Uma, duas, mais ou nenhuma MPB

Um artigo de Rômulo Fróes em que ele, através da análise dos trabalhos recentes de Chico Buarque e Caetano Veloso, aponta direções para a canção brasileira, teve desdobramentos diversos em debates nas redes sociais. Assunto: a existência (ou não) de uma cisão da produção atual em duas premissas distintas: os que partem do paradigma melodia/harmonia, considerado mais tradicional e configurado no Brasil a partir da Bossa Nova; e os que partiriam da premissa de uma pesquisa de timbre, baseada principalmente nas possibilidades de estúdio e de equipamentos eletrônicos, seguindo na verdade uma outra tradição, que passa pela Tropicalia, pelo Manguebeat e pelo rock em geral (num resumo absolutamente esquemático, como são os resumos). Aqui no blog, além desses dois posts, já trouxe artigo de Mauro Aguiar que leva o assunto avante.

Agora é minha vez de contribuir um pouquinho, e para isso quero partir de uma afirmação de Rômulo Fróes, sobre o arranjador do Chico. Segundo o Fróes, Luiz Claudio Ramos não segue as descobertas de Chico, tendendo a corrigi-las, tornando-as mais palatáveis ou convencionais ao arranjá-las. Fróes diz que isso é possível porque Chico abertamente prefere se manter à distância da produção de seus álbuns.

Parto daí porque discordo, ao menos em boa parte, e porque acho que esta é uma ótima via para se compreender melhor a divergência que há hoje na chamada MPB (inclusive em relação a este termo…). Uso como exemplo uma canção do Chico que foi gravada duas vezes.

Pivete – 1978

Pivete – 1993

O arranjo da primeira gravação de Pivete é do coautor, Francis Hime, e o segundo é de LC Ramos. Pivete, quase disfarçadamente, é um samba amaxixado. A melodia se resume um só motivo que Francis vai desdobrando brilhantemente, e com isso a harmonia se torna um elemento diferencial. O arranjo de Francis é baseado em um seu ponto forte, a escrita orquestral – aqui para flautas e metais, elas logo na abertura, eles mais adiante, que vão fazendo contracantos com a voz do Chico, tendo também cada um dos naipes seus próprios motivos que se desdobram. O modo de Francis mostrar a harmonia da canção é através das variações motívicas de vozes e instrumentos.

Com Luiz Claudio Ramos as coisas se dão de modo diferente. Chico compôs uma espécie de pregão poliglota do menino de rua, e assim a melodia tocada pelo sax na introdução se resume a uma segunda voz destes versos. Ao longo da gravação, percebe-se que nenhum instrumento além desse faz linhas melódicas facilmente reconhecíveis – no máximo algumas pontes cromáticas da flauta mais ao final. Os espaços entre as frases cantadas, na maior parte das vezes, são ocupados por sequências de acordes da guitarra de LC Ramos.

O cantor e compositor Sérgio Santos, ao comentar o artigo de Rômulo Fróes, já havia ponderado que não achava possível que Chico Buarque desse carta branca ao seu arranjador a ponto de não se importar com o resultado final do arranjo. De fato, ao lançar um álbum, no mínimo Chico dá seu aval ao que foi feito, de modo que a gravação, englobando todos os seus aspectos, leva afinal a sua assinatura. Não é posível considerar que o arranjo de uma canção do Chico se dê à sua revelia, seja quem for o arranjador.

Porém, mais que isso, de certo modo tenho a impressão contrária a Fróes: se o caminho do Chico é o da harmonia (ou seja, na contraposição descrita lá acima, ele, que se diz um continuador de Tom Jobim, parte deste elemento em sua composição, deixando decididamente em segundo plano questões de experimentação tímbrica), onde ele diz mata LC Ramos diz esfola. Seu arranjo sem solos usa a própria harmonia da canção para ocupar os espaços, chegando a esticar finais de versos e mudar seus acordes finais – nas palavras pinel e direção, respectivamente as últimas de cada estrofe, estas mudanças chegam a forçar uma mudança melódica na extensão dos versos, subindo um tom apoiada em um acorde suspenso, o que dá realmente a idéia do desequilíbrio (no caso, mental) e da falta de direção. Nada disso estava na canção original.

O que estou dizendo aqui não vai necessariamente contra o que Rômulo Fróes afirmou. Ele disse que não há enfrentamento ali, que os arranjos escritos por Ramos tendem ao fisionômico, enfraquecem as letras, numa tentativa de tradução inocente e anacrônica. E realmente, sob este ponto de vista, é possível afirmar que o que ele tenta é repetir no arranjo o que Chico canta na letra. O que muda é a maneira de olhar. Fróes considera que para LC Ramos o diálogo arranjo/canção não comporta desacordos. Mas esta crítica não pode ser então estendida, em diferentes gradações, ao arranjo de Francis Hime? À música de Francis Hime? E de Edu Lobo, e de Tom Jobim? O que Luiz Claudio Ramos faz, no fim das contas, é a radicalização, até as raias do figurativo, da vertente da determinação harmônica sobre a canção de que Chico é herdeiro.

O que talvez seja então um sintoma da falta de comunicação entre estas duas vertentes, ou também da verdadeira dicotomia (e aí chego onde queria): entre os que veem na canção primordialmente sua dimensão musical, e os que vislumbram nela algo que se utiliza principalmente da música, entre outras possibilidades. Dito de outra forma: os que empregam estritamente a linguagem musical (ou seja, aquilo que se estipulou historicamente como sendo os elementos da música) em sua narrativa, e aqueles que, na construção desta narrativa, partem destes elementos musicais para através deles dialogar com outras linguagens e estéticas. Um bom exemplo é o trabalho dos Titãs, especialmente em sua fase mais popular, entre 1985 e 1995. A música dos Titãs é habitualmente simplíssima, em termos de composição. Muitas de suas canções tem apenas dois ou três acordes, como é comum no mundo do rock. Em muitos casos os arranjos são detalhistas, mas ainda sim propositalmente muito crus. O que torna o trabalho dos Titâs interessante? Ora, os desdobramentos conseguidos em termos estéticos, éticos, lingúisticos, políticos, semióticos – além dos musicais – em suas canções. Claro, numa canção do Chico Buarque estes desdobramentos serão igualmente importantes. Só que numa canção do Chico eles são conseguidos na música, enquanto nos Titãs são conseguidos a partir da música.

Recentemente saiu uma interessantíssima reportagem no jornal O Globo sobre um grupo de compositores cariocas que não se enquadra nas molduras da que anda sendo chamada Nova MPB. Um dos integrantes, Armando Lôbo, deu uma declaração bombástica:

Entre Michel Teló e Romulo Fróes (integrante da nova geração paulista), sou mais o Michel Teló. Prefiro algo feito para puro entretenimento do que algo cheio de pretensões mas que musicalmente é raso.

Minha primeira impressão desta frase foi de que ela seria verdadeira apenas como provocação necessária, de forma semelhante à famosa frase de Tom Zé, em 1969: Respeito muito Chico Buarque, afinal, ele é meu avô! Mas, a ser tomada a sério, a visão de Armando sobre a música de Fróes me parece um espelho da visão de Fróes sobre a de Luiz Claudio Ramos. Um parece avaliar a narrativa construída pelo outro com seu próprio viés, que ora exige uma certa complexidade musical, ora considera que esta complexidade em si é insuficiente. Assim, perigamos chegar a uma visão maniqueista de dois polos inconciliáveis, o que me soa absolutamente falso. E isto porque não faltam músicos capazes de transitar entre estes opostos aparentes com desenvoltura. A começar pelo próprio Caetano analisado por Fróes, que, joãogilbertiano declarado desde sempre, tem seus últimos trabalhos calcados no rock, passeando livremente entre os eixos horizontal da Bossa Nova e vertical do Tropicalismo, na avaliação de Luiz Tatit no livro O século da canção (ainda uma outra visão da mesma dicotomia, no fundo). Como Joyce e Marcos Valle, descobertos pelas pistas de dança inglesas, fizeram trabalhos instigantes com DJs, e como no grupo heterogêneo da Nova MPB há sonoridades de todo tipo, agrupadas por conceitos às vezes mais mercadológicos que artísticos.

A foto que abre este texto foi postada por Mauro Aguiar no Facebook, com a afirmação galhofeira de que seria a reação deles ao saberem das discussões recentes que os envolvem. Podia ser sobre as discussões antigas, já que desde sempre são colocados em lados opostos, e desde sempre a música brasileira tem lados opostos, às vezes bem mais de dois. Este assunto, obviamente, não tem fim. Ele vai se resolvendo no trabalho criativo diário de nossos músicos, muito mais do que em declarações ou provocações. Prefiro terminar citando outro dos compositores retratados na reportagem do Globo, Pedro Moraes, em resposta a mim numa das discussões do Facebook provocadas por ela.

Para muito além de quais são os elementos materiais constitutivos da obra, é possível e NECESSÁRIO falar sobre os sentidos que emergem, sobre a capacidade ou ao menos o ímpeto de transcender a forma e gerar um deslocamento na visão, uma vertigem no entendimento, abrir uma fresta para o Real penetrar e fecundar a ficção do cotidiano. Quando são citados na reportagem Mozart, Jorge Ben (no disco com o Duprat), Bjork… isso é um chamado a deixar de lado a divisão histórico-técnica entre o “time do giz de cera” e a “turma da massinha de modelar”, e passar a falar sobre quais são as imagens e esculturas que se estão fazendo, e como elas se relacionam com a capacidade acumulada ao longo da história do homem de implodir os sentidos para dentro de um Sentido — chamada Arte!

Rômulo Fróes e um debate

O artigo do Rômulo Fróes que postei aqui gerou também um intenso debate no Livro de Caras, provocado pelo compositor e cantor Chico Saraiva, que botou o artigo (publicado originalmente no jornal Estado de São Paulo) no seu perfil. A partir daí, um time de músicos passou a se pronunciar, incluindo o próprio Rômulo, e mais Mauro Aguiar (autor do ótimo álbum Transeunte), Silvio Mansani, Paulo Conceição Rocha, Pablo Castro, Makely Ka, o excepcional Sérgio Santos… e o que vos fala. Daí que considerei que não se podia deixar aquela quantidade de opiniões abalizadas (embora descompromissadas como em todo bom bate-papo, e às vezes até provocativas no calor da hora) descer linha do tempo abaixo. Portanto, transcrevo aqui a discussão (recomendando novamente a leitura anterior do artigo, linkado acima), eliminando apenas os comentários alheios ao assunto em pauta, para facilitar a compreensão. O post ficou longo, mas vale a leitura de cada vírgula, para se entender um pouco melhor como os acontecimentos de mais de 40 anos atrás são, de certa forma, determinantes daquilo que é considerado a modernidade da música brasileira atual. Aproveitem.

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Silvio Mansani: Ótimo texto, concordo que a galera tem curtido mais esse lance dos timbres com ótimo resultado aqui e ali… mas pra mim o plano da composição é fundamental porque foi onde o Brasil melhor se diferenciou do mundo. Opinião pessoal. Espero que essa nossa época de músicos (como nunca antes na história desse país) estudados chegue a uma bela síntese de nosso som. Acredito que muitas fichas ainda precisam cair…

Mauro Aguiar: Li e discordo de quase tudo. Mas quem sou eu, né? Concordo com o Silvio. Por que o dito moderno tem que passar por esse alinhamento? Esse julgamento do Luis Cláudio é simplista, peloamordedeus! Anteontem foi guitarra, ontem foi teclados, hoje é “barulinho”. Muita gente se pendura nisso, e a música continua soando, nota após nota, e alguns silêncios que ninguém é de ferro, né?

Sílvio Manzani: Verdade, Mauro, o que mais incomoda é o julgamento simplista do Cláudio, que fez coisas maravilhosas com o Chico. Mas o texto vale enquanto porque toca nas questões fundamentais, deixando seu ponto de vista. Quanto ao Caetano, acho fantástico quando a sua “modernidade” vem alicerçada por uma boa composição, o que nem sempre tem acontecido em seus últimos trabalhos. Para mim um belo arranjo não salva uma canção ruim (ponto de vista, novamente).

Paulo Conceição Rocha: Senhores, questão de clareza: fui ler o artigo tendo antes corrido os olhos aqui nos comentários “o julgamento simplista do L. C. Ramos”, fiquei curioso, mas o que rola mesmo (sem dubiedade) é um julgamento simplista (e eu diria, maldoso) SOBRE o L. C. Ramos. Enfim… o texto traz algumas boas análises mas, para mim, perde valor ao juntar os cacos do que foi analisado (quebrado). Ponto principal um: desde os lieds a canção não tem mais tanto vínculo com a forma somente. Ponto principal dois (e não menos relevante): se fosse pra ser prosaico bastaria dizer que “compor é organizar sons e pronto”, se fosse pra ser pirracento “pobre daqueles que não passam da página 20 nos livros de teoria e acham que depois do ritmo e da melodia, a harmonia é a coisa mais complicada na música ocidental”, mas serei (ou tentarei ao invés de meramente desfazer algo) construtivo no meu ponto de vista sobre o cenário atual (e o de sempre!!)… silêncio-ruído-intermitência-ritmo-textura-harmonia-melodia-tema-respiro-silêncio, perto do que Platão já chamou de música das esferas. E esse é apenas um padrão em parábola invariavelmente atingido pelo tempo, pelo caráter, pelo timbre, pela dinâmica etc. Mas, honestamente, voltando ao autor… não dá pra levar a sério quem escreve num jornal de grande circulação essa pérola “Os músicos dessa geração discutem sobre pedais, amplificadores, microfonação, válvulas, softwares de gravação, instrumentos antigos, etc., tanto quanto PROPRIAMENTE DE MÚSICA.” Então eu não sei mais o que é música!!

Sílvio Manzani: Paulo, minha leitura dinâmica não atentou para o “propriamente de música” kkkkk

Mauro Aguiar: Quanto a esse comentário: Os músicos dessa geração discutem sobre pedais, amplificadores, microfonação, válvulas, softwares de gravação, instrumentos antigos, etc., dou a palavra a Schopenhauer:

A cada trinta anos, desponta no mundo uma nova geração, pessoas que não sabem nada e agora devoram os resultados do saber humano acumulado durante milênios, de modo sumário e apressado, depois querem ser mais espertas do que todo passado. É com esse objetivo que tal geração frequenta a universidade e se aferra aos livros (substituiria nesse caso por tecnologias) sempre o(a)s mais recentes, o(a)s de sua época e próprios da sua idade. Só o que é breve e novo.” Ou seja se abraçam ao efêmero, como náufragos desesperados, tentando se salvar no meio de um oceano de signos insignificantes!

Paulo Conceição Rocha: Mauro, entendo perfeitamente sua linha de raciocínio (eu mesmo sou um brigão contumaz à Academia e aos ‘novíssimos’ processos artísticos, estéticos e blablablás)… mas a discussão que levantei com essa citação do autor não foi por conta de mérito ou demérito para qualquer geração… e sim pelo espanto de alguém não considerar PROPRIAMENTE música aquilo experimentado à guisa de timbres e técnicas… não estou levando em consideração absolutamente nenhum juízo de valor quanto ao produto dessa gente. Ah, vale lembrar que a música ocidental tal como nós conhecemos é quase um bebê se comparada às práticas sonoras (essas sim milenares) de outros povos… alguns deles estuprados pelas novas tecnologias da Europa pós-Idade Média.
E outra (só pra identificarmos um pouco apesar do facebook-capuz)… sou um grande viciado em estrutura musical (totalmente tapado em eletrônica ou barulhinhos). Mesmo que conteste o engessamento da Academia, vivo me escorando em técnicas literárias e compositivas para escrever nem que seja um recado em papel de pão… contudo sou eu mesmo que as tento criar, só servem pr’aquele propósito… natimortas… tais qual poesia mergulhada em idioma instantâneo. Estou certo que discordamos nesse ponto, mas às vezes o produto é a coisa menos importante… processo porém. É que ferramentas também gostam de ser inventadas!!

Eu: Senhores, estou aqui lembrando de uma entrevista do Caetano há anos, falando do distanciamento entre os tropicalistas e o Chico, ainda na década de 60/70. Ele dizia que o Chico e outros continuavam na busca do belo, enquanto ele, Gil, Tom Zé, se interessavam também pelo que era, de alguma forma, feio. Acho que isto tem um pouco a ver com o texto do Rômulo. Grosso modo, é uma separação de dionisíaco e apolíneo.
Agora, outra coisa é pensar na questão do timbre como um condutor da canção, tanto quanto letra, melodia e harmonia. Se antes da bossa nova a harmonia era, de certo modo, secundária, a geração do Chico e Caetano a recebeu já posta na linha de frente. Mas o tropicalismo foi o primeiro momento em que o timbre se assumiu também protagonista, a ponto de eventualmente ofuscar outros componentes. Então, acho que isso passa pelo que o Wisnik chama de canção expandida. O Chico permanece como um mestre pré-timbre (não cronologicamente), o Caetano fazendo questão de se atualizar, mas ambos mantendo-se fieis ao que determinaram para suas obras ainda em 68/69, indo à últimas consequências. Enfim, elucubrações. Abraços a todos.

Chico Saraiva: Lendo ainda só o, já muito interessante, último escrito. É aquele negócio da “régua e do compasso” né… O Tatit no “século da canção” traça isso entre o tropicalismo e a bossa. mas como o chico diz que “tudo que fez foi pro Jobim”, concordo com Túlio, parece ser equivalente…

(Chico então abre um novo post para levar o debate adiante)

Camaradas, acordando em casa e com água-cristal de cachoeira de ouro preto ainda no corpo procuro então ajudar na busca contínua do cristal-idéia, que possa multipicar luz…
Ainda na “Régua/Compasso” que muitos apontam (tatit por exemplo em o “século da canção” – com a bossa em uma das pernas) como os dois principais parâmetros da música brasileira, em jogo que se dá entre o sentido “extenso” de “Buarque/Jobim” e “Tropicália”:
As noções de “moderno”ou”novo”ou”atual”ou “contemporâneo” variam de caso pra caso. Felizmente até pois é sinal de fertilidade, e a faísca do choque normalmente faz fogueira. Porém as vezes estão simplesmente falando de coisas diferentes e claro, gerando confusão de entendimento.
Hoje os jornais, com exceção do Tárik de Souza e não muitos outros, consideram o “novo” na acepção “pop”, que o tropicalismo sempre soube mastigar e que hoje se serve tanto dos “pedais” quanto dos sensacionais softwares que, a partir do clique/beat, chegam a resultados texturais (que a partitura nunca atingiria) com um simples “ctrl c ctrl v” e que com trabalho duro gera música. Esse trabalho mais rítmico-timbrístico, e mais dado á “De-Composição” (no melhor dos sentidos) é aqui a “Régua” tropicalista.
Mas há também o entendimento, “Buarque/Jobim” do que seria o “novo” . E, falando do que sei (que é música e não letra) esse impulso age no sentido da Composição melódica-harmônica. Busca que chega a pontos radicais nos últimos cds do Chico Buarque, que não cessa (e nem deve cessar) de intuir mais e mais soluções musicais para o que aprendeu ao pé do piano de Jobim. E vasculhar a explosão do sistema-harmônico-tonal que paira no ar historicamente ao alcance do ouvinte “médio”. Eis o “compasso”.
O curioso é que o “novo” para “jobim/buarque” por ser melódico-harmônico é tido como o “velho” pelo “tropicalista de hoje” qdo esse se torna quase exclusivamente tímbrístico-rítmico.
Ué!! Já que estamos aqui e temos essa riqueza toda de possibilidades vamos usá-las, e agir artísticamente!!
Salve a música melódico-harmônica-timbrística-rítmica !!!!
Agora vou tomar banho.

Rômulo Fróes: Caro Chico! Sem me estender muito, pois não caio nesse discurso Fla x Flu, Jobim/Buarque x Tropicália e sei que você também não!
Em momento nenhum no meu texto, pra quem ler com atençÃo, coloco Chico ou Caetano a frente do outro. Ao contrário, falo, penso, discuto os dois por achar que hoje são eles, os grandes da nossa música, ainda mais se pensar na triste figura de Milton Nascimento, no afastamento de Gil para a Política e em Paulinho que não grava mais e que numa entrevista disse não querer mais compor!
Pois bem, dito isto, o mote central do meu texto é que Chico e Caetano são os dois que ainda tentam levar adiante a canção brasileira, cada qual a seu modo. E a meu ver, Chico encontra mais dificuldades, justamente por não estar ligado no novo jeito de produzir música que é algo muitíssimo importante e que vai muito além dos pedais.
Do ponto de vista da composição, meu texto é claro pra quem quiser ver, que glorifico os três últimos discos de Chico, digo que ele talvez tenha encontrado novos caminhos na linha que você chama de melódico-harmônico, não só na musica dele, mas para a própria canção brasileira, não chamei hora nenhuma esse caminho de velho.
O que chamo de velho e acredito mesmo nisso é seu comportamento em relação a gravação dos seus discos, sem nenhum comprometimento, deixando para os outros o trabalho de registrar as canções em disco. Isso já foi dito por Chico e fica claro no documentário do disco Carioca.
Pois então, para mim, esse comportamento que ao longo de sua carreira não impediu de construir sua grande e incontestável obra, talvez nesse novo momento que vivemos, impeça a plena realização da novidade que são suas canções recentes! E volto a afirmar, acho os arranjos dos discos de Chico Buarque muito pobres, sem nenhuma imaginação. Digo isso sem ofensa, nem polêmica, artifícios dos idiotas.
Para mim discutir a obra de um grande artista, como são Chico e Caetano, está longe de desrespeitá-los, ao contrário, só exerço meu pensamento com quem tenho grande admiração!
Isso porque não iria me estender muito,rsrsrs
Grande abraço seu Chico!

Pablo Castro: Sou a favor das duas “novidades” : a composicional e a de arranjos , timbragem e produção nas gravações. Mas sinto muito que o pólo vigente hoje tende muito à segunda : daí que, embora admire a audácia, os últimos discos de Caetano não me convencem tanto. Mas concordo que o Chico entregou há uns 30 anos a produção de todos os seus discos ao Luis Cláudio Ramos, excelente arranjador, mas conformado ao modelo clássico de sonoridade . Na época do Francis Hime como arranjador dos discos do Chico, a coloração era mais variada, por vezes mais pesada, de qualquer maneira mais incisiva. O Caetano parece querer sair mais e mais desse lugar confortável, o Chico parece resignar-se a ele. Mas parece ter mais direção como compositor hoje, mais consistência, o Caetano vai pra onde ninguém foi …

Sérgio Santos: Meu caro Chico Saraiva, tudo bem com você? Esse assunto é de corroer as entranhas e, por ser o cerne da apreciação que se faz hoje da nossa música popular, merece páginas e mais páginas de reflexão. Li o artigo do Estadão, de Romulo Fróes de Carvalho, e, respeitosamente, discordo de quase tudo ali. Ele me parece produto de uma maneira atualmente predominante de pensar a música em geral, e mais particularmente a canção, maneira essa que parece abolir da avaliação da música a importância dos seus componentes principais – harmonia, melodia, ritmo, e no caso da canção, o texto. Aos olhos dos que comungam essa visão, a lida monstruosa que significa o domínio dessa linguagem perde importância gradativamente, perdendo significado diante do que hoje passou a se chamar “produção”. É tanta a reverência às “sonoridades” que a tecnologia traz, que o olhar dito moderno sobre a música atual classifica a não utilização desse arcabouço como retrocesso. A importância que se dá ao todo poderoso “produtor” capaz de gerar as novas “sonoridades” é tal que se questiona o produtor de Chico, como se ele fosse um artista incapaz de ter nas mãos as rédeas do que faz, ou mesmo de demitir seu produtor caso percebesse algo que fuja de sua concepção musical. Critique-se a Chico pelo que for criticável em sua obra, ele assina a concepção do que faz. Tudo bem Caetano ter perdido o medo da música com Morelenbaum. Certamente isso elevou seu trabalho. Afinal, até onde sei, Caetano é compositor de música. E tudo bem também que depois tenha buscado outro rumo. A eleição desse caminho como paradigma é que me parece um grande problema!! Parece que a busca da renovação que passe pela elaboração do conteúdo daquilo que você tão bem classifica de “composição melódico harmônica” (e essa busca de renovação existe em uma infinidade de trabalhos recentes), simplesmente não seja mais possível sem que passe pelo apertar dos botões da manipulação de timbres de um processador. Nada contra isso, mas por favor, sinto que o padrão de julgamento que qualifica “ser novo” e “ser velho” partindo desses princípios está ficando cada dia mais deturpada e infantil. Sem desmerecer um milímetro quem segue o caminho da eletrônica, há que se reconhecer que saber lidar com aparelhos não faz de ninguém melhor músico do que alguém que se dedica de outra forma à composição. Eu, por exemplo, tenho dedicado horas da minha vida a entender como soa a combinação de timbres entre um violoncelo e um fagote, em que região e com que expressão eles melhor se somam, ou que efeito é possível conseguir com suas diferenças de timbre. Será que eu sou “velho” e consequentemente ultrapassado por isso, comparando-me a alguém que lide com a produção tímbrica possibilitada pela eletrônica? Música para mim não é isso. Isso está mais próximo do preconceito que da música. Os dois caminhos são meras ferramentas de desenvolvimento de idéias. As idéias sim, elas serão inovadoras ou não, ou melhor ainda, originais ou não!!! Citando dois trabalhos recentes, Canteiro, de André Mehmari, e Flor de Fogo, de Chico Pinheiro (poderia citar dezenas), vejo neles belos exemplos de mergulhos na complexidade da linguagem musical. Prescindiram de qualquer base eletrônica. Estão desconectados de seu tempo por isso? Talvez seja menos perceptível e mais difícil aos ouvidos aquilo que envolve a complexidade harmônica e melódica. E bem mais trabalhoso de se gestar. As inovações da “sonoridade” eletrônica, ao contrário, são imediatamente perceptíveis. Mas quem sabe até quando isso será visto como “inovador”? Coisas do tempo. Eu cá comigo, torço para que a música brasileira não se renove apenas pelo “som”, mas principalmente por aquilo que esse “som” veicula, as idéias musicais criativas, as belas composições, as belas melodias, as belas harmonias, as inovações rítmicas, a elaboração e a complexidade, estejam elas em que “som” estiverem. Se forem criativas, fatalmente estarão sendo levadas por um “som” igualmente criativo, portanto por um belo “som”. Um abraço grande Chico!!!!!

Chico Saraiva: Salve camaradas.
Agradeço as palavras, inclusive a do autor do artigo, no qual vi polaridade e por isso apertei no “share”. E que está fazendo agente trocar idéias , portanto, funcionando.
Li. E se tem uma coisa que me dá felicidade é ver a música brotar de coisas aparentemente distantes. Acho mesmo que isso acontece com todo mundo que compõe, só variando os pólos de atração pra cada pêndulo-artista. Pelo menos só tomo como referência quem tem essa incapacidade de escolha nítida, apesar de admirar as, cachaças por exemplo, puras. E mesmo no que supomos puro isso acontece, pois pra ser puro primeiro foi misturado, e tá lá o boi comendo a bagaceira da cana, que não me deixa mentir.
E nós demos a sorte de nascer no Brasil, terra do misturado.
Com o que aprendemos com a grande geração de cancionistas dá pra fazer de um tudo. e tudo tá aí pra ser feito. das mais variadas maneiras, sem que procuremos um espelho exato do nosso modo de fazer no modo de fazer do outro. o que aliás seria chatíssimo. Vamo no plural que esse é a nosso cacoete.
E o papo não é evasivo, é de tentar pelo menos trincar os muros que vão se criando. É crença no “indefinido”, e respeito pela diferença e pela força maior que brota dela.
Cito um pensamento que me veio.

Esse regime de “indefinição” (entre o branco e o preto, entre o
homem e a mulher, entre a casa grande e a senzala) continuaria a ser
pensado como nossa principal característica, nossa grande
particularidade, e também como aquilo que nos dá “graça”.
Hermano Vianna em “O mistério do Samba”

Boas noites camaradas!
Agradecendo de novo á Rômulo, Sérgio e Pablo e os amigos que estão curtindo o papo que tem tudo pra ser é muito bom.

Pablo Castro: Uma coisa interessante a se notar dentro dessa dicotomia é a influência perene do tropicalismo que, ao abrir o leque das influências antropofagocitáveis, num contexto histórico explosivo, acabou criando uma tradição da eterna assimilação dos elementos da indústria cultural, e uma quase impossibilidade de criticar a imposição de vários desses elementos na música brasileira. Ilustrando isso, note-se o especial de fim-de-ano da Globo, em que Gil e Caetano aparecem com Ivete Sangalo como se fosse a coisa mais natural do mundo. O próprio efeito perverso da dominação da Globo de norte a sul do país sequer é comentado nem por Caetano nem por Gil- embora seja importante lembrar que como Miinistro da Cultura Gil chegou a enviar para o Congresso o projeto da Ancinav, que pretendia regulamentar minimamente a questão da mídia e sua correlação com a produção cultural do país ( o projeto foi , naturalmente, barrado) . A música brasileira hoje evita qualquer tipo de reflexão e crítica, pior ainda, se consolidou em torno dela uma espécie de pirâmide simbólica de nobreza, totalmente impermeável a qualquer coisa que não seja o mercadão, caracterizado pelo amplo predomínio do jabá e por relações sempre afáveis entre os artistas , vemos de Lulu Santos a J Quest, Charlie Brown Jr a Michel Teló, Lenine a Ana Carolina, de Otto ao Rappa, um quadro tão desfigurado e sem liga que dá pena saber que a música brasileira seja representada por uma amostra tão limitada de expressões musicais – limitada não pela falta de heterogeneidade, mas pela falta de qualidade mesmo, simplesmente. Essa clara diminuição da importância da canção na história cultural do país se dá muito mais pela manutenção dessas relações oligopolísticas entre as gravadoras, as tvs e as rádios , do que pelo esgotamento da linguagem intrínseca da canção, como chegou a sugerir Chico Buarque na citada entrevista de 2004.
Outra coisa que me incomoda em relação tanto a Chico quanto a Caetano é o absoluto descompromisso com as novas gerações de cancionistas, acho que a intuição deles seja a de que não há mais o que fazer de significativo em matéria de canção, depois de sua própria geração. Isso é o que perpassa a idéia da morte da canção , em que Chico parece querer dizer : : depois de mim quem vai sequer se igualar em termos de obra, quanto mais me superar ? Provavelmente ninguém depois dele vai conseguir se igualar em termos de influência cultural, alcance da obra, quantidade de obras-primas, impacto político etc Mesmo no aspecto puramente composicional, harmônico -melódico, pra não falar das letras, é muito difícil um compoisitor hoje construir uma obra tão vasta, tão original e auto acumulativa como o Chico. Ou tão absolutamente inovadora e poética como a do Caetano. Mas isso não significa que seja impossível fazer coisas novas na canção, na harmonia, na melodia, no ritmo, na letra. Realmente tendo a concordar mais com o Chico Saraiva e com o Sérgio Santos : é mais difícil fazer uma música original do que um arranjo ou uma produção originais. E mesmo os filtros que deveriam selecionar entre a produção musical independente o que seria realmente original , falham continuamente nesse propósito, preferindo no mais das vezes simplesmente encaixar trabalhos bem feitos em categorias próximas às do mercado. Nesse ambiente, é o vale-tudo : a quantidade de gente fazendo música hoje , e o alvoroço em difundir essa produção na internet diluiu tanto a música que pensamos estar numa terra de surdos.
Pra finalizar, só pontuando o que o Sérgio Santos falou : a criatividade e a originalidade melódico-harmônica devem ser buscadas, mas nem sempre o arrojo e a complexidade musicais por si mesmas geram grandes canções ; na imensa maioria das vezes, quando grandes instrumentistas ou compositores de música instrumental fazem canções, o resultado tende a ser aquém da expectativa, em geral faltam uma forma sintética e uma relação mais orgânica entre letra e melodia.

Makely Ka: Muitas questões aqui Chico e Rômulo! Na verdade o que mais me chamou atenção nem foi a discussão do tema em si, que é pra mim tão orgânico que não se apresenta mais como dicotomia, digerida que vem sendo aos poucos no meu próprio trabalho. Acho que as posições aqui já estão definidas com bastante clareza e não quero entrar aqui na questão dos arranjos protocolares do Luiz Cláudio Ramos nem nas habilidades técnicas do Pedro Sá. Acho também que inevitavelmente, para quem mergulha na canção, o paradigma Chico e Caetano está tão presente que parece ser possível ouvirmos cada um em ouvidos separados num headphone com canais independentes para deixar o cérebro misturar as referências como pano de fundo de nossa própria música. Como se fosse normal e confortável ouvir Carioca e Zii e Zie ao mesmo tempo!
Fora isso acho muito significativo e sintomático que reflexões tão profundas sobre o fazer musical estejam sendo feitas exclusivamente por músicos/compositores. Não admira portanto que a matéria que gerou a discussão tenha sido escrita por um outro compositor. Fico me perguntando se será um indício de que a crítica não consegue mais acompanhar o raciocínio.
O tema recorrente da morte da canção me parece nesse sentido mais uma dificuldade de interlocução com a crítica, que por sua vez sempre cumpriu o papel histórico de mediar a relação com o público, menos como tradutor que como instigador. Talvez porque as inovações hoje sejam mais sutis, o alcance menor, o retorno a longo prazo e o tema muito complexo.
Por acaso essa semana eu li na Bravo um artigo falando exatamente sobre a formação sentimental dos lusitanos a partir das canções de Chico e Caetano escrito por uma portuguesa. Fiquei surpreso que esse ainda seja um tema para os portugueses, e não somente um tema para os “músicos e compositores” portugueses. O texto é esse e demonstra a perícia e paixão que nossos jornalistas parecem ter perdido no decorrer dos anos (matéria aqui)

Sérgio Santos: Caro Makely, não sei, tenho grandes dúvidas se o que pra você é orgânico e deixou de ser dicotomia, de fato funciona assim tão digerido e assimilado para todos que se ocupam da música. Na verdade o que sinto é que há sim dois universos distintos, e que um deles é visto como continuidade do outro, no sentido de uma linha evolutiva. E é exatamente esse aspecto, essa idéia da qual discordo, que permeia a todo o texto do Romulo. Não estou aqui me referindo a Chico versus Caetano, mas às maneiras de se pensar e produzir música hoje. Acho que a tecnologia trouxe sim uma espécie de ruptura nisso, estabelecendo uma maneira distinta de realização, e com isso pouco a pouco foi se gestando um novo caminho estético. Na minha opinião, e isso é apenas a minha opinião, vejo isso muito mais como um rompimento gradativo, e cada vez mais estético, do que como uma linha evolutiva. Resumindo, não consigo achar que Pedro Sá ou Kassim sejam a evolução de Morelenbaum ou de LC Ramos, por mais que se possa gostar de uns ou de outros. Para mim, eles apenas lidam com linguagens diferentes e com maneiras diferentes de produzir música. Não cabe exigir de Morelenbaum ou de LC Ramos que produzam uma textura eletrônica, ou de Pedro Sá que escreva para orquestra. Eles poderiam até fazê-lo, mas nunca melhor do que aquilo que fazem em seus próprios universos. Não consigo entender que Chico tenha mais dificuldades em levar adiante a canção brasileira por não estar ligado ao novo jeito de produzir música, como acima afirma Rômulo Fróes. Nesse raciocínio está implícito que há uma única possibilidade evolutiva para nossa música, que é a filiação ao universo gerado pela tecnologia. Esse raciocínio, e ele existe como modo de pensar de uma grande parcela de quem produz e de quem “critica” música (concordo com você na sua opinião sobre a “crítica”), é o que define um caminho como evolução do outro, na minha opinião de forma equivocada. Eu vejo isso muito mais como universos distintos, com parâmetros diferentes, e que exigem critérios diferentes de produção, de avaliação e de fruição. Acho que todos os que se ocupam da música criativamente, independente da linguagem formal à qual se filiem, estarão contribuindo para a evolução da música brasileira, sendo a sua criatividade dentro dessa linguagem o único parâmetro válido para se avaliar essa contribuição. Mesmo que se queira passear pelos dois universos, para isso é preciso trocar os chips. E é ótimo que haja artistas que queiram fazê-lo, como Caetano, ou você. Da mesma forma que é ótimo haver os que só se dão bem com os botões; ou os que, como eu, não se sentem à vontade com eles. Não é a atitude individual que questiono. O que não me bate, e o que me soa como um grande equívoco, é enxergar um universo como evolução do outro.

Eu: Caramba, que maravilha de debate. Queria meter minha colher, partindo de um detalhe aparentemente insignificante, para depois generalizar. Não sei mais quem falou aqui que o Caetano teria “perdido o medo da música”, como definiu o Sérgio Santos, com o Morelenbaum. Acho que esquecemos aqui que ele trabalhou com o Duprat bem antes, o Duprat que era ligado às correntes da vanguarda musical erudita (assim como o Tom Zé, que é formado em composição). Numa comparação entre os dois arranjadores, o tratamento musical do Morelenbaum soa conservador.
E daí voltamos ao Tropicalismo como o divisor de águas desta história, a meu ver. Pois, grosso modo, até a bossa-nova (e aí me remeto ao que diz o Luiz Tatit) a composição brasileira era fundamentalmente melodia e letra, da qual se inferia harmonia – e isso valia mesmo para gênios como Pixinguinha, que foram tanto mais geniais talvez por estarem atados a estes parâmetros. Aí vem a bossa-nova, e incorpora um novo elemento, ou melhor, coloca-o em pé de igualdade com os outros: a partir daí, faz sentido pensar numa canção composta a partir da harmonia, com melodia e letra vindo depois – exatamente o ponto de Chico, d’après Jobim. E com o Tropicalismo surge pela primeira vez na canção brasileira (na brasileira, repito) a questão do timbre como elemento diferencial, no sentido de interferir na própria composição. E acontece a bifurcação entre Caetano e Chico – bifurcação que não é necessariamente completa, mais da parte do Caetano, que sempre voltou a se reportar à bossa-nova, enquanto o Chico permanece mais ou menos fiel à idéia de desenvolver até seus limites o modelo harmônico que herdou.
Desculpem se acabo soando meio didático (mas tinham sentido falta de críticos do debate…). O que enxergo é que hoje, como o Rômulo diz no artigo (ou numa entrevista que li, não sei), e o Makeli confirma, o que era rompimento no Tropicalismo hoje se apresenta como mais uma possibilidade, como um, ou vários novos instrumentos, ou como uma multiplicidade de métodos composicionais, vertentes diferentes que coabitam e podem trocar. Estou ouvindo o Recanto, canções de Caetano para a Gal Costa, arranjos eletrônicos em geral, e percebo que a maioria das melodias é extremamente simples, e me parece que de propósito, como se o Caetano quisesse se adequar a este universo. Na canção mais elaborada harmonicamente, Mansidão, que é na verdade uma bossa-nova e cuja letra faz menção a um violão que não se ouve (o contrário das obviedades que o Rômulo aponta no Luiz Claudio Ramos), o arranjo também é quase obrigado a ser menos cheio dos barulhinhos de que se falou. Então, são pontos de partida diversos, e há que se adaptar.
Finalizando, creio que há hoje diversos pontos de partida composicionais, frutos de uma história da música brasileira, e que podem e devem dialogar entre si, sem necessariamente condenarem um ao outro. Esta turma da qual o Rômulo, o Kassim e tantos outros músicos excepcionais fazem parte está investindo em algo próximo daquilo que o Wisnik identificou como a canção expandida, em que, a meu ver, o elemento timbre (e por extensão suas possibilidades de exploração num estúdio) tem papel fundamental, mas o próprio Rômulo já reconheceu uma vez que ainda falta uma certa maturação nos cancionistas desta turma para chegarem a um grau de excelência comparável ao da turma que trabalhou e trabalha partir das questões harmônicas e melódicas – nos quais incluo o Chico Saraiva e o Sérgio Santos – embora eles, obviamente, tenham uma enorme preocupação com o timbre também, ou não seriam músicos. Além destas duas possibilidades, pode-se pensar também no pessoal do rap, que parte dos elementos letra/ritmo, depois o timbre, harmonia por último. E vai por aí afora. Saudações.

Sérgio Santos: Caro Túlio, a a firmação de que Caetano teria dito que perdeu o medo da música com Morelenbaum veio do artigo de Romulo Fróes. Não consigo pensar como você, vendo Morelenbaum conservador em relação a Duprat. O que é ser conservador? O que acho é que eles são de praias diferentes e que ambos serviram como veículo das idéias musicais de Caetano, em momentos distintos. É Caetano que define o que quer dos seus trabalhos, e é ele quem determina a sua concepção e escolhe os seus produtores, o martelo é dele. Para concordar com você é preciso assumir que o Caetano que interagiu com Morelenbaum é conservador em relação ao Caetano do início do tropicalismo. Na verdade são fases distintas de um compositor inquieto do ponto de vista formal, e que lançou mão de diferentes arranjadores para viabilizar suas idéias. Também discordo que foi o tropicalismo que trouxe a questão do timbre como elemento diferencial. O tropicalismo pode ter incluído outros timbres como o da guitarra e do baixo elétrico, mas o timbre enquanto elemento musical já era explorado, e magnificamente, por Radamés, Cyro Pereira, Lyrio Panicalli e tantos outros maestros que tão bem sabiam usar o elemento timbre. A introdução de Aquarela do Brasil é tão conhecida quanto a própria composição, mesmo sem constar dela.

Eu: Sérgio, entendi o seu ponto, retiro a palavra conservador. Ela fica contraditória com o que escrevi depois, em relação aos vários caminhos. Reconfiguro dizendo que o Morelenbaum parte de um princípio diferente, que privilegia melodia e harmonia, enquanto o Duprat privilegiou timbre – agora, é óbvio que privilegiar um aspecto não significa descurar outro, é uma questão do que vai para a boca de cena em determinado momento – falando de arranjo.
Quanto à outra questão, Sérgio, tenho consciência que há inúmeras exceções à minha, digamos, generalização didática. Eu me referia exclusivamente ao uso do timbre como ponto de partida para a composição, prevalecendo sobre melodia e harmonia, ou mesmo eventualmente dirigindo-a. Sem dúvida a introdução da Aquarela é parte da música, e os maestros citados são mestres no timbre. Mas os arranjos deles somente poderiam influenciar a canção a posteriori, enquanto hoje há a possibilidade de se criar uma canção a partir, digamos, da sonoridade de um teclado, ou de um efeito de estúdio. Enfim, o que quis foi diferenciar a questão orquestral e de arranjo, onde o timbre sempre foi fundamental, da composição da canção, onde ele surge mais recentemente.
Mas agora me dou conta que na música regional brasileira, que é em grande parte o seu universo, o timbre se reveste de uma importância diferenciada, num caminho totalmente à parte do que é trilhado por esta rapaziada urbana, e é talvez a isso que você se refira. Foi exatamente este universo timbrístico tão rico que influenciou Guerra Peixe, Edu Lobo. Acho que este pode ser exatamente um ponto de encontro entre estas vertentes, como – e aí volto a usar o álbum da Gal como exemplo – na última faixa, em que o velho garfo no prato do Recôncavo fecha um álbum todo eletrônico, e sem choques, como um encontro. Espero ter me explicado melhor. Grande abraço.

Sérgio Santos: Caro Túlio, o uso do timbre enquanto elemento composicional não é nada novo, e todo o desenvolvimento orquestral da música ocidental se apoia nisso. Compor para uma determinada formação instrumental significa saber lidar com seus timbres, suas combinações, e é o vocabulário próprio a cada instrumento, suas possibilidades melódicas e as especificidades de seu timbre o que vai interferir e determinar o desenvolvimento da composição. Isso é assim a séculos. Foi assim com Villa lidando, por exemplo, com cellos e voz de soprano na Cantilena das Bachianas, ou Cartola com o seu violão e sua voz. Se eles usassem formações diferentes, teríamos possibilidades diferentes, e consequentemente músicas diferentes. O próprio Edu Lobo que você cita, afirma que há na sua música a que é de piano e a que é de violão. O timbre sempre foi fundamental! O seu uso em si como elemento determinante da composição não é uma conquista do tropicalismo. O que há, repito, é a incorporação de timbres diferentes aos usuais na época, o que, por si só cria novas possibilidades e caminhos. E isso se acentua hoje, graças às possibilidades da tecnologia, e, principalmente, por colocar esse universo à disposição de um número muito maior de pessoas que se dão melhor lidando com botões e equipamentos do que com instrumentos (sem demérito, por favor). Mas tudo isso são apenas novas possibilidades e não há porque considerar que usá-las ou não defina o que seja “novo” e “ultrapassado” em matéria de composição. Não há absolutamente nada de especial ou de novo no fato de se criar uma música a partir da sonoridade de um teclado ou de um efeito de estúdio. Pode se fazer isso desde sempre a partir de qualquer som. Semana passada compus uma valsa dedicada ao maravilhoso clarinetista italiano Gabriele Mirabassi, totalmente motivado pelo timbre do clarinete que ecoava na minha cabeça. Se ele tocasse trombone a composição seria outra. Não há nada de genial em timbres eletrônicos além do que há de genial em qualquer timbre.

Chico Saraiva: senhores, vamos pensando só pelo prazer de pensar.
Tem mesmo uma diferença enorme entre:
o que busca um músico que trabalha todo santo dia (no dedo, no bico, no relaxamentos do pescoço…) pra tirar uma “sonoridade plena” de seu instrumento acontece com o grande músico e camarada Mirabassi. No caso dele tangenciando a escola efetivamente “erudita”. De fato músicos assim inspiram o compositor “melódico-harmônico” (de canção também, por que não?) pois o desenho melódico, o canto, alça o tão desejado vôo da composição.
o outro lado da busca, o qual sem dúvida conheço bem menos e outros daqui podem aprofundar melhor,mas acompanho assim por alto no cotidiano de alguns amigos mais ligados á tecnologia e que tenho trabalhado em meu novo duo de violão com Daniel Murray, parece evidentemente chegar a outro conceito de timbre, incorporando o ruído, coisa que acontece muito na música erudita desde o crash do sistema tonal. Isso o tropicalista sacou cedo como Túlio mencionou aqui.
Vivemos ao longo do século passado uma polarização, que reverbera muito muito fortemente (como vemos), entre o NACIONAL erudito/POPULAR (no sentido mais foclórico) e a VANGUARDA/MERCADO. A questão é fruto do catastrófico programa-modernista, e tem já quase a mesma idade da canção “comercial”.
Não é mole, mas já tá na hora de virar a página…abraços!!!

Eu: Sérgio Santos, queria destacar justamente a sua frase que me parece fazer a aproximação entre o esquema que eu tentei traçar – e que, como bom esquema, é bem esquemático – e a sua opinião:

O que há, repito, é a incorporação de timbres diferentes aos usuais na época, o que, por si só cria novas possibilidades e caminhos. E isso se acentua hoje, graças às possibilidades da tecnologia.

Eu entendo o Tropicalismo menos como um rompimento que como uma abertura – como o Caetano falava, da linha evolutiva. O Tropicalismo foi um momento em que se tratou desta questão do timbre com muita ênfase, não necessariamente por ser inédita, mas de uma maneira muito mais deliberada do que as questões idiomáticas que você citou, Sérgio – do Edu e do Cartola, por exemplo. Não acho que seja à toa que o Rômulo e outros se considerem ligados ao Tropicalismo no uso destes elementos tímbricos novos que a tecnologia trouxe.
Mas enfim, agora me retiro um bocado e deixo as discordâncias discordarem, esperando outras opiniões, senão fica chato. Abração.

Sergio Santos: Caro Túlio Ceci Villaça. Só tentando clarear um pouco mais a minha opinião, concordo que a Tropicália tem mais o significado de criação de possibilidades diferentes que de ruptura. No entanto não a vejo como linha evolutiva, até porque a continuidade do pós-bossa nova (digamos, a tal MPB) se fez à revelia dela. A grande obra de Tom, Baden, Chico, Milton, Dori, Edu, seguiu adiante. Até mesmo Caetano e Gil se somaram a essa trajetória. A grande diferença do que vem ocorrendo agora, é que esse novo caminho tecnológico, pelas possibilidades que traz, pelas características da produção nesse universo, pouco a pouco vem construindo uma vertente estética, essa sim, com um sentido muito mais carregado de ruptura. Não se trata mais de algo como o Egberto Gismonti lidando com os sintetizadores, há décadas atrás. Ali era a linguagem musical do Egberto vestindo um determinado arcabouço sonoro. Hoje, o próprio arcabouço tecnológico já interfere decisivamente na linguagem. Não é gratuita a afirmação que há no artigo do Estadão: hoje os músicos dessa vertente se concentram mais em discussões sobre softwares, processadores, samplers, etc, do que em instrumentos, porque isso é mais determinante para o resultado sonoro que querem. Posso estar enganado e morder a língua, mas esse caminho vem tomando uma dimensão cada dia mais hegemônica na nossa música, e com resultados totalmente diferentes dos que não optaram por ele. Ao contrário de você, acho um pouco difícil o cruzamento desse universo com o outro. Até aí, nada de mal, pelo contrário, são novas formas de expressão, o que obviamente não garante por si só a expressão com qualidade artística. Mas certamente há arte e artistas nessa concepção, e isso é espetacular. No entanto, o colossal problema é quando vai alguém e inclui nessa discussão o conceito de evolução artística. Há, sim, evolução tecnológica. Mas nada me mostra que a música tenha que passar por esse caminho para evoluir. Nada me diz que ele tem, por si, algo que o faça dono da modernidade estética. Nada me mostra que seja imprescindível que a canção passe por esse caminho para significar novidade. Foi essa idéia de evolução que me incomodou profundamente no artigo do Estadão. Um abraço grande.

Chico, Caetano e a canção – por Rômulo Fróes

Rogério Skylab afirmou que Rômulo Fróes é o arauto da nova geração da MPB (o que, não sendo uma ironia do Skylab, é um baita elogio). Rômulo tem um trabalho que consegue ao mesmo tempo dialogar com tradições (a influência de Nelson Cavaquinho guiou sua música por muito tempo) e apresentar possibilidades de desenvolvimento, mesmo sem acreditar muito nestas possibilidades, ou sem a pretensão de ser o descobridor delas. Neste artigo, com o subtítulo: A canção morreu? Na linha evolutiva dos dois, ela mostra que apenas vive em outra era, ele analisa, a partir dos trabalhos recentes de Chico Buarque e Caetano Veloso, os caminhos que a canção brasileira vai tomando, com algumas conclusões que me surpreenderam, e que geraram um debate empolgante no Facebook – que espero trazer no próximo post.
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Muito tem se discutido sobre uma possível crise da canção e da própria música popular brasileira, mas penso ser esta uma avaliação apressada e o erro está na observação do problema. A música brasileira tem se renovado não mais somente pela composição, mas principalmente por meio de uma experiência coletiva nova que se dá através do acesso facilitado à tecnologia de gravação. É pelo som que a música brasileira está se transformando. Através dos trabalhos mais recentes de Chico Buarque e Caetano Veloso, vou tentar identificar traços dessa renovação e o modo como cada um vem lidando com esse problema.

Chico (2011), o mais recente lançamento de Chico Buarque, faz parte de um momento muito importante de sua discografia, em que incluo também As Cidades (1998) e Carioca (2006). Entre a gravação destes dois, ele concede a famosa entrevista a Fernando de Barros e Silva, em que discorre sobre um possível esgotamento histórico da canção. As músicas que compõem estes três álbuns parecem tomadas por este pensamento.

Chico inventa um personagem andarilho que aparece sempre na primeira faixa de cada disco, como se a cada trabalho saísse por aí para topar com as novidades do mundo. “Gostosa, quentinha, tapioca, o pregão abre o dia, hoje tem baile funk, tem samba no Flamengo, reverendo no palanque lendo o apocalipse (…)”, os versos de Carioca, canção que abre As Cidades, se desenvolvem sobre uma harmonia fendida que distende a melodia até o limite da nitidez. É difícil cantá-la, pois segue fluida, como que procurando seu prumo. E quando finalmente o encontra, já é tarde demais para compreendermos o seu desenho.

Ao iniciarmos de novo a melodia, não nos lembramos mais dela. Sem rima aparente, a letra conduz o personagem num travelling desorientado pela cidade. Dando liga a pessoas e acontecimentos distintos e sem tentar compreendê-los, vai descrevendo uma cidade e um cotidiano novos em sua música. Subúrbio, faixa que abre o álbum Carioca, avança ainda mais em direção a essa outra cidade, vai ao “avesso da montanha” onde “não tem brisa, não tem verdes-azuis, não tem frescura nem atrevimento”. Talvez espere encontrar nesse outro Rio novos caminhos para sua canção. Em Querido Diário, faixa que abre o disco novo, este andarilho adquire uma certa melancolia, não se encontra mais em sua própria cidade, que anda em contramão.

A movimentação que Chico imprime a este personagem movimenta também sua canção. Provoca nela um esgarçamento, em que a melodia é muitas vezes esticada até sua quase desintegração. A ponto de virar fala, mas ainda possível de ser cantada.

Sua obra recente parece encontrar um novo caminho para a sua música, mas encontra nele mesmo o adversário que dificulta sua plena realização. Chico sempre manteve certo distanciamento (admitido por ele em mais de uma entrevista) com a produção de seus discos. Talvez por isso nunca alcançaram a importância de suas canções. Todos conhecem Construção, poucos sabem dizer o nome de outras faixas que pertencem ao disco que leva este título, um dos mais importantes de sua carreira. Essa dualidade entre o compositor e o intérprete permanece nos trabalhos recentes, pois se as canções parecem apontar um novo caminho não só para sua obra, mas para a própria canção brasileira, nos discos elas regridem ao escalonamento um tanto simplista do seu produtor musical.

Luiz Cláudio Ramos, seu arranjador desde 1989, parece orientado por uma correção escolar, querendo consertar os ‘defeitos’ das composições de Chico, como em Dura na Queda, um dos mais belos e estranhos sambas de todo o seu repertório, escrito para Elza Soares e gravado por Chico em Carioca. Na gravação de Elza, sua linda melodia desliza como a personagem da canção, ‘desfila natural’ sobre uma pulsação cambaleante, com seu tempo forte camuflado. A gravação de Chico ‘corrige’ essa pulsação, revelando seu tempo forte e pondo a canção literalmente no chão. Os arranjos escritos por Ramos tendem ao fisionômico, enfraquecem as letras, numa tentativa de tradução inocente e anacrônica, como acontece em Querido Diário.

Ao se alcançar o verso “armou tocaia lá na curva do rio”, na busca de construir a imagem que a letra sugere, os instrumentos produzem sons que emulam água, pássaros, vento. Às vezes, o título é que determinará sua feição – dessa maneira, As Atrizes, faixa de Carioca, recebe tratamento orquestral típico dos musicais de cinema americano, numa redundância que nada contribui para a canção. Não há enfrentamento ali, um samba é apenas isto, um samba, uma valsa é uma valsa, um choro é um choro. Assim, Tipo um baião, outra faixa de Chico, perde a dubiedade estampada no título, e é finalmente transformada em um baião.

Francisco Bosco escreve em seu artigo O Artista e o Tempo que Chico atingiu o encontro perfeito entre forma e história e que soube manter e desenvolver sua forma, a certa distância formal da história. No mundo de hoje, talvez este distanciamento não seja mais possível em um projeto de renovação. Caetano, por sua vez, sempre ligado ao aqui e agora, quando parece ter simplesmente ignorado o presente, penso que houve um certo desvio em sua trajetória. Eu me refiro ao período de um pouco mais de uma década de colaboração com o músico e maestro Jaques Morelenbaum.

Caetano já disse que Morelenbaum fez com que perdesse muito do medo que tinha da música. Talvez isso explique o movimento em direção a uma produção mais sofisticada, de arranjos orquestrais extremamente formatados e sem espaços para improvisação, negando aquele saudável amadorismo sempre presente em sua obra. Longe dos experimentos tropicalistas de Rogério Duprat, próximo do que fez Dori Caymmi para Domingo (seu disco de estreia ao lado de Gal Costa) e, por que não notar, dos discos de Chico Buarque, ainda que com resultados muito superiores. Não por acaso seu canto se apura nesses trabalhos, parece querer acompanhar o aprimoramento técnico de sua banda. Discos que privilegiam o intérprete em detrimento do compositor se sucedem. Caetano vinha numa evolução que se configurava como um projeto de maturidade, quando esse processo é interrompido.

Cê (2006) e Zii e Zie (2009) trazem à cena um novo protagonista em seu trabalho, o guitarrista Pedro Sá, um dos nomes mais importantes de uma nova geração de artistas ainda pouco comentada. A banda montada por Pedro Sá com outros talentosos músicos desta geração (Marcelo Callado na bateria e Ricardo Dias Gomes no baixo), provocou uma transformação na sua canção. Parece óbvia essa afirmação, pois é claro que o som de um violão, uma guitarra, um violoncelo ou um cavaquinho, cada um com sua característica, muda nossa percepção. Mas não só o som do instrumento tem importância aqui. O modo como ele é captado e a manipulação do seu timbre através dos inúmeros equipamentos de um estúdio de gravação serão tão ou mais importantes. Os músicos dessa geração discutem sobre pedais, amplificadores, microfonação, válvulas, softwares de gravação, instrumentos antigos, etc., tanto quanto propriamente de música.

A canção de Caetano nestes dois discos foi influenciada por este comportamento e é devido exatamente à nossa intimidade com sua obra que notamos mais claramente uma transformação. Se compararmos, por exemplo, com um de seus trabalhos mais celebrados, o álbum Transa, há de se notar diferenças na sua relação com os músicos. Mais do que pelas próprias canções apresentadas, a banda que gravou Transa parecia influenciada pelo comportamento e pela música produzida naquela época – era isso o que a motivava, na busca do som adequado às canções. Com a banda Cê (nome com que batizou sua banda atual), Caetano parece compor para o som que ela produz. Um som de rock, como o de Transa, mas menos desbundado que os anos 1970, mais sombrio, próximo de bandas como Pixies e Sonic Youth e que se mostrou perfeito para a leva de canções carregadas de raiva e frustração apresentadas em Cê.

Em Zii e Zie, 2º disco gravado com essa mesma banda, os sinais de renovação de Caetano ficam mais claros. Em Perdeu, que abre o disco, já é possível notar uma novidade. A canção, rasgada por um riff de guitarra, acompanhada em uníssono pelo baixo e pela bateria, confere à melodia uma rigidez quase mecânica, travando sua evolução, tornando-a menos nítida, quebrada, quase falada – o canto é áspero, diferente daquele a que nos acostumamos. É difícil saber o que diz a letra, as rimas estranhíssimas se desenvolvem fraturadas pelo groove da banda, trazendo um vocabulário inédito à sua lírica, mais erótico do que já foi, quase pornográfico, “(…) colheu, esticou, encolheu, matou, furou, f…, até ficar sem gosto. Ganhou, reganhou, bateu, levou, mamãe, perdeu, perdeu (…)”.

O encontro de Caetano com a nova geração de artistas e este novo comportamento em relação à música brasileira, acabou por encontrar e recuperar a carreira de Gal Costa. Gal há muito tempo fora dos estúdios e que havia se transformado numa intérprete burocrática de clássicos da MPB volta a ser a voz ideal para as experimentações de Caetano. Em Recanto (2011), disco mais recente da cantora produzido por ele e Moreno Veloso, Caetano se aprofunda ainda mais no trabalho dentro do estúdio. Apoiado quase totalmente sobre bases eletrônicas, em sua maioria programadas por Kassin (músico e produtor), Caetano compôs canções duras, impenetráveis, de letras um tanto desagradáveis e que modificaram o canto de Gal, tornando-o menos exuberante, de registro mais baixo, com notas graves desconhecidas até então. Tão belo quanto já foi. De uma beleza surgida de elementos comumente não reconhecidos como belo. Do tipo que Caetano sempre perseguiu e que voltou a aparecer em seus trabalhos recentes.

Se a canção vive mesmo uma crise e não tem a mesma relevância na transformação cultural do nosso país, é porque vivemos um tempo diferente, o que envolve questões que vão muito além do modo como nos relacionamos com ela. A pergunta pertinente, agora, é se ainda precisamos de canções. Chico e Caetano seguem ligados por suas diferenças, mas principalmente pela estreita relação que mantêm com a canção brasileira. Chico, acreditando ainda numa renovação através da composição. Caetano, voltando a se alinhar com o presente atrás dessa renovação. Talvez seja justamente pelo comportamento inalterado destes dois grandes artistas que ela ainda demonstre imensa vitalidade. O tempo, afinal, para Chico e Caetano, parece no fundo ser o mesmo.