A página do diário íntimo elétrico de Beto Guedes

Para começar, com a palavra o músico Pablo Castro.

A Página do Relâmpago Elétrico, de Beto Guedes e Ronaldo Bastos, é mais uma dessas canções meio inexplicáveis, por mais que se tente analisar cada parte, visto que o conjunto é algo transcendente. Esse rock 12/8 , em versos de 6 compassos, depois alternando para 8, tem uma letra incomumente longa e das mais icônicas, imagéticas, e, alguém diria, vagas, mas de qualquer maneira incisivas, das melhores letras de Ronaldo Bastos. “Que nem ronco do trovão que eu lhe dou para guardar” está entre os versos mais surreais e cortantes do cancioneiro brasileiro, algo talvez inspirado em Guimarães. A melodia em graus conjuntos e saltos precisos se encadeia numa forma capciosa, com quatro longas estrofes, enquanto a execução instrumental decola depois da segunda estrofe pra avoar que nem asa de avião até o fade-out final. Harmonicamente, passeia no território modal/tonal e modula de C# pra E maior, passando por vários acordes com nona, sétima maior, baixos invertidos, enfim, e isso tocado com notável ferocidade, numa onda destituída de blue notes, por isso não é um típico roque, e por cima de tudo o cortante falsete arrepiante e estridente de Beto Guedes e as cordas rasqueadas do seu violão e bandolim. Ficha técnica : Bandolim, violão e voz – Beto Guedes; Violões – Zé Eduardo; Baixo – Toninho Horta; Bateria – Robertinho; Percussão – Hely; Côro – Vermelho, Flávio e Beto.

E mais talvez não fosse preciso dizer à ótima análise de Pablo, parte do projeto pessoal de esmiuçar a sua lista pessoal da 30 canções imprescindíveis do Clube da Esquina (do Facebook, a lista foi reunida em posts do ótimo blog Massa Crítica MPB: primeira parte, segunda, terceira, quarta e quinta). A primeira canção do primeiro álbum de Beto Guedes, de 1977, porém, como o próprio Pablo reconhece, tem uma soma que transcende a soma das partes, nas imagens que se acumulam como nos acordes maiores com sétima maior que se sucedem e nos levam por caminhos desconhecidos da tonalidade. A Página do Relâmpago Elétrico é a porta de entrada da música de Beto, sua carta de apresentação, o convite para a entrada em seu mundo, diário íntimo da alma desarrumada:

Abre a folha do livro
Que eu lhe dou para guardar
E desata o nó dos cinco sentidos
Para se soltar

É de se notar neste convite o terceiro verso, que, com a influência escancarada de Beatles e do rock progressivo nos mineiros do Clube, faz desconfiar do uso de ácido lisérgico, que aumenta a capacidade sensorial, gera alucinações visuais e auditivas, altera a noção temporal e espacial e causa sinestesias – estado neurológico em que os sentidos se confundem entre si, permitindo ver sons, tocar cores etc.. E não, por acaso, o convite para desatar os sentidos é seguido de uma sutil sinestesia, agora figura de linguagem: Que nem o som clareia o céu nem é de manhã.

A estrutura dA Página do Relâmpago Elétrico,de uma simplicidade enganosa, tem importância fundamental para entender melhor o mergulho a que ela nos chama. Da intrincada cadência da primeira estrofe, que vai se repetir nas seguintes, a única integralmente letrada é a primeira. Na segunda e na terceira, um trecho que tinha letra é tocado apenas instrumental, e os dois versos finais são cantados depois deste intervalo, porém integrando a mesma estrutura – o que pode dar a impressão de versos soltos a um desavisado. E na estrofe final, a parte da harmonia do instrumental é retirada, e os dois versos finais são cantados emendados, ou seja, a estrutura harmônica é abreviada.

Esta estruturação firme, porém com estas sutilezas, contrasta com a aparente desestruturação da letra, e é exatamente o que lhe dá a base firme para voar. Ao mesmo tempo, o convite para embarcar na viagem mental de Beto/Ronaldo se fortalçece ao observarmos a organização de cada estrofe: dos quatro versos iniciais que citei acima, os dois primeiros (A) se repetem com uma alteração (A’) para o agudo que serve de ponte para os seguintes, onde não há mais repetições melódicas. Este início com repetição serve de âncora estrutural para toda a composição, permitindo remissões inclusive na letra, como veremos adiante. Ao mesmo tempo, a frase (A’), finalizada para o agudo, anuncia a decolagem para uma sucessão de imagens que guarda relação íntima com as letras fantásticas do rock progressivo, seguindo a deixa dos versos de abertura, mas cruzada com algo do imaginário sertanejo mineiro que Pablo associa a Guimarães Rosa: e um cego canta até arrebentar.

Não por acaso, a entrada do peso instrumental de baixo e bateria se dá exatamente neste ponto, mas na segunda estrofe, o que é outra sutileza. Pois esta característica da introdução a um mundo paralelo (expressão clichê, mas vá lá) acontece simultaneamente em dois planos, na canção como um todo e dentro de cada estrofe. Por isso, a primeira estrofe é toda cantada apenas sobre violões, bandolim e percussão leve, numa suave cama flutuante quase como um acalanto (reforçado pelo compasso ternário), como um aprofundamento no sono para, com a irrupção instrumental, despertar, mas no outro plano, onde o caráter não lógico das frases da letra – e aparentemente arbitrário dos acordes – assume sentidos particulares, expressão bem a calhar. Vários sentidos a desatar seus nós.

Mas há ainda um elemento fundamental do pequeno estudo de Pablo a ser desenvolvido: a voz de Beto Guedes. Voz que outro blog que consultei localizou entre Bob Dylan e Neil Young. Voz desconfortável, cortante como navalha, que sobrevoa as nuvens das cordas palhetadas e a tormenta da explosão instrumental, e que, por cima disso tudo, pede silêncio:

Encontrar o coração do planeta
E mandar parar
Pra dar um tempo de prestar atenção nas coisas
Fazer um minuto de paz
Um silêncio que ninguém esquece mais

Mas um silêncio ele mesmo marcante, incômodo, e talvez por isso mesmo absolutamente necessário. A voz de Beto soa como a de um pregador no deserto. A paz e o amor que ele e Ronaldo pedem e pregam são ferozes, podem ser teríveis. E os versos que encerram a canção (repetidos na terceira e na última estrofe) explicitam esta ferocidade, ao contrastarem absurdamente com os imediatamente anteriores, que acabei de citar: Que nem ronco de trovão / que eu lhe dou para guardar. Um silêncio que nem ronco de trovão, que ninguém esquece mais. Fusão de contrários para não ser entendida, mas sentida com os cinco sentidos, e que é coisa que ninguém separa mais. Versos que remetem por sua vez aos primeiros, pela repetição parcial: o livro que Beto nos oferta é ronco de trovão do relâmpago elétrico, que é também silêncio, um minuto de paz em 5 minutos e vinte segundos de trovão. Um vislumbre da alma inquieta de Beto que nos é ofertado como seu bem mais precioso. Para guardar.

Milton e o Eterno Retorno da Melodia – o Tema de Cais

Cais é a segunda canção do álbum Clube da Esquina I, de 1972, parceria de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. Além da canção propriamente dita, ou tão importante quanto ela, o tema apresentado ao piano pelo próprio Milton no fim da faixa tornou-se emblemático.

Cais – do álbum Clube da Esquina I

O tema se apoia em um intervalo dissonante de segunda maior martelado na mão esquerda, enquanto a direita, e depois a voz, traçam a melodia. Não é apresentado inteiramente, mas decai em fade.

O tema retorna no mesmo álbum, numa das faixas finais, Um Gosto de Sol. Continua baseado no mesmo ostinato, mas agora transposto para cordas (o piano soa ao fundo), e é apresentado inteiro, ou seja, com uma segunda parte típica do Milton, em que a harmonia permanece em suspenso como que desequilibrada, para depois voltar com tudo à primeira parte (veja no post anterior).

Um Gosto de Sol – gravação do álbum Milton Nascimento ao Vivo, de 1983, com Gal Costa

A estratégia da reapresentação do tema de uma música inicial em outra música no fim serve para dar unidade ao álbum, e foi muito usada por grupos de rock progressivo da época como o Genesis (veja aqui sobre a relação do rock progressivo com o Clube da Esquina). Mas há algo mais aí.

Em 1978, Milton e Lô Borges gravam o Clube da Esquina II. O álbum já se inicia referencial – um coro à capela canta um trecho de San Vicente, do Clube da Esquina I, antes mesmo da primeira faixa. Mas é na música que encerra o álbum que a ligação se completa.

Que Bom, Amigo – do álbum Clube da Esquina II

Que bom, amigo é uma canção inteiramente construída sobre o tema de Cais. A melodia da canção soa intercalada com a do tema, fazendo um jogo de canto e contracanto. Mas não apenas a óbvia ligação entre os álbuns é reforçada. Há também um jogo de relações entre as três canções.

Cais, em sua letra, narra uma aventura fundamentalmente solitária. “Para quem quer se soltar invento o cais / Invento mais que a solidão me dá”. O piano toca igualmente solitário no fim do arranjo.

Um gosto de sol é acompanhada somente pelo piano. No entanto, ao final (o arranjo de 83 segue o original) as cordas se somam a ele emoldurando o encontro. “Alguém que vi de passagem / Numa cidade estrangeira / Lembrou os sonhos que eu tinha / E esqueci sobre a mesa”.  É o complemento do pensamento, do caminho percorrido solitariamente à descoberta do outro. Seria um bom encerramento para a idéia. Mas Milton volta a ela anos depois.

Com Que bom, amigo Milton consegue dar um passo à frente. O que era um encontro fortuito e de passagem se torna efetivamente uma comunhão. Nesta canção, o tema é indissolúvel da própria composição, sublinhando a letra que repete quase tautológica: “Que bom, amigo / poder saber outra vez que estás comigo / dizer com certeza outra vez a palavra amigo / se bem que isso nunca deixou de ser”. É, agora sim, a celebração do ideal coletivista que caracteriza o Clube e que levou Milton e Lô a convidarem novos participantes para este segundo álbum. O que era um grupo de amigos agora é uma congregação.

Milton sempre afirma que o Clube da Esquina é muito maior que seus participantes originais. Ele seguiu à risca este pensamento tocando com músicos de variadas vertentes – de nomes do jazz a estrelas pop como os grupos RPM e Duran Duran, e apadrinhando cantoras como Clara Sandroni e Maria Rita. Esta diversidade não o impede de ter uma obra profundamente particular. O uso reiterado de temas como os que abordei são uma de suas assinaturas. Um reconhecimento de si e do outro. Um modo de possibilitar o encontro.

Milton e o Eterno Retorno da melodia – O tema de Pablo

Um bocado mais de Milton Nascimento. Especificamente, sobre algo que ele volta  meia faz em suas composições, e que me interessa particularmente, que é usar o mesmo tema instrumental em duas ou mais canções, de diversas formas. Muitos compositores citam a si mesmos, e assim tentam conferir algum tipo de unidade a sua obra. Mas geralmente estas citações se dão na letra, não na melodia, e muito menos nos arranjos. Ao fazer isso, Milton carrega de uma canção para outra significados diversos, agrega em uma a lembrança da outra, mas de forma mais sutil que na citação da letra. Em dois posts, trarei dois exemplos desta técnica. Eis o primeiro.

Pablo é uma canção de 1973. Na verdade, são duas. Pablo I, (a que nos interessa) construída sobre uma base de piano, é uma canção singela de Milton e Ronaldo Bastos em que ele usa um artifício característico: a segunda parte modula para tom menor, e o contraste vai se acentuando até desembocar numa instabilidade harmônica de suspense (aqui reforçada pelas cordas vertiginosas) e voltar ao tom inicial numa espécie de redenção (aqui, com o coro de crianças). A mesma estratégia foi usada por ele anos depois na versão de La Bamba que, com letra, acabou gravada por Maria Rita com o nome A Festa. Por coincidência, A Festa é também o subtítulo da segunda Pablo.

Pablo – Milton Nascimento – versão em inglês do álbum Journey to Dawn, de 1979 (escolhi esta versão em vez da original, do álbum Milagre dos Peixes, por esta ter um arranjo bem mais amadurecido, mas com o mesmo tema no acompanhamento. A primeira gravação, em compensação, é cantada por um menino, o que é um dado importante. Outra coisa: as duas canções Pablo foram gravadas na mesma faixa, emendadas. Isolei Pablo I na edição.)

Em 1993, Milton lançou o álbum Angelus, que à época chegou a ser saudado como um terceiro Clube da Esquina internacionalizado, tamanho o calibre das participações – Peter Gabriel, Herbie Hancock, James Taylor, Pat Metheny, Jon Anderson, Wayne Shorter. Nele, há duas versões da pequena canção – quase uma vinheta – Sofro Calado, dele e de Régis Faria. A primeira aparece bem no meio do álbum, e é exclusivamente arranjada pelas vozes de Milton sobre percussão.

Sofro Calado – primeira versão

Já a segunda, que encerra o álbum, tem como base exatamente o tema de Pablo, tocado ao piano, evocando diretamente as gravações de 1973 e 79.

Sofro Calado – segunda versão

A versão cantada sobre as vozes está em modo menor, o que faz com que o intervalo inicial ascendente da palavra sofro fique também menor. É quase uma blue note, a nota característica do blues que é propositalmente desafinada para baixo. As vozes em falsete de Milton sobrepostas no arranjo são gemidos de sofrimento que sublinham a letra.

A versão cantada sobre o piano está em modo maior, e o plano da retomada do tom que descrevi então é realizado ao longo do álbum, como uma canção dividida estrtegicamente em duas. O álbum em si é “trazido para dentro” da música, sendo posto entre as duas versões. A suavidade do piano original de Pablo, com sua letra de fortes metáforas, sugere a identidade entre as canções, colocando Pablo como a primeira pessoa das duas histórias. O menino que cantou sua própria história em 1973 tornou-se adulto, sofre de amor, mas se consola na infância que continua dentro de si. O sofrimento da primeira gravação ganha uma dimensão de redenção.

Meu nome é Pablo
Como um trator é vermelho
Incêndio nos cabelos
Pó de nuvem nos sapatos
Meu nome é Pablo
Nasci num rio qualquer
Meu nome é rio
E rio é meu corpo
Meu nome é vento
E vento é meu corpo
Incêndio nos cabelos
Pó de nuvem nos sapatos
Como um trator é vermelho
Pablo é meu nome
Meu nome é pedra
E pedra é meu corpo