes talentos, há épocas em que os talentos não estão visíveis. Aquele foi um momento, talvez o momento, em que os talentos eram muito grandes, e estavam muito visíveis. O espetáculo, mais do que dos seres espetaculares, era o dos seres especiais. Mesmo que ao preço do delírio e das vaias, o espaço se abria às diferenças, que ali estavam literalmente postas a prêmio. Por isso tudo é um momento inesquecível em si, a noite em 67, mesmo para quem não a viveu.

É claro que o grande ator é o Tempo, fazendo o seu trabalho, estampado na tela, nos rostos de ontem e de hoje, dizendo quem é quem, em mim, em você. Na voz de Elis que sobra por trás dos créditos cantando O cantador de Dori Caymmi e Nelson Motta, mesmo longe.

Sérgio Ricardo canta Beto bom de bola e quebra o violão

Elis Regina canta O Cantador